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    Ai, que saudades do Mário Lago: uma playlist comentada nos 110 anos do criador de ‘Aurora’, ‘Amélia’ e outros sucessos

    Pedro Paulo Malta

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    “Não foi vida jogada fora a que vivi.”

    A frase de Mário Lago, dita já no fim de sua vida longeva, resume bem a intensidade com que atravessou o tempo que se passou entre 26 de novembro de 1911 (seu nascimento, há 110 anos, num sobrado na Rua do Rezende, Centro do Rio) e o fim de sua história, em 30 de maio de 2002. Noventa anos e meio de muita labuta, a começar pelo teatro, no qual trabalhou como autor e depois foi também ator, assim como no rádio, onde atuou e escreveu – com destaque para as novelas que criou na emissora líder de audiência nos anos 40 e 50: a Rádio Nacional. Já na dramaturgia da TV e do cinema deu vida a tipos variados: de militares a padres, de duros a milionários, passando por boêmios – como ele.

    Espanta que ainda tenha sobrado tempo para a militância política: o posicionamento a favor das causas socialistas lhe custou nove prisões, de Vargas (1932) a Medici (1969). E também para se dedicar à composição de sambas, marchinhas, valsas e foxtrotes – alguns lembrados e muito cantados até hoje, como se pode perceber na seleção que trazemos neste texto. Dezoito músicas de Mário Lago devidamente acompanhadas de memórias que o próprio deixou registradas, tanto nas entrevistas que deu quanto nos livros que escreveu (sim, ainda teve isso).

    Memórias como, por exemplo, das primeiras composições, surgidas na década de 1930, enquanto escrevia textos para espetáculos teatrais. Foi numa dessas que, em 1938, veio seu primeiro sucesso, em parceria com o pianista Custódio Mesquita.  “‘Nada além’ era para uma revista, ‘Rumo ao Catete’”, contou Mário no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1999. A música foi feita para uma cena que se passava numa loja chique, com o entra e sai de clientes. “Aí chegava o mendigo na porta. Então, as balconistas iam buscar o mendigo, né? E começavam a oferecer coisas. E ele não aceitava nada.  Até que perguntaram: o que é que o senhor quer? Ele: ‘Nada além, nada além de uma ilusão...’ Foi isso.”

    Convidado por Custódio Mesquita para assistir ao espetáculo, Orlando Silva saiu do Theatro Recreio decidido a gravar não só aquele fox, como também o outro número musical que vinha fazendo sucesso naquele repertório, a valsa “Enquanto houver saudades”, lançada no lado B do mesmo disco, em 1938. Orlando ainda gravaria uma terceira pérola da dupla, o choro “Mentirosa”, em 1941.

    Outra composição da dupla surgida no teatro foi “Sambista da Cinelândia”, composta para um espetáculo de mesmo nome da Casa de Caboclo – companhia teatral do bailarino Duque, que produzia espetáculos de temática caipira, inicialmente encenados no hall de entrada do Cine Teatro São José, na Praça Tiradentes. “Com a mudança para o Teatro Fênix, na esquina de Almirante Barroso com México, uma casa de espetáculo que engolia quase dois mil espectadores, o Duque achou que a proposta de um teatro regional precisava levar uma sacudida”, contou Mário em seu livro de memórias “Na rolança do tempo” (Civilização Brasileira, 1976). Só restava saber se os fãs da Casa de Caboclo – acostumados a cocos, emboladas e cateretês – topariam um espetáculo de sambas. “Finalmente aceitaram – a peça deu duzentas apresentações! – e isso firmou a parceria.”

    Na boca do povo

    Se os anos 1930 seriam lembrados por Mário Lago como a década dos primeiros êxitos fonográficos, sucesso de carnaval ainda era algo a ser alcançado. “Finalmente aconteceu a quarta-feira de cinzas de 1940, quando o Roberto Roberti surgiu à minha frente, animado como se ainda estivesse no baile do Bola Preta”, relembrou em “Na rolança do tempo”. “‘Já tenho o sucesso pro carnaval do ano que vem. Topas entrar na parceria? Escuta só. É daquelas bateu-valeu.’ E sem esperar resposta foi logo mostrando o estribilho, única coisa que existia, assim mesmo, incompleto: ‘Se você fosse sincera / Ô-ô-ô, Aurora / Lá lá lá lá lá lá / Ô-ô-ô, Aurora...’” Mário conta que a marchinha “Aurora” foi concluída naquela mesma tarde, mas que o final não era exatamente como ficou:

    Madame antes do nome
    Você teria agora
    Se você fosse sincera
    Oô Oô, Aurora

    Até que um dia, no Café Nice, onde se encontravam compositores e cantores, o arremate veio numa conversa com outro compositor. “O Roberto Martins disse: ô Mário, isso é sucesso garantido, mas por que você não faz uma coisa? Em vez de repetir esse ‘se você fosse sincera’, vai direto ao ‘oô oô Aurora’”, relatou Mário no programa MPB Especial, da TV Cultura, em 1973.  “Ficou muito mais bonito. Uma sugestão de colega pra colega.”

    Outra boa história que passa pelo mítico café do Centro do Rio é a do sucesso seguinte de Mário Lago, “Ai que saudades da Amélia”, parceria com Ataulfo Alves que estourou no carnaval de 1942. “Amélia nasceu de uma brincadeira na porta do Café Nice”, disse Mário em depoimento ao Museu da TV Brasileira, em 1999. “Era um irmão da Aracy de Almeida que brincava sempre: ‘Amélia que era... Passava, lavava, bordava...’ E nós começamos a brincar com aquilo, sempre em verbos da primeira conjugação”, recorda. “Fui brincando assim, de repente eu parei: isso dá letra de samba.”

    No livro “Na rolança do tempo”, Mário relata que a gravação de “Ai que saudades da Amélia” foi um capítulo à parte: “Orlando Silva tinha torcido o nariz quando o parceiro lhe mostrou a música e o Ciro Monteiro não fizera cara melhor. A opinião de Moreira da Silva tinha sido mais cruel: ‘Marcha fúnebre não pega em carnaval, isso é bonito mas é muito triste.’” O samba, finalmente gravado por Ataulfo Alves, não só pegou, como daria o que falar. “Até hoje as feministas me esculhambam”, queixou-se Mário (no programa Roda Viva), numa das tantas vezes que tentou livrar sua criatura da pecha de “mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”, como se lê no Dicionário Aurélio (sim, ela virou verbete).

    Quando perguntado sobre o tema, Mário costuma ressaltar a solidariedade – e não a submissão – como principal valor daquela “que era mulher de verdade”. Numa entrevista ao Pasquim (15-10-1976), defendeu sua anti-musa contrapondo-a a um samba de Chico Buarque: “Amélia não é o capacho que é a mulher de ‘Com açúcar, com afeto’.” Quando falou à Manchete (31-12-1977), já parecia mais disposto a encerrar o assunto. “Uma história que deu samba, jamais uma posição social”, explicou a Ronaldo Bôscoli, autor da matéria. “Nunca achei a Amélia o símbolo da mulher ideal. Detesto a submissão e o conformismo.”

    Já o outro sucesso da parceria com Ataulfo Alves, o samba “Atire a primeira pedra”, só caiu na boca do povo às vésperas do carnaval de 1944. “Eu estava em São Paulo, trabalhando nos preparativos para a estreia da Rádio Pan-Americana, não acreditando mais que meu novo samba pudesse fazer alguma coisa”, conta Mário Lago entre as memórias de “Na rolança do tempo”. “E sexta-feira me acomodei como pude num trem que mais parecia prateleira de armazém, tanta a gente empilhada.” Só depois de saltar no Rio pôde perceber o quadro favorável. “Quando o táxi passou pela Praça da Bandeira o povaréu estava todo lá e a música que dominava era ‘Atire a primeira pedra’. Foi um frio na espinha, vontade de chorar, de pular do carro e sair abraçando aquela gente toda, sei lá!”

    Ao chegar em casa a emoção só fez aumentar: “O abraço de minha mãe foi falando no sucesso da música. Não me lembrei nem de tomar banho. Larguei a trouxa e parti alucinado para o Nice. Era meio-dia, mais ou menos, e na porta do nosso café, bêbado (coisa que só vi essa vez), o Ataulfo me recebeu com mais gestos do que napolitano: ‘Parceiro, estamos na rua de novo!’” “Ataulfo sempre foi um cavalheiro. Um lordezinho. Eu não: tinha alma de vagabundo”, definiu Mário em entrevista para o documentário “O mundo de um filme” (Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano), de 2008.

    Amores e amigos

    “Atire a primeira pedra” foi lançado em disco por Orlando Silva, o mesmo que já havia gravado “Nada além” e “Enquanto houver saudades”, entre outras músicas românticas de Mário Lago. Entre elas está a valsa “Número um” (com Benedito Lacerda), embora não seja exatamente romântica a maneira como é definida por Mário na entrevista à Manchete: “Um pequeno hino de bordel”. “Esta sim é que merecia uma autocrítica miserável”, ralhou ao Pasquim (1976), voltando a Amélia. “E nessa as feministas não falam.” 

    Antes da gravação original, a valsa com Benedito fez muito sucesso na Rádio Mayrink Veiga cantada por Sílvio Caldas, que antes de receber o apelido de “Caboclinho Querido” – criado pelo locutor Cesar Ladeira – chegou a ser apresentado como “O Número Um”. “Levou mais de um ano cantando essa música, sempre sucesso estourado onde cantasse”, descreve Mário Lago em seu outro livro de memórias, “Bagaço de beira-estrada” (Civilização Brasileira, 1977). “Mas, coisa muito natural no ‘Caboclinho’, esqueceu de gravá-la, deixando o sucesso em disco para o Orlando Silva.”

    Outro destaque do repertório romântico do “Cantor das Multidões” (como Orlando era apresentado por Cesar Ladeira) é “Dá-me tuas mãos”, fox-canção feito com Roberto Martins, parceiro importante e amigo decisivo na carreira de Mário. “Foi um dos caras que mais me estimulou na dedicação à música”, disse na entrevista ao Pasquim (1976), recordando o emprego que teve, de redator-chefe do Departamento de Estatística do Estado do Rio de Janeiro. “Ele dizia: ‘Larga esse negócio de funcionário público. Eu era guarda civil e larguei porque o negócio é música. O tutu tá na música.’”

    Se o faz-me-rir não veio na proporção prometida, composições não faltaram à dupla. Das 17 músicas que fazem de Roberto Martins o parceiro mais recorrente na obra de Mário Lago, destacam-se também a marchinha “Eu quero ver é a pé” (gravada por Arnaldo Amaral em 1941), e sobretudo sambas – entre eles “Que tem você” (lançado por Francisco Alves em 1939), “Leva meu coração” (que saiu em 1945, cantado por Roberto Paiva) e “Bate, bate, coração”, que inaugurou a parceria, em 1937, na voz de Aracy de Almeida.

    Entre os parceiros de Mário Lago, outro amigo querido era Dorival Silva, o Chocolate, que, embora mais famoso como comediante no rádio e na TV, é lembrado também pelos grandes sucessos que compôs para Elizeth Cardoso (“Canção de amor”, com Elano de Paula) e Angela Maria (“Vida de bailarina”, com Américo Seixas). Mas Mário ocupa um lugar especial nesta trajetória, como souberam os leitores da revista Radiolândia (11-09-1954), neste texto de Miguel Curi: “Essa dupla tem uma particularidade: reúne a ‘tradição’ musical de Mário Lago e o ‘noviçado’ de Chocolate. Com Mário, Chocolate inaugurou de vez uma atividade profissional, compondo bem e bastante, deixando de compor por eventualidade.”

    Das onze obras da parceria, a mais conhecida é um lançamento de 1953, na voz de Nora Ney: “É tão gostoso, seu moço”, samba leve porém sofrido, bem ao estilo de Chocolate. “A minha inspiração é o meu sofrimento. Quanto mais me doer a alma e o coração, mais e melhor eu componho. Vê-se logo que o remédio da dor é a música”, disse o parceiro de Mário, na mesma matéria da revista Radiolândia. “A melodia vem de preferência quando ando pelas ruas. A paisagem não importa nem influi; bela ou feia, ela é acessória. O importante é que eu ande e sofra.”

    “Indecente e imoral”

    Já em ritmo de marchinha Chocolate e Mário foram mais sapecas em “Tira a boca do caminho”, que Bill Farr lançou em disco em 1955. Só não contavam que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) impediria a veiculação da música pelo rádio, incomodado com um trecho específico da letra.

    Tire a boca do caminho, menina
    Que eu estou começando a endoidar
    Quando beijo grudo mais que ostra
    E não quero desgrudar

    “Eu fui ao DIP, né?”, contou Mário Lago em 1997, no programa Jô Soares Onze e Meia, do SBT. Só então soube que haviam considerado “indecente e imoral” o verso “Quando beijo grudo mais que ostra”. “Quando eu saí, encontrei o Elói Cordeiro, que era censor, mas censor de teatro, e me perguntou: ‘O que é que houve, Mário?’ Mostrei: olha isso aqui, isso, isso, isso, esse verso aqui, ‘Eu quando beijo grudo mais que ostra”, diz que é imoral. Ele: ‘Não liga não. Sabe qual é o apelido dele? Vicente Boca Murcha. A mulher dele se queixa que há muito tempo ele não gruda.’”

    Outra história de Mário Lago com a censura se deu em “Poleiro de pato é no chão”, que nasceu originalmente como um samba com música de Rubens Soares e letra de Eratóstenes Frazão. Mário entrou na história numa tarde em que estava no escritório da Editora Mangione e viu Rubens entrar desesperado, pois o DIP havia proibido o tal samba de ser gravado. “Era uma música, dele com o Frazão, que anos depois foi gravada com a letra original: ‘Ai, ai, ai, a vida do pobre é penar... Ai, ai, ai, a vida do rico é gozar...’ O DIP cortou essa letra”, contou Mário no programa MPB Especial (1973). “Eu digo: ‘Calma, não desespera. Tem que fazer outra letra.’ Ele: ‘Mas eu não tenho nada, eu tô desesperado. Eu só tenho uma ideia: poleiro de pato é no chão.’ Eu digo: ‘Pego daí!’ E fiz a letra com que se gravou naquele ano. Chico Alves gravou.”

    Mas o maior sucesso de Mário Lago gravado por Francisco Alves foi o samba-canção que compôs – sem parceiro – como tema de uma das muitas novelas que escreveu para a Rádio Nacional. “Chama-se ‘Fracasso’. E ao contrário do que indica o nome, anda fazendo um sucesso danado!”, publicou o jornal A Manhã (18-08-1946), em texto assinado pelo jornalista Brasini, que define a música de Mário como um “hino à dor de cotovelo” ou “fundo musical oportuníssimo para cenas íntimas de evocação sentimental.”

    Ao programa MPB Especial, Mário Lago falou desta parte de sua obra feita sem parceiros. “Eu fiz na música também as minhas tentativazinhas de valsas e principalmente de – vamos dizer assim – libertação”, contou o compositor. “Eu estava sempre ligado a um parceiro. E de repente eu comecei a fazer dentro de mim uns movimentos nativistas, fazer umas coisas sozinho.” Da empreitada resultaram valsas de sucesso gravadas por Carlos Galhardo, como “Devolve” (1940), “Não quero saber” (1941) e “Será” (1945).

    Foto: Mário Lago em 1975 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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