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    Um brinde a Nelson Cavaquinho: os 110 anos do sambista que ‘viveu em estado de poesia’

    Pedro Paulo Malta

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    Das novidades que a música popular brasileira conheceu na década de 1960, Nelson Cavaquinho foi uma das mais marcantes. Com sua voz anasalada e rouca e a maneira única de tocar violão (a mão direita beliscando as cordas só com o polegar e o indicador), caiu nas graças do povo do samba, este recém-apresentado a novas estéticas, como o canto contido e pungente de Nara Leão (estreante em disco em 1964) e a voz ancestral de Clementina de Jesus, revelada no show “Rosa de ouro”, de 1965. Já a estreia fonográfica de Nelson foi em 1968, como uma das atrações do disco coletivo “Fala, Mangueira”, produção de Hermínio Bello de Carvalho lançada naquele ano pela Odeon, com o cast verde-e-rosa completado por Cartola, Carlos Cachaça, Odete Amaral e a própria Clementina.

    Primeiro registro daquele canto e violão incomuns que já eram bem conhecidos nos bares do Rio de Janeiro: fosse o badalado Zicartola (Rua da Carioca, Centro do Rio), fossem os botequins de toda a cidade, onde os populares se aglomeravam em volta daquele tipo pitoresco: baixinho, barrigudo, com óculos fundo-de-garrafa, cabelos prateados penteados para trás e quase sempre um cigarro entre os dedos da mão direita que tocava seu violão. “Um homem que viveu em estado de poesia”, como definiu o pesquisador e crítico José Ramos Tinhorão, sintetizando o caráter desapegado e hedonista deste carioca que, nos 110 anos de seu nascimento (29 de outubro de 1911), ainda é lembrado como um dos grandes nomes da história do samba.

    É bem provável, no entanto, que os companheiros notívagos de copo não fizessem ideia da vasta obra gravada daquele senhorzinho dissonante, autor de tantas músicas que já rodavam nos toca-discos desde 1943. Foi nesse ano, quando ainda assinava suas composições como Nelson Silva, que teve os primeiros sambas lançados em disco, na voz de Ciro Monteiro: primeiro “Apresenta-me aquela mulher”, que saiu em setembro, e depois “Não te dói a consciência”, em outubro. O compositor e o cantor se conheceram na Rádio Mayrink Veiga, aproximados por um amigo em comum, Augusto Garcez, que co-assina ambos os sambas – o primeiro também com G. de Oliveira e o segundo com Ari Monteiro.

    Garcez aparece também como co-autor das outras duas composições de Nelson que Ciro lançou na sequência: “Aquele bilhetinho” (deles com Arnô Canegal, em 1945) e “Rugas” (mais uma com Ari Monteiro, em 1946). “As rugas fizeram residência no meu rosto”, diz o verso central deste último samba, inaugurando na discografia de Nelson Cavaquinho um dos temas mais caros a ele, a velhice/morte, presente também em seu lançamento seguinte, o samba “Degraus da vida” (co-assinado por Cesar Brasil), de 1950. 

    “Já estou envelhecido, acabado, por isso muito eu tenho chorado”, cantou na primeira gravação o grande Roberto Silva, então recém chegado aos 30 anos. Outro clássico do compositor lançado em disco pelo Príncipe do Samba é “Notícia”, em que o sujeito comunica ao ex-amigo que sabe ter sido traído por ele: “O cigarro deixado em meu quarto é a marca que fumas, confessa a verdade, não deves negar...” Neste samba, lançado em 1955, Nelson reparte a autoria com Norival Bahia e Alcides Caminha – este último mais conhecido como autor de revistinhas de quadrinhos eróticos, que assinava com o pseudônimo Carlos Zéfiro.

    Outra referência tabagista num samba sobre ex-amigos está no melodioso “Cigarro” (de Nelson com José Batista), gravado por Risadinha em 1953. No mesmo ano e na mesma voz saiu “Minha fama”, no qual Nelson Cavaquinho – aqui acompanhado por Magno de Oliveira – volta ao tema da finitude, agora autorreferente: “Quando eu morrer deixarei minha fama, deixarei no mundo quem me ama...”

    No entanto, a composição que Nelson considera seu autorretrato é “Caridade” (assinada com Ermínio Vale), lançada em 1954 por Blecaute. “É meu samba mais sincero”, define no documentário de curta metragem “Nelson Cavaquinho”, feito em 1969 por Leon Hirszman (assista aqui ao filme).

    Já entre as cantoras que deram voz ao poeta boêmio destacam-se duas grandes estrelas. Uma delas é Elizeth Cardoso, que em 1953 registrou em disco “Amor que morreu”, dele com Roldão Lima e Gilberto Teixeira. A outra é Dalva de Oliveira, que espetou o ex-marido Herivelto Martins com a primeira gravação do samba “Palhaço”, feita em 1951 e que Nelson assina nas companhias de Osvaldo Martins e Washington – assim mesmo, sem sobrenome.

    A propósito deste último samba, há uma nota curiosa publicada no jornal Diário Carioca (02-03-1951). Os leitores da coluna Discoteca ficaram sabendo que “Palhaço” era anterior ao desenlace ruidoso de Dalva e Herivelto, como assegurou o titular da seção, Paulo Medeiros, que aproveitou para pôr em dúvida a participação dos parceiros de Nelson na composição. “Posso afirmar que já conheço esse samba há vários anos. Com um autor só – Nelson Cavaquinho, no caso. Hoje são muitos. Paraquedistas talvez. Mas o samba é antigo.”

    Nelson nunca escondeu de ninguém o costume que tinha – e que estava longe de ser exclusividade sua – de oferecer parceria a quem lhe providenciasse diárias de hotel, refeições, acesso a emissoras de rádio ou mesmo dinheiro. O mesmo não vale para seu principal parceiro, Guilherme de Brito, que compunha de fato e assim começou a fazê-lo com ele num botequim pé-sujo da Rua Pedro I, na Praça Tiradentes (Centro do Rio). 

    Foi neste bar – conhecido por “cabaré dos bandidos” – que nasceu o primeiro samba da parceria, “Garça”, lançado pela cantora Ruth Amaral num disco de agosto de 1955. A partir daí, entenderam-se tão bem que passaram a funcionar como “uma fábrica de sambas”, como definiu o próprio Nelson no programa MPB Especial, da TV Cultura, em 1973 (veja aqui). 

    É deles “Pranto de poeta”, segundo samba gravado da parceria, lançado pela cantora Luci Rosana em março de 1957. Já em setembro desse mesmo ano foi a vez de Ari Cordovil gravar “Palavras malditas”, criação da dupla que visita a poesia do paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914). Há também os sambas de Nelson e Guilherme que trazem outro parceiro assinando a composição: casos de “Luto” (com Sebastião Nunes), lançado por Júlio Cesar em 1960, e “Cinza” (deles com Renato Gaetani), que saiu em 1963 na voz de Nerino Silva.

    Nenhum deles, no entanto, teve a repercussão do maior sucesso da dupla lançado em 78 rotações, “A flor e o espinho”, do famoso verso “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”. No perfil biográfico “Nelson Cavaquinho: enxugue os olhos e me dê um abraço” (Editora Relume Dumará, ano 2000), Guilherme de Brito contou a história desta composição em entrevista ao autor do livro, Flávio Moreira da Costa. “A primeira parte é minha, a segunda, do Nelson”, disse o compositor. “Tem mais um cara aí (Alcides Caminha, registrado como co-autor) que entrou na parceria, mas entrou porque pagou um dinheiro pro Nelson, né?”

    No mesmo depoimento, Guilherme nos leva de volta à região da Praça Tiradentes – precisamente à leiteria vizinha ao “cabaré dos bandidos”. “Tinha uma mulher na Rua Pedro I, uma mulher muito bonita, escandalosa, uma mulher de dancing que quando entrava na leiteria ficava rindo”, relembra. “Fiquei impressionado com ela. Até um dia em que eu vinha de Niterói com o (cantor Augusto) Calheiros pra cá, quando saltamos na Praça XV e eu fui tomar uma cerveja de madrugada”, recorda o sambista, que então teve a ideia do verso inicial da composição. “Ali mesmo eu desmanchei o maço de cigarro e escrevi no papel a primeira parte.”

    Com a segunda parte feita por Nelson de bate-pronto (“Cantei pra ele e ele fechou o samba”), “A flor e o espinho” ganhou sua primeira gravação em 14 de fevereiro de 1957, na interpretação de Raul Moreno no estúdio da Todamérica. No ano seguinte foi a vez de Venilton Santos regravá-lo na Odeon, num disco lançado em abril de 1958.

    Entre as outras ocorrências de Nelson no site da Discografia Brasileira estão ainda sambas lançados nos anos 1960, quando ele, enfim, passou a assinar suas composições como Nelson Cavaquinho – o nome artístico que já circulava na imprensa desde a década anterior (às vezes com a variação Nelson do Cavaquinho). São desta época as primeiras gravações dos sambas “Não sou feliz” (com Zé Kéti), lançado por Jorge Goulart em 1960, e “Dona Carola” (com Norival Bahia e Valto Feitosa), que Nerino Silva gravou em 1963.

    Já na era posterior aos discos de 78 rotações vieram novos sucessos de Nelson, lançados em vozes como as de Nara Leão (“Luz negra”, com Amâncio Cardoso, 1964), Elizeth Cardoso (“Vou partir”, com Jair do Cavaquinho, 1965), Paulinho da Viola (“Duas horas da manhã”, com Ari Monteiro, 1972), Clara Nunes (“Minha festa”, com Guilherme de Brito, 1973), Cristina Buarque (“Nome sagrado”, com José Ribeiro e José Alcides, 1974) e Emílio Santiago (“Quero alegria”, com Guilherme de Brito, 1975).

    Sem contar a amiga e discípula Beth Carvalho, que deu voz a outros sucessos da obra de Nelson, como o clássico “Folhas secas” (1973), “Miragem” (1974) e “Se você me ouvisse” (1977), todas da parceria com Guilherme de Brito. E o próprio compositor, que quando passou a gravar seus discos lançou as primeiras gravações de sambas como “Sempre Mangueira” (com Geraldo Queiroz, 1968), “Juízo final” (com Élcio Soares, 1973) e “Quando eu me chamar saudade” (com o fiel Guilherme de Brito, 1972), no qual o menestrel reflete sobre seu legado:

    Mas depois que o tempo passar
    Sei que ninguém vai se lembrar
    Que eu fui embora...

    Versos que, passados 35 anos de sua morte (em 18 de fevereiro de 1986, aos 74 anos), destacamos como uma constatação feliz de um raro equívoco numa obra tão genuína, expressiva e confessional como a de Nelson Cavaquinho.

    Foto: Instituto Moreira Salles / Coleção José Ramos Tinhorão

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