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    De disco em disco, com letra ou sem letra, há 90 anos o tico-tico vem comendo sem parar (haja fubá)!

    Fernando Krieger

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    – Benedito, eu sei a letra dessa música!

    – Sabe nada, menina! Esse choro não tem letra!

    – Tem letra sim, dá uma “baixadinha” no tom que eu vou cantar pra você.

     

    Foi assim, num sarau grã-fino na Gávea em 1942, que a potiguar Ademilde Fonseca, 21 anos, recém-chegada ao Rio de Janeiro e futura Rainha do Chorinho, ensinou a Benedito Lacerda os praticamente desconhecidos versos de Eurico Barreiros para o famoso choro de Zequinha de Abreu, que o experiente flautista tinha acabado de solar. Ademilde acabou gravando-os em agosto daquele mesmo ano, na sua estreia em disco, resultando num sucesso estrondoso. Mas este não foi o primeiro registro fonográfico da música, nem Barreiros o único parceiro de Zequinha na composição. Cuja história começa 25 anos antes...

     

    Num baile no município paulista de Santa Rita do Passa Quatro, cidade natal de Zequinha de Abreu (1880 – 1935), a música teve, em 1917, a sua primeira execução, como contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no volume 1 de “A canção no tempo” (São Paulo: Editora 34, 1997). Impressionado com “a animação dos pares que dançavam em grande alvoroço”, o compositor teria comentado, batizando sua criação ainda sem nome: “até parece tico-tico no farelo...”, talvez pensando na imagem do pássaro remexendo alimentos no solo dando pequenos pulos, uma de suas características.

     

    “Mas, apesar dessa estreia vitoriosa”, prosseguem Jairo e Zuza, “a obra-prima de Zequinha de Abreu só chegaria ao disco quatorze anos mais tarde, ocasião em que foi gravada pela Orquestra Colbaz, criada e dirigida pelo maestro Gaó” (Odmar Amaral Gurgel). Nessa ocasião, já havia sido rebatizada, pois em 1927 a Odeon soltou um 78 rpm onde Américo Jacomino, o Canhoto, solava no cavaquinho um choro de sua autoria chamado exatamente... “Tico-tico no farelo”. O disco Columbia 22029-B vai então revelar para o mundo o “Tico-tico no fubá” de Zequinha, tendo, na outra face, a clássica valsa “Branca”, do mesmo autor.

     

    Logo após esse primeiro registro de 1931 – cujo aniversário de 90 anos transcorre neste 2021 –, Eurico Barreiros, dentista amigo da família de Zequinha, arriscou fazer uma letra para cantar para sua filha: “O tico-tico só, o tico-tico lá, está comendo todo, todo o meu fubá / Olha, seu Nicolau, que o fubá se vai, pego no meu ‘pica-pau’ e o tiro sai...” (pica-pau, aqui, é um tipo de espingarda). Foi desse jeito que Ademilde cantou em sua estreia fonográfica, tornando-se a primeira a lançar em disco uma versão letrada do choro.

     

    No entanto, foram Alvarenga e Ranchinho os primeiros a levar ao disco um “Tico-tico” com letra! Parece confuso? Explica-se: Ademilde fez seu registro em agosto de 1942; no mês anterior, a dupla já havia entrado em estúdio para deixar na cera os versos feitos por Murilo Alvarenga: “Vamos dançar, comadre, vamos dançar, compadre, vamos dançar que esse choro é de amargar / Oi sanfoneiro toca, oi toca sanfoneiro, oi toca, toca o ‘Tico-tico no fubá’...”. Com o subtítulo “Vamos dansar comadre”, a versão deles – classificada no rótulo como “choro sapeca” – acabou chegando ao mercado somente em outubro, um mês depois da bolachinha de Ademilde.

     

    “Choro sapeca” é também o gênero que consta numa partitura para piano solo – sem parte de canto, portanto – editada pela Irmãos Vitale e pertencente à coleção José Ramos Tinhorão, do IMS. Acima do título aparece impresso um oferecimento: “Aos bons amigos e distintos auxiliares da Casa Beethoven Francisco Riso, Alfredo Capucci e Augusto de Carvalho, dedica o Autor”.


     

    Na década de 1940, a composição era uma febre. Ao anunciar a sua execução por um... quarteto de violinos!, o redator do Correio da Manhã de 08/11/1944 foi categórico: “Hoje em dia parece fora de dúvida considerar ‘Tico-tico no fubá’, o famoso chorinho de Zequinha de Abreu, como um número imprescindível em qualquer programa musical brasileiro. Efetivamente, pelo seu ritmo gostoso, pela sua expressão popular, muito brasileira, muito nossa, ‘Tico-tico no fubá’ merece a maior consideração por parte de nossos band-leaders e orquestradores, pois mesmo fora do Brasil esse chorinho tem merecido justas homenagens”.

     

    O que era verdade: com a política da boa vizinhança em curso, o “Tico-tico” ganhou status de “samba” e projeção mundial, graças à sua inclusão em pelo menos sete filmes estadunidenses: “Alô, amigos” (1942) – a cena marca o primeiro e antológico encontro entre o Pato Donald e Zé Carioca, outro aniversariante de 2021 (80 anos!), que “sola” a música em seu guarda-chuva –, “Rio Rita” (1942) – no qual a lendária dançarina carioca Eros Volusia evolui ao som da composição (um trecho da sua apresentação pode ser visto no trailer do filme) –, “A filha do comandante” (1943) – em número musical com Don Loper e Maxine Barrat –, “Escola de sereias” (1944) – com Ethel Smith e seu inconfundível órgão Hammond –, “Melodias roubadas” (1944) – segundo informação publicada na seção “Cine-revista”, de O Cruzeiro, em 07/04/1945 –, “É um prazer” (1945) – com a controversa patinadora Sonja Henie – e “Copacabana” (1947), aqui na arrebatadora interpretação de Carmen Miranda.

     

    A Brazilian Bombshell morava desde 1939 nos Estados Unidos e, como informa Ruy Castro em “Carmen” (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), apresentou o choro num programa de rádio lá nos States em 1940, com o Bando da Lua... e uma letra diferente, feita pelo líder do conjunto, Aloysio de Oliveira, antes mesmo dos registros de Alvarenga e Ranchinho e Ademilde: “O tico-tico tá, tá outra vez aqui, o tico-tico tá comendo meu fubá / Se o tico-tico tem, tem que se alimentar, que vá comer umas minhocas no pomar...”. Essa versão foi gravada para a Decca por Carmen Miranda apenas em janeiro de 1945, novamente acompanhada pelo Bando da Lua. No filme “Copacabana”, como bem observou Ruy Castro, a Pequena Notável cantou “a duzentos por hora”, fazendo a composição entrar de vez no repertório dos músicos daquele país.

     

    Pedro Caetano e Sá Róris resumiram a chegada do nosso samba no exterior com a gingada “Sopa no mel”, de 1947, que traz o “Tico-tico” mencionado nos versos interpretados pelos Quatro Ases e um Curinga. Neste mesmo ano, a primeira letra do choro, de Eurico Barreiros, eternizada por Ademilde Fonseca, voltaria a ser gravada, desta vez pelos Anjos do Inferno, com uma ligeira alteração no início, fazendo surgir a versão provavelmente mais cantada até hoje: “O tico-tico lá, o tico-tico cá...”. Assim como a de Carmen, esta se caracteriza pela velocidade, que acabou se tornando uma marca registrada da música – a própria Ademilde, no quesito aceleração, também não deixava barato, como se ouve nesta regravação feita para o LP “Choros famosos”, de 1962.

     

    Zequinha de Abreu provavelmente chegou a escutar a pioneira execução em disco do seu choro pela Orquestra Colbaz em 1931, mas não viveria para saborear o sucesso estrondoso de sua obra-prima, que, como assinalam Jairo e Zuza, “recebeu dezenas de gravações, tornando-se uma das músicas brasileiras mais gravadas de todos os tempos, no país e no exterior”. Os registros feitos ainda na época dos 78 rotações nos dão uma boa ideia de sua aceitação por intérpretes nacionais e estrangeiros: somente entre 1941 e 1962, ela passou pelas mãos de artistas dos mais variados estilos e vertentes musicais, como Lee Broyde, Ethel Smith, Ray Ventura, o duo Garoto e Carolina Cardoso de Menezes, Zaccarias e sua orquestra, Mário Gennari Filho, Pixinguinha e Benedito Lacerda, Percy Faith, Quarteto Continental, Heriberto Muraro, Roberto Inglez, Sivuca, Tobias Troisi, Trio Surdina, Waldir Azevedo e até Ray Conniff! Dois registros bastante curiosos são o do comediante, showman e assobiador paulista William Fourneaut, de 1952, e o dos Vocalistas Modernos, que apresentaram em 1959 uma versão solfejada do choro.

     

    Era inevitável que o “Tico-tico” passasse a ser escutado em outros idiomas – e surgiram mais parceiros que Zequinha de Abreu não chegou a conhecer. Em 1944, as Andrews Sisters inauguraram a versão de Ervin Drake – onde o passarinho vira “the cuckoo in my clock” (o cuco no meu relógio) –, que também ganhou a voz da bela atriz Elena Verdugo no ano seguinte. Em 1949, Henri Decker gravou a letra em francês feita por Jaques Larue.  E a pequena ave, de tanto bater as asas, atravessou o globo inteiro: existe em nosso acervo um raro fonograma em japonês, interpretado por Mutsuko Okanishi com acompanhamento de um jazz-band da gravadora RCA Victor (vai aqui um agradecimento especial à cantora e instrumentista nipo-brasileira Masako Tanaka, a Mako, integrante de grupos como PianOrquestra e Mulheres de Chico, que gentilmente escutou a gravação e traduziu as informações do rótulo!).

     

    Há quem veja semelhança entre o início da música e um pequeníssimo trecho do “Concerto para piano nº 1”, em Dó maior, Op. 15, de Beethoven, mais especificamente algumas notas executadas rapidamente no terceiro movimento, “Rondó: Allegro scherzando”, pouco antes do seu terceiro minuto – a curta frase melódica vai se repetir algumas vezes no minuto seguinte. Apesar de certa similaridade sonora, as melodias são diferentes. Impossível saber se o trecho imaginado pelo gênio de Bonn teria mesmo servido de inspiração para o brasileiro.

     

    A história de Zequinha de Abreu foi mostrada na telona em filme da Vera Cruz dirigido por Adolfo Celi e intitulado, muito apropriadamente, “Tico-tico no fubá” (1952), com Anselmo Duarte no papel principal e as atrizes Tonia Carrero e Marisa Prado, além da música original de Radamés Gnattali. Embora baseada em fatos reais, é uma versão bastante romanceada da vida do compositor. A partir dos 26m10s, está encenada a primeira audição do choro, aquela em Santa Rita do Passa Quatro – mas o filme, numa tremenda licença histórico-poética, dá a entender que ele foi sendo improvisado na hora por Zequinha ao piano, após este esbarrar acidentalmente nas teclas do instrumento! Logo depois, ele tira a pauta do bolso e escreve a melodia. Coisas do cinema...

     

    É impossível listar todos os registros da música, nacionais e estrangeiros, mas há no YouTube uma boa amostra de como o “Tico-tico”, além de conquistar intérpretes tão diversos, interage bem com os mais variados estilos e ritmos: temos Charlie Parker – com direito a muito improviso –, Paco de Lucia – a quatrocentos por hora –, o pianista, showman e virtuose Liberace, o sempre maravilhoso Ney Matogrosso, a versão roquenrou de Pepeu Gomes, o inacreditável encontro entre Sivuca e Hermeto Pascoal, a arrepiante execução da Orquestra Juvenil da Bahia e o trompetista-assobiador Antônio José de Sousa, o Pelé Bico de Ouro de Várzea Alegre (CE), numa execução pra lá de singular. Existe também uma letra em esperanto feita por Sylla Chaves, “Zonotriko em la faruno”, que Aurora – irmã de Carmen – Miranda gravou em 1970 no LP “Brazilo kantas por pli bona mondo” (O Brasil canta por um mundo melhor).

     

    Vale lembrar que “tico-tico no fubá”, no passado, virou jargão futebolístico, designando o modo de jogar do time que ciscava daqui e dali, trocando passes para os lados, sem efetividade no ataque. Hoje em dia a expressão serve para rotular os relacionamentos sem compromisso, além de batizar uma receita de bolo... de fubá, claro! Quanto à música, esta continua a ser tocada mundo afora. Afinal, existe algum motivo para a gente gostar tanto do “Tico-tico no fubá”? Existe, sim, e quem explica direitinho, com seu bandolim de ouro em punho, é o genial Hamilton de Holanda, em seu ótimo canal do YouTube!

     

    Link para a playlist completa, com as 36 ocorrências de "Tico-tico no fubá" em nosso site:

    https://discografiabrasileira.com.br/playlists/244550/tico-tico-no-fuba

     

     

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