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    ‘Marina’ faz 75 anos: a queixa que deu samba num páreo entre quatro vozes

    Pedro Paulo Malta

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    Fosse Marina, a morena Marina, uma moça do século 21, é provável que seu companheiro não ousasse reclamar de sua maquiagem. Que ele tivesse que engolir a zanga com o fato de ela ter pintado o rosto que seria, imaginem, só dele. “De mal com você” estaria, isso sim, a própria musa, nem aí pro moço com suas reclamações e os verbos conjugados no imperativo. Mas o fato é que, na época do lançamento do samba-canção “Marina”, em 1947, o eu-lírico da composição de Dorival Caymmi era um autêntico retrato de seu tempo.

    Um retrato que, na forma de um samba-canção de melodia inspiradíssima, se tornou um dos grandes sucessos da música brasileira naquele ano, quando foi lançado em nada menos que quatro gravações: uma com Francisco Alves, outra por Dick Farney, uma outra com Nelson Gonçalves e ainda a interpretação do próprio Dorival Caymmi. A primeira que o público conheceu, lançada há 75 anos (em maio de 1947), foi a de Chico Alves, com acompanhamento da Orquestra Odeon dirigida pelo maestro Lírio Panicali.

    “Como tudo que vinha em sua voz, o sucesso era uma barbada”, escreveu Ruy Castro no livro “A noite do meu bem” (Companhia das Letras, 2015). “No dia 19 de abril, na Continental, antes que o disco de Chico chegasse às lojas, Dick Farney também gravou ‘Marina’ – por artes de Braguinha (NR: então diretor da gravadora Continental) e com as bênçãos do próprio Caymmi. Quebrava-se ali um acordo mudo, de que o cantor que lançasse uma música teria pelo menos um ano de exclusividade sobre ela.”

    Os rótulos das gravações de ‘Marina’ lançadas logo após a original, feita por Francisco Alves na Odeon: a de Dick Farney, na Continental, e as de Nelson Gonçalves e Dorival Caymmi, na RCA Victor. Fotos IMS / Coleção José Ramos Tinhorão

    Assim, nos três meses seguintes à gravação original, saíram as outras interpretações de “Marina”: a de Dick em junho, a de Nelson Gonçalves em julho e a de Dorival Caymmi em agosto. “Nesse páreo, inédito na canção brasileira, que derrubava um tabu adotado por nossas gravadoras na época, que não admitiam o lançamento de uma composição por mais de um intérprete, um dos quatro jóqueis deveria ser o vencedor”, escreveu o crítico Zuza Homem de Mello em seu livro “Copacabana” (Sesc e Editora 34, 2017). “O jóquei foi Dick Farney”.

    Chama atenção o fato de esta gravação ser, das quatro, a mais modesta em termos de acompanhamento: em vez de grandes orquestras (como nas gravações de Francisco Alves e Nelson Gonçalves) ou conjunto regional (como o que toca com Caymmi), é o próprio Dick que se acompanha ao piano. “Nem precisava de mais nada”, avalia Ruy Castro (“A noite do meu bem”), antes de definir aquele samba-canção como um marco na trajetória de seu compositor.

    “Aquela era a consolidação de uma nova fase de Caymmi, iniciada com ‘Marina’ – a dos sambas urbanos, masculinos – e que continuaria pelos anos 50, com pelo menos outra meia dúzia de obras-primas”, afirma o escritor, em referência a “Só louco”, “Tão só”, “Nem eu”, “Não tem solução”, “Sábado em Copacabana”, “Você não sabe amar” e outros sucessos em ritmo de samba-canção. “Os puristas não entenderam assim, e vergastaram-no por estar ‘se afastando das raízes’."

    No entanto, é possível que os mesmos puristas tenham aprovado a gravação feita por Caymmi, que para acompanhá-lo escolheu um músico – então pouco conhecido – que costumava ouvir na Rádio Mauá. “Era o Jacob do Bandolim, um virtuoso, que trabalhava numa vara de Justiça ali perto. Fiz amizade com ele”, conta o compositor na biografia “Dorival Caymmi: o mar e o tempo”, de sua neta Stella Caymmi (Editora 34, 2001), a quem falou, satisfeito, do resultado final da gravação: “O Jacob abria com uma introdução muito rebuscada, eu cantava ‘Marina’, ele fazendo aquele floreio, dois violões, o Dino Sete Cordas e o Meira e Canhoto no cavaquinho, um pandeiro e um reco-reco. No contrabaixo, Tarzan.” 

    E assim surgiu a mais “sambada” das quatro gravações que puseram “Marina” nas paradas de sucessos de 1947. Na revista A Scena Muda, por exemplo, todos esses registros figuraram na lista dos dez discos mais vendidos em 14 edições, ao longo do segundo semestre. Logo vieram também outras gravações, sendo três em 78 rotações: uma do trompetista Francisco Sergi e Sua Orquestra (1950), uma do pianista de concerto Jacques Klein (1955) e ainda outra de Dick Farney (1954), desta vez acompanhado de grande orquestra e cantando a repetição da música em inglês, com versos do estadunidense Al Stillman. 

    O sucesso de “Marina” – regravado outras vezes pelo próprio Dorival, que aqui alcança um de seus maiores sucessos populares (se não o maior) – renderia também boas histórias, como esta, contada no livro de Stella Caymmi: “Muitos anos depois, Caymmi se viu em apuros quando em um show seu foi abordado por um sujeito bastante alcoolizado que se dizia o marido da Marina e disposto a uma boa briga. Mal sabia ele que a fonte de inspiração de Caymmi para compor ‘Marina’ não poderia ser mais inocente. Um dia, seu filho Dori se aborrecera com ele e sapecara-lhe um ‘tô de mal com você’.”

    O próprio compositor falou do surgimento da música ao cronista Paulo Mendes Campos, que transcreveu o relato do baiano numa matéria sobre ele publicada na Revista da Música Popular – edição nº 4, de janeiro de 1955. “Ao sair de casa, meu filho Dorivalzinho me disse de cara zangada: ‘Estou de mal.’ Na rua, essa frase ficou martelando minha cabeça. ‘Estou de mal, estou de mal, estou de mal...’”, relembrou Caymmi. “Enquanto ia à rádio, comprava umas coisas, andava nas ruas, a melodia e a letra foram se compondo em minha cabeça. No fim do dia, a música estava pronta.”

    Inúmeros artistas gravaram o samba-canção, com destaque para algumas gravações marcantes. Como o piano-solo de Ary Barroso, em 1958. A discoteca dançante de Gilberto Gil, em 1979. O dueto bluesy e inusitado de Cássia Eller com Hermeto Pascoal, em 1994. E o próprio Dori Caymmi, com sua versão intimista neste registro da TV Cultura em 1984.

    Foto: o rótulo do disco da Odeon que saiu em maio de 1947, com gravação original de ‘Marina’ (Dorival Caymmi), na voz de Francisco Alves / IMS / Coleção José Ramos Tinhorão 

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