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    40 anos sem Mário Reis: o cantor na memória de quem o conheceu de perto

    Pedro Paulo Malta

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    Lá se vão 40 anos da morte de um grande personagem da música brasileira na chamada “era de ouro”: o cantor Mário Reis, falecido no dia 5 de outubro de 1981, na Clínica Bambina, no bairro carioca de Botafogo, onde estava internado desde o dia 9 de setembro por complicações de um aneurisma na aorta abdominal. Chegou a ser operado duas vezes mas não resistiu, vindo a falecer às 6h41 daquela segunda-feira e sendo levado para o Cemitério São João Baptista, onde foi homenageado com discrição: a bandeira do Country Club sobre o caixão fechado, algumas coroas de flores e ramos de hortênsias trazidas de Petrópolis pelo irmão. “Pouco mais de 50 pessoas acompanharam o caixão até a sepultura 1.533 F da quadra 2, onde está o jazigo da família”, informou o Jornal do Brasil no dia seguinte, ao descrever a cerimônia – miúda para um personagem tão importante.

    O crítico Zuza Homem de Mello o definiu como “o primeiro cantor de bossa na MPB” (Estado de S. Paulo, 05-10-1981), enquanto Tárik de Souza afirmou que era “o mais carioca dos cantores” (JB, 06-10-1981). O jornalista Sérgio Cabral já o havia classificado como “o iniciador de uma nova era para a interpretação de nossa música” (O Globo, 18-01-1978), mas Hélio Fernandes foi mais longe em sua Tribuna da Imprensa (06-10-1981), chamando Mário de “o inventor da bossa nova”. Mas ninguém supera – em metáforas e paixão – o crítico Lúcio Rangel, que no Jornal de Letras (de março de 1950) referiu-se ao cantor como “um verdadeiro purgante, que varreu da praça os imitadores dos italianos, os tenores e barítonos que tiravam toda a graça dessa delícia que se chama o samba carioca”.

    Quem concorda com tudo isso e acrescenta outros adjetivos é a produtora e radialista Alicinha da Silveira (com o último disco de Mário na foto que ilustra esse post), que pôde estar por perto de Mário em suas últimas três décadas de vida, quando, afastado da carreira artística (exceto por raras e breves aparições), ele já não queria saber da imprensa. Uma convivência que se deu no ambiente familiar: o pai de Alicinha, o empresário Guilherme da Silveira Filho, era primo do cantor, mas na prática viveram como irmãos. Desde a morte precoce do pai de Mário, Raul, em 1925, e com o estado mental abalado de sua mãe, Alice, ele e o irmão, João, passaram a ser criados pelo tio, o velho Guilherme da Silveira, que dirigia a Fábrica Bangu de Tecidos e ainda seria presidente do Banco do Brasil (em duas ocasiões) e ministro da Fazenda no governo Dutra. 

    “Meu avô era do tipo que lia jornal de luvas, que ia para a mesa de robe de seda e cachecol. E o Mário passava o almoço jogando bolinha de miolo de pão nele, quebrando aquele clima todo”, relembra Alicinha, 68 anos, funcionária da Rádio Roquete Pinto. “Era o tio diferentão que eu encontrava nos domingos na casa dos meus avós. O tio que falava alto e dizia palavrões cabeludos. Fora que tinha um cachorro que se chamava simplesmente Cachorro – dizia que era para não esquecer o nome – e torcia para um time diferente de todos nós: meu pai, Silveirinha, foi presidente do Bangu e dá nome ao estádio do clube (que é conhecido por Moça Bonita, mas oficialmente é Estádio Proletário Guilherme da Silveira). Mas o Mário era América, o que sempre dava umas briguinhas de família.”

    Entre as lembranças da sobrinha de Mário Reis está também o último disco feito por ele: um LP de 1971, feito na Odeon, regravando antigos sucessos, como “Cansei” (Sinhô) e “Rasguei a minha fantasia” (Lamartine Babo), e outros recentes, como “A banda”, de Chico Buarque. “Me lembro de como ele estava encantado com essa música e com o surgimento do Chico”, relembra Alicinha. “Acompanhei a gravação sentadinha num canto do estúdio. Não guardei tantos detalhes desse momento, mas me lembro do orgulho que senti por ser prima dele, enquanto todos o tratavam com muita reverência. E ele lá, com o paletó esportivo que costumava usar, com aquele jeito ansioso dele, como sempre, mas muito feliz. Fazia tempo que ele não gravava, né?” (ouça aqui)

    A rigor, nem tanto tempo assim. Mas cada nova gravação de Mário era um acontecimento, o que se explica por sua carreira errática: no fim da década de 1930, quando enfileirou sucessos em ritmo de samba e marcha, abandonou a vida artística, com retornos esporádicos e pontuais. O primeiro em 1951, quando regravou sambas de Sinhô em arranjos de Radamés Gnattali, na Continental. O segundo em 1960, quando fez novas regravações para o LP “Mário Reis canta suas criações em hi-fi”, da Odeon. E depois em 1965, quando mais uma vez reviveu seus sucessos no disco “Ao meu Rio”, da gravadora Elenco.

    Outro grande momento testemunhado por Alicinha da Silveira foi a noite em que pôde ver o tio cantar, na última apresentação dele, também em setembro de 1971, no Hotel Copacabana Palace. “Foi uma noite gloriosa como eram as noites do Golden Room: o público de black-tie, muitos amigos dele e eu com meus pais no meio daquele ambiente incrível. Me lembro do Mário tenso antes do show, com medo de alguma coisa dar errado, mas correu tudo perfeitamente. E no fim ele se emocionou tanto!!! Também, não era para menos, né...?” No livro “Mário Reis: o fino do samba”, o biógrafo Luís Antônio Giron conta que o próprio Chico Buarque, às lágrimas, foi abraçá-lo e confessou: “Hoje eu descobri que tinha composto ‘A banda’ para você.”

    Além do hotel mais chique do país, onde Mário Reis morava desde 1957, no apartamento 140 do edifício anexo, outro lugar em que ele podia ser encontrado com facilidade era a piscina do não menos aristocrático Country Club, onde destoava dos outros bacanas falando alto e dando apelidos aos que o desagradavam: um era “o Galo”, outro “o Príncipe das Varizes”, tinha também “o Antônio Maconheiro” e assim por diante. No meio de todo esse desfile de excêntricos, um menino que fazia natação na mesma piscina aproveitava a verve daquele senhor espaçoso para ouvir suas histórias sem fim.

    “Eu tinha cinco, seis anos e adorava aquelas memórias que ele contava, por exemplo, das caminhadas que fazia com os amigos seresteiros, da Praia da Glória até Copacabana. Virei o Antonico, amigo dele”, recorda o coreógrafo e ator Antonio Negreiros, hoje aos 63 anos. “Ele era conhecido da minha família, pois fazia parte da turma que jogava bridge com meus avós. Foi o primeiro artista que conheci e também meu primeiro ídolo. Guardo com todo carinho um disco que ele me deu, com os sambas de Noel Rosa cantados por Aracy de Almeida, aquele da capa pintada pelo Di Cavalcanti.” 

    O coreógrafo e ator Antonio Negreiros e o presente do amigo-ídolo Mario Reis.

    Quando completaram-se cem anos do nascimento de Mário (2007), Negreiros quis homenagear o amigo fazendo um pocket-show entremeando músicas e textos. Depois, ampliou o roteiro para um espetáculo musical e, mais adiante, para um filme, que infelizmente não chegaram a ser realizados. “Acabou valendo pela aproximação com a Alicinha, de quem me tornei amigo e que me convidou para interpretar o repertório do Mário no Golden Room, naquele mesmo ano, numa noite emocionante que festejava os centenários dele e do pai dela”, relembra o coreógrafo, que mantém vivas as lembranças daquele senhor excêntrico.

    “Ele era vaidosíssimo, né? A ponto de usar o short no meio do peito, para esconder a barriga. Era esquisitíssimo, mas não estava nem aí”, rebobina Negreiros, divertindo-se com as lembranças da infância. “De repente o Mário se levantava num pulo da espreguiçadeira, encolhia a barriga, puxava o short um pouco mais pra cima e gritava lá pro outro lado da piscina, onde estava o garçom que o atendia: ‘Ô, Lucas! Solta a minha loura es-tu-pi-da-men-te gelada!’ Sabia que essa expressão foi inventada por ele...?”

    Antonio Negreiros caracteriza o gosto do amigo pela originalidade como uma de suas principais qualidades. “Ele sempre frequentou todos os ambientes, o que só engrandece a história dele. Ou seja: frequentava as altas rodas e sentia-se em casa, tanto no Copacabana Palace quanto no Country Club. Mas era o mesmo que aprendeu os melhores sambas direto na fonte, com os próprios sambistas: no Estácio, na Mangueira, onde fosse.”

    Perguntado sobre as lições que guardou do convívio com Mário Reis, o coreógrafo volta ao início de sua própria trajetória artística. “Assim como ele, eu nasci num meio privilegiado e tinha vontade de seguir um caminho profissional que não era aceito por minha família. O fato de ter convivido com um artista que tinha sido incompreendido no meio dele me abriu os olhos para a coragem que era necessária se eu quisesse ir adiante na minha carreira profissional. Ou você acha que minha família adorou saber que eu ia ser bailarino?!” 

    Negreiros vivia na Alemanha, como integrante do Stuttgart Ballet (dirigido por Márcia Haydée), quando o amigo faleceu. Assim com Alicinha da Silveira, que andava afastada do tio (e às voltas com filhos pequenos) no fatídico 5 de outubro de 1981. Estivessem eles no Cemitério São João Baptista, é possível que rissem da cena que se passou no velório: uma quebra de protocolo grã-fino à moda do próprio Mário Reis, como contou o JB em seu obituário (06-10-1981): 

    “Foi com a música de Braguinha, feita em parceria com Alberto Ribeiro, ‘Cadê Mimi’, que uma mulher desconhecida, de bermudas, chinelos e muito emocionada saudou o cantor, tão logo o padre acabou de encomendar o corpo. Na ausência de vozes que fizessem coro, o canto foi interrompido e substituído por um impropério. A desconhecida pediu perdão ao padre e desapareceu entre as alamedas do cemitério.”

    Para encerrar nossa homenagem a Mário Reis, pedimos a Alicinha da Silveira e Antonio Negreiros que listassem suas preferidas do cantor lançadas em discos de 78 rotações: o resultado é a playlist que publicamos abaixo. 

     

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