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    Musas de Ary na voz de Sílvio Caldas: as veteranas ‘Faceira’ e ‘Morena boca de ouro’

    Pedro Paulo Malta

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    Uma delas fazia visagem e passava rasteira “num samba de gente bamba”. A outra, “sestrosa e vaidosa”, pisou o coração alheio enquanto sambava no terreiro. Neste ano de 2021, as duas cabrochas continuam lépidas e fagueiras, requebrando por aí, mesmo tanto tempo depois de terem virado sambas na inspiração de Ary Barroso e na voz de Sílvio Caldas. Primeiro foi a vez de “Faceira”, há 90 anos, e, depois, da octogenária “Morena boca de ouro”. Musas de idade provecta que seguem em plena forma, ainda hoje cantadas em shows, regravações e rodas de samba.

    “Faceira” saiu em disco em julho de 1931, com Sílvio acompanhado por orquestra, com destaque para a bateria de Luciano Perrone nos breques. Na época da gravação, feita no estúdio da Victor em 9 de junho daquele ano, o samba já era conhecido das plateias do espetáculo “Brasil do amor”, uma revista de Marques Porto e Ary Barroso estreada no dia 14 de maio, no Teatro Recreio (Praça Tiradentes, Centro do Rio), com elenco encabeçado por Margarida Max. Mesmo assim, os melhores aplausos não foram só para a grande vedete, como se vê na imprensa da época.

    “Sílvio Caldas foi bisado em um samba delicioso”, informou o Diário de Notícias (15/05/1931) num texto sobre a estreia, sem mencionar o nome da música, que inicialmente se chamava “Gente bamba” e era apresentada no 13º dos 26 quadros do espetáculo. Já a resenha do Diário Carioca (19/05/1931) trazia no título uma pergunta: “Quem sucedeu Aracy Cortes no Teatro Recreio?” A resposta vinha em seguida: “Não foi Margarida Max, Dulce de Almeida, Olga Navarro ou Carmen Dora. Foi Silvio Caldas”, que segundo o jornal estreou no teatro de maneira “auspiciosa”. “Fez logo o seu público, aquele mesmo público que aplaudia o samba de Aracy.”

    O próprio Ary Barroso, já então artista profissional, era um compositor talentoso e que emplacava seus primeiros sucessos na década mais decisiva em sua trajetória, a de 1930. Na anterior, cambaleou entre a Faculdade de Direito do Catete e a atividade de pianista – primeiro nos cinemas e depois como músico da Jazz Band Sul Americana, de Romeu Silva. Até que em 1928 teve as primeiras músicas editadas (pela Casa Carlos Wehrs) e a primeira gravada: o samba “Vou à Penha”, por Mário Reis. Mas sucesso mesmo foi o que fez na folia de 1930, depois que sua marchinha “Dá nela”, gravada por Francisco Alves, venceu o concurso de músicas carnavalescas da Casa Edison.

    Nos anos seguintes, Ary Barroso seguiu emplacando novos sucessos além de “Faceira” e Sílvio Caldas se firmou como um de seus principais intérpretes. Em sua voz foram lançados sambas emblemáticos do compositor, como "Maria" (com Luiz Peixoto, em 1932), "Inquietação", "Tu" (ambos de 1935) e "Quando penso na Bahia" (também com Luiz Peixoto, 1937), este último gravado em dueto com Carmen Miranda. Até a obra-prima de Ary, “Aquarela do Brasil” (lançada por Francisco Alves em 1939), foi parar na voz do “Caboclinho Querido”, numa regravação em 1942.

    E assim chegamos à outra musa deste post, a octogenária “Morena boca de ouro”, que antes de ser gravada em disco foi cantada na Rádio Mayrink Veiga, como souberam os leitores da coluna Rádio Variedades, do jornal O Imparcial (08/07/1941): “Ainda ontem, no chamado Programa do Almoço, ouvimos a jovem cantora Selma Wanda interpretando um número difícil, o bonito samba de Ary Barroso ‘Morena, boca de ouro’”, informou o periódico, na primeira ocorrência do samba de Ary na imprensa. 

    A primeira gravação de “Morena boca de ouro” tinha sido feita poucos dias antes, no dia 4 de julho, quando Silvio Caldas compareceu ao estúdio da Victor para cantar acompanhado de regional. Se não há créditos para os músicos que formavam o conjunto, por outro lado sabe-se da estirpe do pianista que participou da gravação: o próprio Ary Barroso, que brilha tanto na introdução quanto no início da repetição, tocando a primeira parte do samba em seu piano batucado. O disco só chegou às lojas em setembro de 1941, tornando-se um dos grandes sucessos de seu tempo. 

    Ary Barroso ainda teve tempo de ver sua morena reaparecer 18 anos depois, em 1959, numa das regravações que João Gilberto fez de sambas das décadas anteriores. Acompanhado de conjunto dirigido por Tom Jobim, João vestiu com roupagem minimalista a cabrocha inclemente, dando-lhe fôlego para seguir gingando na década de 1960 e dali por diante. E foi assim que ela correu o mundo como exemplar da bossa nova e se firmou como um dos grandes sambas da história.

    ‘Morena boca de ouro’ é uma das melhores criações de Ary Barroso, peça obrigatória em qualquer antologia de samba que se possa imaginar”, definem o pesquisador Jairo Severiano e o crítico Zuza Homem de Mello no livro “A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras – Vol. 1” (Editora 34, 2002). “Nessa composição Ary tira o máximo proveito das potencialidades rítmicas do samba através de uma sinuosa linha melódica, que se desenvolve entrecortada de síncopes do primeiro ao último compasso. Justificando a agitação da melodia, a letra focaliza uma morena exuberante – ‘brasa viva, pronta pra queimar’ – que roda, ginga e samba como ninguém”, destrincham os escritores, antes de lembrarem de uma outra musa de Ary, a mulata de “É luxo só”, criada em parceria com Luiz Peixoto, lançada por Heleninha Costa (1957) e também regravada por João Gilberto (1959).

    Foto: Sílvio Caldas / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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