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    Dick Farney, 100 anos: o vozeirão que ensinou o Brasil a cantar ao pé do ouvido

    Pedro Paulo Malta

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    O orientalismo da música russa antecipando o rock numa gaita brasileira em plena década de 1930. 

    Referências aparentemente desencontradas que se reúnem numa única gravação do site Discografia Brasileira: a “Canção da Índia”, composição do maestro Nikolai Rimsky-Korsakov, interpretada por Edu da Gaita em ritmo de fox-swing num disco Columbia de 1939. A história fica ainda mais inusitada quando se sabe que desse registro sonoro participa um dos maiores cantores brasileiros de todos os tempos, aqui na condição de pianista, entrando pela primeira vez num estúdio de gravação.

    Este era Dick Farney, à época com 18 anos e líder do conjunto que acompanhou Edu nesta gravação: os Swing Maníacos, em atividade desde 1937, quando o jazz o desencaminhou de vez dos chopins, ravéis e beethovens que estudava desde muito menino. No casarão onde cresceu, na Rua Júlio Ottoni, no bairro carioca de Santa Teresa, a música acontecia também nos saraus em que, entre tantas atrações, podiam se ouvir o piano clássico de seu pai, Eduardo Dutra e Silva, e o canto lírico da mãe, Iracema.

    Foi menino prodígio enquanto seguiu o script familiar: aos treze, levou o “Prelúdio nº 7” (Chopin) à Rádio Guanabara; aos 15, encarou a “Dança ritual do fogo” (Manuel de Falla) na Mayrink Veiga. Quando caiu no jazz, nem o pai conseguiu segurá-lo: segundo o escritor e jornalista Ruy Castro (“Coleção Folha 50 anos de bossa nova, vol. 2”, 2008), o próprio Eduardo teria participado da criação do nome artístico que ficou no lugar de Farnésio Dutra e Silva – nome que o filho recebeu ao nascer, há cem anos, em 14 de novembro de 1921.

    “Assim nasceu Dick Farney, nome inspirado em Dick Haymes, crooner norte-americano nascido em Buenos Aires que substituiu Sinatra na orquestra de Tommy Dorsey”, conta o crítico e produtor Zuza Homem de Mello no livro “Copacabana: a trajetória do samba-canção” (Editora 34, 2018), destacando o acerto do jovem músico, ao ter seguido “a praxe de adotar um nome artístico sonoro e fácil de memorizar, tão normal no meio dos cantores e atores norte-americanos.”

    Pois foi dessa maneira, no balanço do jazz, que conseguiu um programa exclusivo na Rádio Mayrink Veiga (1940) e, já no ano seguinte, ingressou na orquestra de baile Brazilian Serenaders, dirigida – e regida de mentirinha – pelo empresário Carlos Machado. O ano em que deixou a banda, 1944, foi o mesmo dos primeiros discos como cantor: em junho saiu sua gravação de “The music stopped” (Harold Adamson e Jimmy McHugh), como crooner da orquestra de Ferreira Filho, e em agosto, o registro de “What’s new?” (Bob Haggart e Johnny Burke), com os Milionários do Ritmo.

    Seguiu gravando exclusivamente em inglês, mas só até 1946, quando o compositor João de Barro (Braguinha), que dirigia a gravadora Continental, lhe trouxe o fruto mais recente de sua obra com o parceiro Alberto Ribeiro: um samba-canção em homenagem a uma boate recém inaugurada em Nova York, com o nome de Copacabana. Dick resistiu até onde pôde (“Eu não sei cantar em português!”), mas não houve jeito. O disco que saiu em julho de 1946 trouxe não só a gravação original de “Copacabana”, como também “Barqueiro de São Francisco” (de Alberto Ribeiro com Alcir Pires Vermelho), em arranjos de Radamés Gnattali.

    No ano seguinte veio outro clássico romântico: “Marina” (Dorival Caymmi), que Dick Farney gravou na Continental (19/04) pouco mais de um mês após o primeiro registro, feito pelo consagradíssimo Francisco Alves na Odeon (11/03). No entanto, graças à agilidade de João de Barro, o disco do jovem barítono foi o primeiro a chegar nas lojas, inaugurando, assim, o segmento dos sambas-canção na obra de Dorival Caymmi. Desta mesma linha é “Não tem solução” (de Caymmi, co-assinado por Carlos Guinle), lançado por Dick em agosto de 1950.

    Cantando como quem conta um segredo ao pé do ouvido, apesar do farto material vocal de que dispunha (um senhor vozeirão de barítono), nessa altura ele já não era um mero seguidor do estilo de Bing Crosby, seu grande ídolo na música estadunidense. “Ao cantar, mesmo que suas letras falassem de amores fracassados, o intérprete mantinha o jeito galante, a fleuma, a compostura”, descreve Ruy Castro no livro “A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção” (Companhia das Letras, 2015). “Ou seja, seu samba-canção era sem desespero.”

    E foi assim que, entre um sucesso e outro, Dick foi tentar a sorte em sua meca. “Sem falar inglês, vendi minha baratinha amarela Buick conversível, peguei um avião e fui para os Estados Unidos”, contou a Zuza Homem de Mello, sobre a primeira das três temporadas que viveu lá – a primeira em Los Angeles, as outras duas em Nova York – entre 1946 e 49. Se os trabalhos no rádio e em casas noturnas não o projetaram mundialmente, como imaginava, valeram amizades como as de Tommy Dorsey, Count Basie, Errol Garner e Dave Brubeck, entre outros. Sem contar a primeiríssima gravação do clássico “Tenderly” (Walter Gross e Lack Lawrence), que fez em 1947 e relançou no Brasil em 1954.

    Tachado de americanizado pelos “patriotas” da época, respondeu como Carmen Miranda, em ritmo de samba: “Deus me fez brasileiro / Eu me sinto feliz / Desafio quem prove o contrário / Destas palavras que o meu samba diz”, cantou em “Meu Rio de Janeiro” (Oscar Bellandi e Nelson Trigueiro), lançamento de 1948, quando emplacou novos sucessos românticos, como “A saudade mata a gente” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Esquece” (Gilberto Milfont) e “Somos dois” (Klecius Caldas, Armando Cavalcanti e Luiz Antonio).

    Entre viagens, shows e uma temporada concorrida na Boate Vogue (Copacabana), 1948 ainda lhe deixou algum tempo para fazer suas primeiras gravações de um compositor fundamental em sua discografia, o paulista José Maria de Abreu, autor de “Ser ou não ser” (com Alberto Ribeiro), “Um cantinho e você” e “Ponto final” (ambas com letra do capixaba Jair Amorim).

    Esta última é definida por Zuza Homem de Mello como o “ponto culminante dos sambas-canção do repertório de Dick”. “Nele juntaram-se equilibradamente os elementos que fazem de uma canção um clássico imorredouro”, afirma o crítico e produtor no livro “Copacabana: a trajetória do samba-canção”. “Dick Farney era a voz por excelência do samba-canção e ‘Ponto final’, o seu paradigma. 

    José Maria de Abreu e Jair Amorim são também os autores de outro clássico romântico de seu repertório, “Alguém como tu”, que Dick gravou em 1952 no selo argentino TK, durante uma temporada em Buenos Aires, com relançamento brasileiro pela Continental. Regravada muitas vezes, inclusive pelo próprio Dick, chegou às gerações seguintes em trilhas sonoras de novelas da TV Globo, como “O dono do mundo” (1991), “Quatro por quatro” (1994), “Mulheres apaixonadas” (2003) e a minissérie “JK” (2006).

    Após a volta da Argentina, gravou no início de 1953 mais um sucesso instantâneo, o samba-canção “Perdido de amor”, de outro compositor fundamental em sua discografia, o violonista Luiz Bonfá – autor também de “Sem esse céu” (outra de 53) e “Não sei a razão” (do ano anterior), entre outras canções do repertório. Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, foi outro mestre do violão (entre outras cordas) a ser gravado por Dick, que deu voz a “Nick Bar”, da inusitada parceria com o humorista José Vasconcelos.

    E assim seguiu se alternando entre os pré-bossa-novistas e a música dos Estados Unidos, que nunca saiu de seu repertório (nem de sua preferência), mesmo depois da conversão ao português. Além da já citada “Tenderly”, gravou outros tantos standards de lá, como “You keep coming back like a song” (Irving Berlin) e “Speak low” (Kurt Weil e Ogten Nash), ambas lançadas num mesmo 78 rotações de 1950.

    Mas o fato é que, independentemente do idioma em que cantasse, sua voz potente emitida com delicadeza tornou-se também uma das bases para o que dali a pouco tempo seria a bossa nova. Um dos entusiastas daquele jeito moderno de cantar era o compositor Carlos Lyra. “A minha influência antes de ouvir música brasileira era Cole Porter, Gershwin”, disse a Zuza Homem de Mello o autor de “Influência do jazz”. “Quando eu ouvi o Dick Farney cantando, era parecido com aquilo que eu gostava. Foi um resgate para mim da música brasileira. Passei a ser nacionalista, o que eu não era.”

    Outro compositor que adorava Dick Farney era Tom Jobim, que só em 78 rotações teve seis composições lançadas pelo cantor entre 1954 e 1960. Pois logo no primeiro disco (último de Dick na Continental) veio um golaço: uma composição de Tom com Billy Blanco sobre dois amigos que disputam as atenções e carinhos de uma pequena, de nome “Tereza da Praia”. No dueto da gravação original, Dick duela com Lucio Alves, encerrando a suposta rivalidade que havia entre os dois – alimentada desde 1948, numa jogada promocional que passava pelo envolvimento (genuíno) de seus fã-clubes apaixonados.

    Chamado por Dick de “meu compositor”, Tom Jobim teve outros sucessos lançados em seu vozeirão de travesseiro. Um deles foi o samba “Outra vez”, que saiu em junho de 1954 (quatro anos antes da regravação de Elizeth Cardoso com o violão bossa-novista de João Gilberto), mesmo ano em que participou como um dos intérpretes da “Sinfonia do Rio de Janeiro”, também da parceria de Tom com Billy Blanco. Já em março de 1959 foi a vez de Dick lançar em disco a primeira gravação de “Este seu olhar”, só de Tom.

    Quando a bossa nova se consolidou, na virada entre as décadas de 1950 e 60, manteve seu canto a serviço da música romântica, fosse regravando seus sucessos, fosse incorporando novos sambas-canção a seu repertório. “Nunca aderi aos modismos. Quando senti que a maré não estava para peixe, não fui correndo mudar de estilo. Continuei ao meu gosto, às minhas concepções de arte e ao meu público”, disse à Revista Manchete (07-06-1980), numa entrevista concedida em sua casa em São Paulo – cidade em que vivia há duas décadas e onde seguiu com sua carreira e chegou a ter sua própria casa noturna, o Farney’s Bar, na Praça Roosevelt. “O tino para negócios nunca foi o meu forte.”

    Já na música, dizia-se plenamente satisfeito. “Uma coisa me orgulho de ter realizado: dar as primeiras cartas para a música romântica moderna no Brasil”, disse o cantor, que silenciou de vez aos 65 anos, quando não resistiu às complicações de um edema pulmonar, vindo a falecer no dia 4 de agosto de 1987, na UTI da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

    >> Confira na Rádio Batuta o especial Alguém como tu – A voz terna e moderna de Dick Farney", com roteiro e apresentação de João Máximo.

    Foto: Dick Farney por Santhiago / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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