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    No céu, no mar, na terra... O samba que fez o Brasil todo cantar – menos Ary Barroso

    Pedro Paulo Malta

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    Obra-prima de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil” foi muito mais que o maior sucesso da nossa música em 1939. O samba, identificado como “cena brasileira” no selo do disco em que foi lançado, em outubro daquele ano, sintetizava como nenhuma outra música o sentimento ufanista que tomava o país naquela época – incentivado, em grande parte, pelo próprio presidente da República (e então ditador) Getúlio Vargas. E assim, com imagens que vão do cartão-postal à pintura naïf (incluindo os redundantes “coqueiro que dá coco” e “o meu Brasil brasileiro”), abriu-se a cortina para um novo gênero musical: o samba-exaltação.

    Entre os compositores que se animaram com a novidade, nenhum foi tão rápido e aplicado quanto Alcir Pires Vermelho. Já no ano seguinte ao grande sucesso de Ary, ele assinou, em parceria com João de Barro e Alberto Ribeiro, outro samba de muita repercussão nessa mesma linha: “Onde o céu azul é mais azul”, lançado em disco pela Columbia em dezembro de 1940, com os mesmos cantor (Francisco Alves) e arranjador (Radamés Gnattali) de “Aquarela do Brasil”.

    Até que os dois sambas foram tocados em sequência numa noite especial na Rádio Nacional (02-04-1941) e dali veio a ideia de mais uma composição, como o jornalista David Nasser contou à revista Carioca (26-04-1942): “Vínhamos, eu e o Alcir, num ônibus, de volta de uma festa: a festa de estreia de Francisco Alves na Rádio Nacional. Um dos arranjos iniciais era a junção de ‘Onde o céu azul é mais azul’ e ‘Aquarela do Brasil’. Sem querer, o trocadilho saiu: ‘Onde o azul é mais azul na aquarela do Brasil’. E assim começamos a compor o samba tão falado.”

    Já Alcir Pires Vermelho costumava dizer que “Canta, Brasil” teria surgido de um encontro casual com David Nasser na Avenida Rio Branco: ele recebeu a letra do jornalista e, com o pedaço de papel nas mãos, começou a fazer a música na viagem de bonde entre o Centro e a Tijuca, onde morava, na Rua Bom Pastor. Seja como for, nascia mais um samba-exaltação, na mesma linha de seus antecessores – o primeiro com o eu-lírico cantando para o país e o segundo pintando, como num quadro, “o Brasil grande e tão feliz”.

    O novo samba de Alcir e Nasser, por sua vez, era no modo imperativo, dirigido ao próprio muso inspirador: “Mas agora o teu cantar / Meu Brasil, quero escutar / Nas preces da sertaneja / Nas ondas do rio-mar...” A primeira audição foi há 80 anos, no dia 21 de maio, no programa que Chico Alves comandava na Rádio Nacional, com o patrocínio do Óleo de Peroba, “o seu polidor para móveis”, como anunciava a edição daquele dia do jornal A Noite. Quinto e último samba do programa, “Canta, Brasil” era certamente o mais fresco na memória do Rei da Voz.

    Isso pois a gravação, com acompanhamento da orquestra da própria Rádio Nacional, dirigida por Romeu Ghipsman, foi realizada na véspera, 20 de maio de 1941. Se na época não havia o costume de se fazer fichas técnicas, os detalhes da sessão foram descritos pelo jornal Gazeta de Notícias (24-05-1941): “O popular cantor da Rádio Nacional teve como colaboradores, nesta sua nova gravação, uma orquestra de 23 figuras e um grande coro, de que faziam parte, entre outros, Odete Amaral, Ciro Monteiro, Gilberto Alves, Flora Matos e Mário Petra de Barros.”

    O periódico informou também que a gravação foi a primeira de Francisco Alves no novo contrato com a Odeon. Seu lançamento se deu em julho de 1941, no disco nº 12003 da gravadora – assim como em “Aquarela do Brasil”, o primeiro registro de “Canta, Brasil” veio identificado no selo do disco como “cena brasileira” (e não samba), dividido em duas partes nos lados A e B. O colunista Edmundo Lys, do jornal O Globo, classificou o samba como “uma joia da música popular”. “Trata-se, aqui, da coisa mais sensacional em matéria de música popular que já ouvimos este ano”, escreveu o crítico, antes de destacar “a bela instrumentação de Lyrio Panicalli” e o intérprete, que “esteve inexcedível”.

    Disco Odeon 12003 (rótulos de exemplar da Coleção Nirez)

    Segundo a revista Carioca (26-04-1942), quem também esteve no estúdio foi Ary Barroso, que achou a gravação “formidável”. Outros registros, no entanto, apontam para outra direção: “Ary extravasou uma enorme contrariedade pelo fato de ‘Canta, Brasil’ ter ido no filão do samba-exaltação, que abrira com ‘Aquarela do Brasil’, e rompeu com seu amigo Alcir Pires Vermelho”, escreveu o pesquisador Abel Cardoso Júnior no livro “Francisco Alves: as mil canções do Rei da Voz”.

    A acusação contra Alcir – seu parceiro em “A casta Suzana” e outras músicas – foi de plágio, embora não fizesse muito sentido. “O clima de samba apoteótico, sem dúvida, era o mesmo, mas a melodia não tinha nada a ver com o clássico gravado anteriormente”, escreveu o biógrafo de Ary, o jornalista Sérgio Cabral, antes de informar que a cisma de seu biografado vinha desde o lançamento de “Onde o céu azul é mais azul”. Ambos mineiros e pianistas, os dois eram próximos desde a juventude, quando Alcir chegou a ter aulas de música com Rita Margarida de Rezende, tia e professora de piano de Ary.

    Este pode ter se incomodado com notícias como a que saiu em O Jornal (27-10-1944). “Num concurso realizado no Sul do Brasil, os ouvintes escolheram a música sensacional ‘Canta Brasil’ como a mais alta expressão do repertório popular de nossa terra”, escreveu Freddy, na coluna Meia Noite. “Aliás, o ‘samba eterno’, como se tornou conhecida essa magnífica página de David Nasser e Alcir Pires Vermelho, é um dos recordes de popularidade não apenas aqui, mas na Argentina, onde a famosa ‘Santa Paula Serenaders’ gravou-o.”

    Animado com os ventos favoráveis, Alcir Pires Vermelho seguiu no filão verde-amarelo, com outros sambas patrióticos. Em 1942, fez “Brasil usina do mundo” (com João de Barro), “Brasil novo” (com Saint-Clair Senna) e “Sandália de prata” (com Pedro Caetano). Já em 1943 foi a vez de “Onde florescem os cafezais”, mais uma parceria patriótica com David Nasser, esta lançada também nos Estados Unidos (em versão instrumental) com o nome “Coffee carnival”.

    Mesmo assim, não chegou perto – assim como as outras – do sucesso de “Canta, Brasil”, que, segundo a primeira edição da revista O Cruzeiro em 1946, liderou as vendagens no ano anterior, juntamente com “Aquarela do Brasil”: “Por significativa coincidência, os discos mais vendidos de 1945, entre os nacionais e estrangeiros, são melodias não recentes.” Mais do que uma coincidência, o mais provável é que a popularidade desses sambas em 1945 tivesse relação com o clima patriótico que tomou o país durante a Segunda Guerra, especialmente após o fim dos combates na Europa, em maio daquele ano, com a derrota do nazi-fascismo para as Tropas Aliadas – entre elas os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira.

    Não à toa, chamava-se “Canta, Brasil” o espetáculo que estreou em agosto de 1945, no Teatro Recreio, localizado na Praça Tiradentes (Centro do Rio). Com texto de Luís Peixoto, Geysa Bôscoli e Paulo Orlando, a revista fez bonito nas bilheterias e também na imprensa – o crítico Astério de Campos, da Gazeta de Notícias (26-08-1945), destacou a atuação de Dercy Gonçalves, “pela graça natural e esfuziante, às vezes excessiva nos ditos apimentados e maliciosos”. Informou também que o samba-título do espetáculo era apresentado no final, como desfecho da “apoteose de Monte Castelo”.

    E assim o disco de “Canta, Brasil” teria alcançado a vendagem de 300 mil exemplares, como escreveu David Nasser numa série de reportagens sobre Francisco Alves para a revista O Cruzeiro, em 1952. Regravado duas vezes em 78 rotações (por Zaccarias e Sua Orquestra, em 1950, e pelo acordeonista Mario Genari Filho, em 1959), o samba octogenário foi relançado em outros registros marcantes lançados em LPs. Como nos vozeirões de Jorge Goulart (1956) e Angela Maria (1957) e, bem mais adiante, no canto delicado dos baianos João Gilberto (1980) e Gal Costa (1981), entre outros.

    Foto: Alcir Pires Vermelho ao piano / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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