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    Caipira, sim senhor: o Brasil profundo nas memórias musicais de um especialista 

    Pedro Paulo Malta

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    Pela janela, a cidade grande se faz lembrar pelos barulhos: carros, buzinas, o falatório da rua e os ônibus a caminho da esquina dos Três Postos, onde São Bernardo do Campo já é quase Santo André, na região do ABC Paulista. Já do lado de dentro do antigo sobrado, o tempo corre menos depressa: a alvorada, às cinco da manhã, começa com o café sendo preparado com cuidado – a água misturada ao pó delicadamente à medida que é vertida, fumegante, pelo bico da chaleira. No radinho, ligado desde as primeiras espreguiçadas, o que se ouve é música sertaneja. Ou será caipira?

    “Olha, prefiro caipira, viu? Porque é isso que eu sou”, define logo de cara o personagem da nossa história, o aposentado e pesquisador musical Fábio Moreira da Silva, que atualmente é um dos grandes conhecedores da música feita nos rincões do Brasil, com suas modas de viola, rasqueados, cateretês, cururus e tantos artistas e duplas que – se os centros urbanos desconhecem (ou fingem desconhecer) – ainda vivem na memória e no imaginário de cidades do interior como a pequena Porangaba, que dista 168 km de São Paulo capital e foi onde nasceu, há 63 anos, o nosso entrevistado. “Aliás, pode me chamar de Fábio Porangaba, tá?”

    Pois não... Até porque quase todos os causos que serão contados aqui passam por lá – cidade surgida às margens do Rio Feio (como povoado de Tatuí, na região de Sorocaba), mas com um nome alvissareiro: Porangaba vem de “porangáua”, que em tupi significa bela vista ou lugar bonito. Pois é assim que o município ressurge a toda hora na memória de Fábio: seja nas músicas que aprendia pelo rádio – ouvindo com o avô, o agricultor Isaías, ou com o pai, o farmacêutico Florival –, seja na alegria das trupes circenses que passavam por lá na década de 1960, com seus palhaços, trapezistas, animais adestrados... e duplas caipiras.

    A paixão pelas duplas caipiras e músicas que contam histórias seguiu com Fábio, que em algum tempo já contabilizava 5 mil discos em sua coleção. “Acabei tendo que me desfazer, pois não tinha tempo de cuidar e me dava dó ver aquelas preciosidades sendo tomadas por fungos”, conta Porangaba, que então se dedicou a reunir esse repertório no formato MP3 – um acervo que não para de crescer (atualmente são cerca de 200 mil músicas) e já socorreu emissoras como a rádio de sua cidade-sobrenome.

    Foi nessas buscas por gravações raras e certidões de cantores e compositores de antigamente (também presentes em seu garimpo diário) que ele chegou ao site Discografia Brasileira. “É o meu site de referência, né?”, diz o colecionador, sempre atento a eventuais imprecisões no site (“Anoto e mando a correção na mesma hora!”) ou mesmo gravações que ainda não estão disponíveis na base de dados. “Já está a caminho, por exemplo, a discografia completa de Raul Torres em 78 rotações”, avisa Fábio Porangaba, que a essa altura da conversa já tinha deixado as panelas a cargo de Sueli, sua companheira há 33 anos. “Galinhada aqui em casa é comigo, sabe? Mas hoje só desfiei e fritei o frango. Ela é quem vai terminar.”

    Já era hora de terminar também a prosa, mas não sem antes deixarmos uma tarefa com ele pra depois do (mais um!) cafezinho: selecionar suas gravações mais queridas na Discografia Brasileira. Pois o retorno veio caprichado: junto com as 16 músicas, vieram as memórias de Fábio Porangaba.

    CONSELHO (Zalo e Tuta), canção rancheira. Com Zilo e Zalo (Caboclo/1962)

    Uma das minhas alegrias em Porangaba era quando chegava o circo. Pois foi dentro da lona, perto do picadeiro, que eu – com meus sete, oito anos – pude ver os artistas de perto pela primeira vez. Muitas vezes eu vendia doces ou refresco, com aquele tabuleiro pendurado no pescoço, mas o que eu gostava mesmo era de ver os artistas. E Zilo e Zalo foi uma das duplas que vi nessa época. Uma dupla muito especial, não só porque cantava bonito, mas também porque ajudava muita gente – me lembro que quando tinha show de Zilo e Zalo (apelidos dos irmãos Aníbio e Belizário de Souza), eles sempre levavam junto as Irmãs Castro, mulheres pioneiras na história da música caipira.

    BEIJINHO DOCE (Nhô Pai), valsa rasqueado. Com Irmãs Castro (Continental/1945)

    Antes das Irmãs Castro não tinha muita cantora mulher na música sertaneja, né...? Até tinha, mas o sucesso que elas fizeram em disco foi importante pra abrir caminho pras outras artistas muito importantes, como por exemplo as Galvão. E foram elas (que se chamavam Maria de Jesus e Lourdes) que gravaram primeiro o "Beijinho doce", ‘que virou um sucesso da música caipira e é muito cantada até hoje, mesmo tanto tempo depois dessa gravação das Irmãs Castro.

    DISCO VOADOR (Palmeira), moda campeira. Com Palmeira e Biá (RCA Victor/1955) 

    Essas músicas que eu escolhi são na verdade histórias que eu ouvia e ia perguntar pro meu avô, Isaías do Amaral, que tinha fazenda lá em Porangaba: ‘O que é disco voador, vô?’ Ele me explicava lá, do jeito dele. Falava dos alienígenas, aquelas coisas todas, e eu nem chegava a me assustar, pois não sabia o que era nada daquilo. Mas sei que eu ouvi essa música muitas vezes, tanto no circo quanto no rádio.

    MILAGRE DE TAMBAÚ (Palmeira e Teddy Vieira), toada. Com Palmeira e Biá (RCA Victor/1955)

    Palmeira é um personagem muito importante na história da música caipira: além de ter sido um compositor muito bom, foi um dos fundadores da gravadora Chantecler, que lançou tantos outros artistas. Até hoje tenho amizade com a filha dele, a Cláudia, que me conta as histórias do Palmeira (nome artístico de Diogo Mulero), artista que infelizmente morreu cedo, com pouco mais de 40 anos. Fumava muito, morreu disso.

    COURO DE BOI (Palmeira e Teddy Vieira), toada. Com Palmeira e Biá / Caxangá Paulista – declamação (RCA Victor/1954)

    Essa é outra música que o Palmeira compôs – também em parceria com Teddy Vieira – e que ele canta o Biá (Sebastião Alves da Cunha), com quem ele formou uma dupla importante. Antes, ele já tinha cantado com Piraci (Miguel Lopes Rodrigues) e depois com Luizinho (Luiz Raimundo). 

    BALDRAMA MACIA (Arlindo Pinto e Anacleto Rosas Jr.), moda campeira. Com Palmeira e Luizinho (Continental/1948) 

    Das histórias que são contadas nas letras de música caipira essa é uma das minhas preferidas. Presta atenção nesses versos: pela maneira como ele descreve o cavalo, os enfeites e a baldrama (ou baldrana, que é como chamam o capacho que vai sobre o pelo, junto da sela), você praticamente consegue enxergar o bicho na sua frente. E que história mais linda!

    FALCÃO DE PENACHO (Piraci e Lourival Santos), cururu. Com Tonico e Tinoco (Continental/1955)

    Me lembro de Tonico e Tinoco em Porangaba pouco depois de terem feito o filme "Obrigado a matar" (1965), que aliás foi gravado lá perto, em Bofete, com a participação do meu tio – Pedro Moreira era o nome dele. Nessa gravação eles cantam um cururu, tipo de música que eu ouvia muito nos meus tempos de menino, com os cantores improvisando como no repente.

    CARRO DE BOI (Tonico), toada. Com Tonico e Tinoco (Caboclo/1961)

    Quando Tonico e Tinoco iam se apresentar no circo de Porangaba, me lembro que o cinema da cidade ficava completamente vazio. Todo mundo se apinhava no circo para ver aqueles dois. Todo mundo sentado naqueles bancos de madeira e o chão todo coberto de casca de arroz. Aliás, eu e meus amigos é que levávamos as sacas de casca de arroz pra cobrir o chão – aquilo coçava pra diabo! Em troca, o dono do circo deixava a gente entrar de graça. Era o brinde.

    BURRÃO DE AÇO (Serrinha e Ado Benatti), rasqueado. Com Serrinha e Caboclinho (Continental/1957) 

    Nessas histórias que são contadas em forma de música eles descreviam o que se passava na vida deles. A vida como era mesmo. E já notou como tem história com bicho? É pássaro, boi, vaca, carneiro, cavalo... E nessa está a história do sujeito que se garantia na companhia desse burro que ele adorava. Quem canta é o Caboclinho (Marino Rabelo), que morreu por essa época, com o Serrinha (Antenor Serra), que também fez a música – com Ado Benatti – e era sobrinho do Raul Torres.

    A MORTE DA MULA PRETA (Raul Torres), toada. Com Raul Torres e Florêncio (Copacabana/1957)

    Essa foi outra história que marcou a minha infância, que ouvi com meu avô Isaías no rádio e depois quis saber mais: ‘Mas vô, por que a mula morreu?’ E aí ele contava, falava da cobra e aquilo me ligava com a realidade. A vida daqueles homens que era contada nessas músicas. E essa composição é de um ícone da música caipira, o Raul Torres, que aliás era da mesma cidade do meu avô, Botucatu.”

    CABOCLA TEREZA (Raul Torres e João Pacífico), toada. Com Raul Torres e Serrinha (Victor/1940)

    "Essa é outra música muito bonita, assim como a história: era comum na minha infância as gravações terem declamações como essa", conta Fábio Porangaba, assinalando uma das marcas de João Pacífico e Raul Torres, considerados os criadores da chamada toada histórica – gênero musical que mescla o canto com declamação de poesia. “Cabocla Tereza” seria o segundo exemplar do gênero, feita na sequência da primeira, “Chico Mulato”, também de João Pacífico e Raul Torres.

    A PROFESSORA E O VAGABUNDO (Moreno e Moreninho), toada. Com Moreno e Moreninho (Caboclo/1962) 

    Outra história bonita é a dessa música, contada de uma maneira muito visual. Parece até um filme. Foi um dos grandes sucessos de Moreno e Moreninho (os irmãos mineiros Pedro e Joao Cioff), uma dupla que gravou muito: mais de 80 discos. Depois tiveram loja de discos perto do Jardim da Luz, em São Paulo. Foi lá, onde eu frequentava, que conheci os dois, já no fim da década de 1970. Com o Moreninho, que viveu até 2008, tive até um pouco mais de contato: me lembro que ele estava triste, pois tinha perdido toda a coleção de discos numa enchente. Não consegui recuperar os LPs, mas juntei todas as gravações desses discos num pendrive e mandei pra ele.

    PAINEIRA VÉIA (José Fortuna), valsa. Com Zé Fortuna e Pitangueira (Odeon/1959) 

    José Fortuna foi outro grande compositor da música caipira. Muito bom! E aqui ele pode ser ouvido na dupla com o irmão dele, Pitangueira (apelido de Euclides Fortuna). Quando essa dupla surgiu, se apresentava como Os Maracanãs – e foi assim, com esse nome, que fizeram as primeiras apresentações no rádio e lançaram os primeiros discos de 78 rotações. Depois é que passaram a usar os nomes Zé Fortuna e Pitangueira.

    A MORTE DO CARREIRO (Zé Carreiro e Carreirinho), moda de viola. Com Zé Carreiro e Carreirinho (Continental/1951) 

    Não cheguei a conhecer o Zé Carreiro, que morreu há muito tempo (1970), mas o Carreirinho, que viveu até recentemente (2009) eu conheci bem. Ele era de Bofete, onde hoje tem um busto em homenagem a ele. Me lembro o tanto que a gente tentava puxar pela memória dele, mas ele no fim já não se lembrava de muita coisa. Casou-se muitas vezes, umas quatro ou cinco, e no fim acabou sem dinheiro...

    PASSARINHO PRISIONEIRO (Nhô Belarmino), canção. Com Nhô Belarmino (RCA Victor/1954) 

    Nhô Belarmino fez muito sucesso em dupla com a Nhá Gabriela, esposa dele. Era outro artista de circo: ele tinha um circo, inclusive. Só que essa música aí eu escolhi por uma lembrança feliz que eu tenho: tinha uma mercearia no Centro de Porangaba – uma loja que vendia de tudo – em que juntava gente na porta pra ouvir o dono declamar uma letra: era a letra do "Passarinho prisioneiro". Esse dono era o Seu Veríssimo Machado, que morreu com mais de cem anos.

    COLCHA DE RETALHO (Raul Torres), guarânia. Com Cascatinha e Inhana (Todamérica/1959) 

    Foram os maiores vendedores de discos de 78 rotações no tempo deles: eram os recordistas absolutos! Nem Tonico e Tinoco vendiam tanto. E me lembro bem de ver os dois no circo de Porangaba cantando justamente essa música, "Colcha de retalhos". Aquelas vozes maravilhosas que o povo tinha que fazer silêncio para ouvir: é que nessa época, da minha infância, o circo não tinha microfone nem nada: era no peito mesmo que os cantores se apresentavam. E como era bonito!

    Na foto: Fábio Porangaba e o 78 rotações de "Falcão de penacho" / Foto de Adão Pedro de Oliveira

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