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    Noel e os 90 anos de um sa-samba antoló-lógico

    Fernando Krieger

    – Das suas criações, qual a que mais lhe agrada? E por quê?

    – É o samba “Gago apaixonado” porque, além de ser original, os meus vizinhos e os seus papagaios não conseguem cantá-lo.

    (Noel Rosa, em entrevista a “O Cruzeiro”, 27/08/1932, página 7)


    Noel, sobre quem “O Cruzeiro” escreveu que “não conseguiu fugir ao humorismo nas respostas sérias” que deu à revista, também não resistia à tentação de pilheriar em várias de suas composições. Uma destas é “Gago apaixonado”, que apresenta um tom cômico, mas sem deboche, na reprodução da fala do rapaz que, sofrendo com o estrago causado por uma moça que lhe entregou o coração e depois tomou de volta, acaba ficando gago de tão nervoso.

    O tom cômico da música seria, na verdade, tragicômico, como atesta Hélio Jorge na revista “Carioca” nº 394, de 24/04/1943, página 35: “Nem quando passa para o ridículo das coisas, o cantor de Vila Isabel abandona aquele encarar pessimista; haja vista o samba que fala no gago apaixonado (...)”.

    Há dois aspectos desta música que contradizem a Medicina – é preciso lembrar que o boêmio Noel foi (mau) aluno deste curso, não chegando a completá-lo. Fatores psicológicos e emocionais, como uma desilusão amorosa, não são causadores da disfemia (nome técnico da gagueira ou gaguez), embora possam agravá-la. Além disso, Noel canta gaguejando, o que não é comum em quem possui este tipo de desordem de fluência da fala. A gagueira acontece quando há uma fala espontânea; quando se segue um conteúdo já existente, o problema desaparece. Por isso, pessoas que apresentam esta disfunção conseguem cantar, declamar e atuar sem problema algum – caso de Nelson Gonçalves, grande intérprete de nossa música popular, apelidado de Metralha por causa do seu distúrbio fonético.

    Nada disso, no entanto, diminui o valor e a graça da composição, uma das mais criativas do Filósofo do Samba. Segundo João Máximo e Carlos Didier (em “Noel Rosa: uma biografia”, de 1990), a música teria surgido “numa noite em que a cidade era agitada por um daqueles corre-corres que se seguiram à posse de Getúlio Vargas como chefe do Governo Provisório: tiroteios entre soldados no Mangue e na Lapa, arruaças provocadas por fuzileiros em Madureira, conflito entre militares e policiais em Niterói, invasão de botequins, saques de bebidas, depredações”. Indiferente ao caos, Noel estaria na Praça Barão de Drummond (antiga Praça 7 de Março), em Vila Isabel, dando forma ao samba, provavelmente feito em homenagem ao amigo Manuel Barreiros, o Barreirinha, que sofria por um amor não correspondido. “Verdade? Ou mais uma de suas histórias? De um modo ou de outro, é mesmo um samba genial”, afirmam seus biógrafos.

    “Gago apaixonado” estreou nos palcos em abril de 1931 no Teatro Recreio, no Centro do Rio, cantado pelo ator Mesquitinha num dos números da revista “Café com música”. Mas já havia sido lançado em disco (Columbia 22023-B) no mês anterior, março, pela voz do seu autor, sem dúvida – e até os dias de hoje – o melhor intérprete da canção. O rótulo o identifica como Noel “Roza”. Como acompanhantes, incorporando o espírito “tragicômico” da gravação, estavam os integrantes do “Seu Grupo”, formado pelo próprio Noel ao violão, um pianista não identificado e os grandes Napoleão Tavares (pistom com surdina), Luiz Americano (clarinete) e Luiz Barbosa, precursor do samba de breque, que costumava cantar batucando em seu chapéu de palha, e que aqui aparece tirando som de uma maneira inusitada: com um lápis entre os dentes, percutindo freneticamente o objeto em sua boca, abrindo-a e fechando-a para conseguir sons mais agudos ou graves, obtendo um efeito bastante curioso.

    A música tornou-se um sucesso nas apresentações que Noel fazia ao vivo, geralmente em turnês com outros artistas da época, e agradava em cheio ao público. João Máximo e Carlos Didier escrevem na já mencionada biografia: “Em São José dos Campos, no Sul, em Campos, Muqui, Vitória ou qualquer outro lugar em que se apresente Noel Rosa, este samba é e será por muito tempo ainda um número obrigatório. Não só por ser uma de suas melhores produções, das mais identificadas com seu estilo, mas também porque ninguém a interpreta com tanto sabor (...)”.

    De fato, Noel “gaguejava” com tal naturalidade que, como contam Máximo e Didier, podia-se aproveitar este fato para criar um clima de expectativa nos shows, como acontecia nos antigos teatros de vaudeville. Em 1932 houve um evento no Grêmio Esportivo 11 de Junho, no Riachuelo, bairro da zona norte do Rio, e o apresentador Lamartine Babo – outro tremendo gozador da música brasileira – anunciava a apresentação de “um excelente cantor, jovem de muita bossa”... Então fazia uma pausa e, falando em voz baixa, pedia a compreensão da plateia, pois o moço era... “um pouco gago”. E solicitava ao distinto público que relevasse qualquer dificuldade que aquele cantor porventura viesse a ter. Então Noel entrava e brilhava! Muitos na audiência já conheciam o truque, mas mesmo estes se divertiam, aplaudiam, gargalhavam e pediam bis.

    O tema da gagueira já tinha aparecido em disco entre 1909 e 1914, em cenas cômicas interpretadas por Mário Pinheiro, Eduardo das Neves e outros pioneiros. Mas foi o samba de Noel que de fato introduziu a figura do gago em nossa música popular. Posteriormente, Klecius Caldas e Armando Cavalcanti utilizaram o personagem em duas composições consagradas: a “Marcha do gago”, grande criação de Oscarito, que a lançou em 1949 no filme “Carnaval no fogo”, da Atlântida, e a gravou no mesmo ano em disco Star (“Tá-tá-tá, tá na hora, va-va-vale tudo agora, sou mo-mole pra fa-falar, mas sou um Pintacuda pra beijar” – a letra faz referência ao ítalo-argentino Carlo Maria Pintacuda, piloto de corridas); e “Piada de salão”, sucesso de Blecaute em 1954, marcha ainda hoje bastante executada no Carnaval.

    Luiz Vieira teve o seu “Baião do gago” gravado em 1953 por Marlene; em 1960, Carequinha levou ao disco a “História de gago” de Altamiro Carrilho e Irani de Oliveira, com a participação graciosa e divertida do Coro Infantil do Lar da Glória. Também a música instrumental se rendeu ao tema, com “Gaguejando”, de Eddie Mandarino e Buda do Pandeiro, lançada em 1954 por Waldir Calmon e sua orquestra.

    “Gago apaixonado” teve poucas regravações em long-playings e, na época dos discos de 78 rotações, apenas uma, em 1959, por Moreira da Silva – que, numa versão puxada para a gafieira e com muita bossa, acentua o gaguejar do personagem. Mas, verdade seja dita, sem a na-naturalidade do cra-craque Noel.

     

    Link para playlist:

    https://discografiabrasileira.com.br/playlists/243845/gago-apaixonado