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    Os 120 anos de Carlos Cachaça: um brinde aos tempos idos nunca esquecidos

    Pedro Paulo Malta

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    Baluarte da Estação Primeira de Mangueira, na qual fundou a primeira ala de compositores de que se tem notícia na história do samba. Carnavalesco num tempo em que esta função não tinha a visibilidade – nem o nome – que tem hoje. Orador oficial da agremiação nas recepções a comitivas de outras escolas e visitantes ilustres. Compositor de sambas com os quais a verde-e-rosa desfilou em seus primeiros carnavais, boa parte deles em coautoria com Cartola, seu principal parceiro. E maior conhecedor e contador de histórias da Mangueira (inclusive em livro), morador que era de uma das primeiras casas construídas no morro.

    Por isso é de certa forma surpreendente que o nome de Carlos Cachaça – o dono desses feitos, entre outros serviços prestados ao samba – resulte em apenas duas ocorrências quando digitado na busca do site Discografia Brasileira: como autor de “Não quero mais” e “Quem me vê sorrir”. Mas o fato é que até a década de 1960 (quando termina a era dos discos de 78 rpm) a história das escolas de samba do Rio de Janeiro corria, em boa parte, paralelamente ao que a indústria fonográfica levava ao público. Nada de muito representativo, exceto por esparsos sambas-enredo e outros, de terreiro, produzidos pelos compositores das escolas – caso das duas composições de Carlos Cachaça. Menos mal que ambas rendem boas histórias a serem contadas... 

    Como a primeira delas, o samba “Não quero mais”, que Aracy de Almeida lançou em disco no fim de 1936, com acompanhamento do conjunto regional RCA Victor. Primeira composição gravada de Carlos, que teria todos os motivos do mundo para comemorar, não fosse uma surpresa: no selo do disco Victor 34125 aparecia ao lado do seu nome, no espaço dedicado à autoria, o nome de José Gonçalves – outro personagem importante da Mangueira, mais conhecido por Zé da Zilda (ou também Zé Com Fome), mas que não tinha feito esta composição com ele. Trata-se de um samba do início da década de 1930, inicialmente sem segunda parte, como aliás a Estação Primeira cantou em seu desfile no carnaval de 1936. Letra e música desta primeira parte são de Carlos, como conta Marília Trindade Barboza no perfil biográfico do livro “Alvorada: um tributo a Carlos Moreira de Castro” (Funarte, 1989).

    “O samba fez tanto sucesso que até os compositores da Portela o cantavam, com a segunda parte versada. Cartola fez duas segundas partes (letra e música)”, escreve Marília. “Como a primeira parte fosse mais conhecida, Zé Com Fome a cantou para Aracy de Almeida. Esta interessou-se em gravar. Zé Com Fome compôs uma segunda parte e entregou-a a Aracy, tornando-se parceiro de Carlos, ao mesmo tempo omitia a parceria com Cartola. Aracy gravou a música da forma que a recebeu do Zé, fato que causou muito desgaste a todos e provocou uma polêmica que se estendeu mesmo após sua morte, entre a viúva, Zilda, e Cartola.”

    No depoimento à posteridade que gravou no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (26-02-1992), Carlos Cachaça contou que, procurado por Zé antes da gravação, alertou que Cartola era seu parceiro na composição e pediu que o procurasse. Carlos relata que, depois do disco lançado, foi cobrar explicações de Zé, que respondeu dizendo ter mandado um recado a Cartola pelo irmão deste, Biela, mas Cartola nunca retornou. “Eu vim em Mangueira outra vez procurar o Biela", prossegue Carlos. "Biela disse assim: ‘Há mais de seis meses que eu não vejo o Zé.’ (risos)”

    Semente de amor

    Só em 1973 o samba foi gravado da maneira correta, por Paulinho da Viola, com seu nome completo, “Não quero mais amar a ninguém”, e as duas segundas partes originais (ouça aqui). Abrindo a primeira delas está o verso que era considerado uma obra-prima pelo poeta Manuel Bandeira: “Semente de amor sei que sou desde nascença.” Sobre este verso, o jornalista Sérgio Cabral publicou certa vez que havia sido escrito por Carlos Cachaça, sendo corrigido em seguida por Cartola, que lhe disse: “Nem tudo que é bonito é do Carlos.”

    Já na primeira gravação de “Quem me vê sorrir”, cantada por Cartola para uma série de discos estadunidenses lançados no álbum “Native Brazilian Music” (Columbia, 1942), o erro foi ainda mais grosseiro: desta vez é de Carlos o nome omitido no selo do disco, que credita a autoria apenas a Cartola, mas como “de Oliveira”. Já no crédito pela interpretação seu nome desaparece de vez, dando lugar a “Mangueira Chorus” (Coro da Mangueira). Somente em 1987, quando o álbum foi relançado pelo Museu Villa-Lobos, já no formato LP, as devidas correções – de autoria e interpretação – foram feitas na contracapa. 

    No encarte desta reedição, com verbetes sobre todas as músicas, são informados também os nomes do violonista que acompanhou Cartola – Aloísio Dias – e das pastoras que formaram o coro da gravação: Neuma, Cecéia, Nadir, Ornélia, Guiomar, Nesília e Naguinha. “Este seria, possivelmente, o mais antigo registro gravado da voz de Cartola”, lê-se no verbete escrito pelo pesquisador Ary Vasconcelos, que informa ainda que Carlos Cachaça não pôde comparecer à gravação, pois justamente naquela noite havia sido escalado para dar plantão na Central do Brasil, onde trabalhava.

    Samba a bordo

    As gravações do álbum “Native Brazilian Music”, aliás, são um capítulo à parte: foram todas realizadas na madrugada de 8 de agosto de 1940, num estúdio montado no navio Uruguay, atracado na Praça Mauá. Tudo por iniciativa do maestro inglês Leopold Stokowski, que chegara dos Estados Unidos – nesta mesma embarcação – com a sua All American Youth Orchestra, para dois recitais no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A estada na cidade serviu também para a gravação de exemplares da música popular brasileira, com o objetivo de “difusão nas Américas”, como escreve no encarte o pesquisador Suetônio Soares Valença, responsável pela reedição de 1987, acompanhado por Marcelo Rodolfo (coordenação geral) e Jairo Severiano (produção executiva).

    Mas o fato é que o maior acerto de Stokowski foi ter se correspondido com Heitor Villa-Lobos para combinar previamente a empreitada. O brasileiro também acertou na mosca ao recorrer a Donga e Pixinguinha para a arregimentação dos instrumentistas e cantores e, assim, o que se tem é um documento rico e plural da nossa música da época: lá estão também sambas de Donga (entre eles o clássico “Pelo telefone”), emboladas de Jararaca e Ratinho, “macumbas” de João da Baiana, Zé Espinguela e Getúlio Marinho, choros de Pixinguinha e Luís Americano e ainda composições de Villa-Lobos ambientadas no universo indígena.

    “Quem me vê sorrir” foi regravada por Cartola em seu primeiro disco solo (Discos Marcus Pereira, 1974), rebatizada como "Quem me vê sorrindo" – mesmo nome com que Carlos Cachaça também regravou, no único LP que fez, em 1976, pela gravadora Continental (ouça aqui). No mesmo ano, Carlos regravou também “Não quero mais amar a ninguém”, como convidado especial de um disco de Clementina de Jesus na Odeon.

    Tempos idos

    Nessa época, ele já era Seu Carlos, como todos no samba se acostumaram a chamá-lo, em sinal de reverência e respeito por sua história, que se confunde com a do próprio morro de Mangueira. Isso porque, quando Carlos nasceu, há 120 anos (03-08-1902), não havia casas no morro – ele e os cinco irmãos (dois rapazes, três moças) moravam com os pais, Inês e Carlos, na pequena comunidade que havia às margens do trilho do trem, no local onde depois seria erguida a Vila Olímpica da Mangueira. Até que o pai abandonou a família e Carlos, então aos oito anos, foi entregue aos cuidados do padrinho, o português Tomás Martins, que havia arrendado um terreno e resolveu construir casas para alugar.

    “Ele não sabia ler e eu, com dez anos de idade, é que assinava os recibos dos aluguéis”, contou ao jornalista Sérgio Cabral, no livro fundamental “As escolas de samba do Rio de Janeiro” (Lumiar Editora, 1996). “Isso era proibido, mas era eu que assinava: por Tomás Martins, Carlos Moreira de Castro.” Foi por aí que aprendeu a gostar de carnaval, fantasiado de índio nos ranchos e cordões. Já aos 17 anos fez o melhor amigo, Cartola, que se mudava do Catete com a família e virou seu companheiro de aventuras e descobertas. “Em Mangueira não havia samba, havia macumba”, contou no depoimento ao MIS. “Quem trouxe o samba para Mangueira foi Elói Antero Dias”, afirmou na já citada entrevista a Sérgio Cabral, apontando o terreiro de Tia Fé como primeiro local de samba na comunidade.

    Em 1925, a dupla se juntou a outros vizinhos na criação do bloco dos Arengueiros, de propósitos menos culturais e edificantes que os da agremiação que surgiu em seguida no morro: a Estação Primeira de Mangueira. Carlos não pôde comparecer à reunião de fundação, pois naquele dia (28-04-1928) não conseguiu – mais uma vez – dispensa do serviço. Se bem que Cartola costumava dar outra versão para a ausência do amigo e o próprio Cabral publicou em seu livro que Carlos, “na época, trocara o morro pelo subúrbio de Inhaúma, onde morava seu amor de então.”

    Esta era Maria Aída da Silva, sua primeira esposa e mãe de seus três filhos: Iuco, José Carlos e Marinês. Depois casou-se com Clotilde da Silva, a Menininha, sua companheira até se tornar viúvo, em 1983. Foi ela que, numa vez em que Sérgio Cabral apareceu na porta de sua casa perguntando por Carlos, respondeu: “Ah! Está por aí, honrando o nome.” A história do apelido é outra que vale a pena: foi nos saraus musicais que um certo Tenente Couto promovia aos domingos, como o próprio Carlos contou no livro “Alvorada”: “Eles só tomavam cerveja preta. Eu não gostava, pedia cachaça. E havia três Carlos. Para distinguir, ele dizia que eu era o Carlos da Cachaça. Pegou.”

    Menestrel

    E assim, sem a preposição, assinou composições importantes da Estação Primeira, ainda no tempo dos desfiles sem amplificação sonora, quando a escola se valia de gogós potentes, como os que lembrou na entrevista a Sérgio Cabral: “Tinha o Malvadeza, o Alfredo Turituré, o Zé Casadinho, o Fiúca, cada cantor que valia a pena ouvir.” Vozes que puxaram o canto de sucessos como “Homenagem” (considerado o primeiro samba-enredo da história, em 1933), “Lacrimário” (1940), “Brasil, ciência e arte” (com Cartola, 1947) e “Vale do São Francisco” (com Cartola, 1948), entre outros. De suas composições fora do carnaval destacam-se mais duas com Cartola: “Alvorada”, (com a segunda parte feita por Hermínio Bello de Carvalho) e “Tempos idos”.

    Os tempos idos nunca esquecidos
    Trazem saudades ao recordar
    É com tristezas que relembro
    Coisas remotas que não vêm mais

    Além dos versos e melodias, contribuiu para a Mangueira organizando os desfiles da escola e bolando alegorias e fantasias. Atraindo para a Estação Primeira os melhores compositores da rival Unidos de Mangueira – como Nelson Sargento e Geraldo Pereira. E até aproveitando-se da condição de orador para pedir ao prefeito Pedro Ernesto a primeira escola do morro, no que foi prontamente atendido, em 1936, com a construção da Escola Municipal Humberto de Campos. Até que na década de 1960, já aposentado do trabalho na Central do Brasil, foi se afastando aos poucos do cotidiano da verde-e-rosa. “Mas acompanho a Mangueira, torço por ela”, disse na entrevista a Sérgio Cabral, realizada em 1975. “Quero que ela vença todos os carnavais.”

    Pois foi assim, do jeito que ele gostava, uma de suas últimas aparições públicas: no carro alegórico dos 70 anos da Estação Primeira, encerrando o desfile do carnaval de 1998. Sentado, quieto e talvez atônito com o tamanho de sua cria, tinha a seu lado o homenageado do desfile, Chico Buarque, que se alternava entre acenos às arquibancadas da Sapucaí e beijos na careca de Seu Carlos, que deve ter ficado muito feliz com a notícia de sua Mangueira campeã  pela 16ª vez.

    Carlos Cachaça faleceu em 16 de agosto de 1999, no bairro carioca de Engenho da Rainha, onde vinha morando com sua filha. Tinha 97 anos e morreu dormindo, depois de enfrentar um quadro de pneumonia. Seu corpo foi velado  com direito a gurufim – na quadra de sua Estação Primeira de Mangueira.

    Foto: Reprodução de fotografia de Marília Trindade Barboza no livro "Fala, Mangueira", de autoria dela com Arthur de Oliveira Filho e Carlos Cachaça (Livraria José Olympio Editora, 1980).

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