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    No balanço de Dóris Monteiro: o canto suave que nasceu de Dick, Lúcio e Nat

    Pedro Paulo Malta

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    O leitor ou a leitora não se espante se um dia, no vaivém frenético de Copacabana, uma voz suave e animada lhe surpreender entre buzinas, motores e o falatório das ruas. Ou se essa voz – que há de soar familiar pros mais velhos – lhe trouxer alguma boa história sobre o bairro. Sobre a era do rádio. Ou sobre como ela, com seu canto enxuto, preciso e charmoso, fez seu nome na música popular brasileira.

    O nome, no caso, é Dóris Monteiro – ou melhor, Adelina Dóris Monteiro, como foi batizada quando nasceu, há pouco mais de 88 anos, numa Copacabana que nem de perto se parece com o que é hoje. “Meu prédio foi construído em 1928: na época, eram só ele, o Copacabana Palace e o Edifício Ceará. O resto eram algumas casas e mato”, conta a cantora, cuja vida daria uma boa novela. Quem sabe um musical. Por enquanto um post.

    “Sou filha biológica de uma empregada doméstica que não teve como me criar e me deu para um casal, que me criou muito bem: ele faxineiro, ela dona de casa”, conta Dóris. “Morávamos no apartamento de serviço do edifício. Depois que comecei a cantar e consegui juntar algum dinheiro, comprei um apartamento para eles no mesmo prédio, onde vivo até hoje.” Sair de Copacabana só mesmo para ir estudar, no Colégio Pedro II, onde cursou o ensino ginasial. “Pegava o bonde 13 até o Largo da Carioca e de lá caminhava até a Avenida Marechal Floriano.”

    Praia, por exemplo, era ali ao lado, em frente ao Copacabana Palace, o suntuoso hotel em cujo palco viraria atração, encantando a plateia não só pela pronúncia irretocável com que cantava em francês e inglês, como também pela brejeirice – a mesma com que já havia conquistado o primeiro lugar no programa Papel Carbono, na Rádio Nacional, em 1948.

    “Imagine só: uma menina de 14 anos, com aquela longa trança do lado esquerdo, vestidinho rosa de tafetá e sandalinhas brancas. Todo mundo ficou encantado e de repente virei assunto”, rebobina Dóris, que chegou à primeira vitória radiofônica cantando “Bolero” (Durand e Contet), sucesso do momento na voz da parisiense Lucienne Delyle. Munida de alvará do juizado de menores e a marcação cerrada da mãe (a incansável D. Ana), a adolescente foi ganhando espaço no rádio, a contragosto do pai, que não apoiava a filha no sonho de ser “canteira”, como ela se definia na infância. “Quero que você tenha uma profissão digna”, afirmava Seu Lázaro, peremptório.

    Atacante decisivo

    Curiosamente, veio de um amigo dele – o atacante Maneca, jogador do Vasco, seu clube de coração – a dica precisa que valeu por uma direção musical: “Você quer ser cantora? Então não deixe de ouvir Dick Farney, Lúcio Alves e Nat King Cole”, disse o jogador. A garota passou a frequentar a loja de discos da vizinhança para ouvir de graça os discos dos três – do repertório de Cole gravaria entre seus primeiros discos o standard “Too young” (Sidd Lipman), transformado em “Cedo para amar” na versão de Bruno Gomes.

    Dóris já vinha cantando na Rádio Guanabara quando recorreu a outro famoso da época, o cantor Alcides Gerardi, também morador do Itaoca. “Você não imagina o quanto eu enchi os ouvidos dele pedindo que me levasse para fazer um teste na Rádio Tupi”, relembra, entre risinhos. “Um dia ele se encheu e me levou: fui aprovada e assinei meu primeiro contrato, aos 16 anos.” 

    Logo depois veio o primeiro disco, um 78 rotações na gravadora Todamérica com arranjos de Radamés Gnattali, também regente da Orquestra Melódica no acompanhamento dos dois sambas românticos gravados por ela: no lado A “Se você se importasse” (Peterpan) e, no B, “Fecho meus olhos, vejo você” (José Maria de Abreu). “A primeira foi a que fez sucesso, mas sabe que eu gosto mais da outra? Era mais moderna, mais incrementada e menos comercial”, confidencia. “Taí uma coisa que não tenho: espírito comercial.”

    “Você acredita que um dos principais críticos da época, o Sylvio Tullio Cardoso, me deu nota zero no jornal por esse disco?”, recorda. “Ainda recomendou que eu retomasse meus estudos, porque eu nunca seria uma cantora. Fiquei arrasada com aquilo. Não fosse o público colocar o ‘Se você se importasse’ em 1º lugar, minha carreira teria terminado no começo.” Já em 1952, quando conquistou sua primeira coroa (a de Rainha dos Cadetes), a Todamérica lançou seu segundo disco, com a mesma configuração do primeiro: um Peterpan no lado A (“Quantas vezes”) e um José Maria de Abreu no B: “Bate um sino além” (com Alberto Ribeiro).

    Pianista e arranjador de destaque nas décadas de 1940 e 50, José Maria de Abreu ainda teve outras músicas gravadas por Dóris Monteiro em 78 rpm: “Nunca te direi” (de Abreu com Jair Amorim, em 1952), “Linguagem dos olhos” (mais uma com Alberto Ribeiro, em 1953) e “Por que razão” (com Luiz Peixoto, em 1955). “José Maria de Abreu era um craque, né? Moderno, com umas harmonias diferentes, muito inventivo. Era uma espécie de Tom Jobim da época.”

    Curioso que o próprio Tom já estava em atividade na época – no caso, a década de 1950, antes da bossa nova. “Não sei como nos conhecemos, mas lembro que era um músico da noite, arranjador da Continental, longe do compositor famoso que viria a ser. Às vezes estava duro, sem dinheiro”, conta Dóris. “Só sei que ficamos amigos e fui a muitas reuniões na casa dele na Rua Nascimento Silva, em Ipanema – cantávamos até cinco da manhã e depois íamos tomar café no boteco ali perto.”

    Deste Tom Jobim pré-bossa-novista Dóris gravou três sambas-canção em sua discografia de 78 rpm: “Engano” (de Tom com Luiz Bonfá, em 1956), “Eu não existo sem você” (com Vinicius de Moraes em 1958) e “Se é por falta de adeus” (com Dolores Duran). Esta última, gravada com arranjo de Tom Jobim, saiu no outro lado do disco da Continental lançado em outubro de 1955 com mais um grande sucesso de Dóris Monteiro: “Dó Ré Mi” (Fernando Cesar).

    Sabão e samba

    “Nessa época a música brasileira estava numa ‘sofrência’ danada: era um tal de tristeza, bebedeira, suicídio”, conta. “Por isso me apaixonei na hora por ‘Dó Ré Mi’: tinha uma pessoa feliz naquela letra e isso me emocionou já na primeira audição.” Seu compositor, o português Fernando Cesar, era dono da empresa de sabão Platino, que patrocinava o programa de Chacrinha na TV Tupi. “O Chacrinha ficava me azucrinando para conhecer as composições dele e eu dizia: ‘Imagine, Abelardo, se um sujeito que faz sabão vai ter sensibilidade para música?’ Pois não é que tinha?”

    Foi com repertório inteiramente dedicado a ele que Dóris fez seu primeiro LP, o dez polegadas “Confidências de Dóris Monteiro com músicas de Fernando César”, lançado pela Continental em 1956, ano de sua segunda coroação, de Rainha do Rádio. Entre as gravações deste disco lançadas também em 78 rpm estão “Quando as folhas caírem” (de Fernando César com Maurício de Oliveira), “Vento soprando” e “Melancolia”. Autênticas “sofrências”, que logo dariam vez aos diminutivos e outras delicadezas da bossa nova, capitaneada por seu amigo João Gilberto. 

    “Conheci Joãozinho quando ele começou a cantar, com os Garotos da Lua. Onde eles iam cantar, lá estava eu na plateia. Ficamos amigos e ele me tratava por Dodó. Até que um dia ele desapareceu e voltou cantando diferente, moderno, bossa nova.” A própria Dóris também mudou seu jeito de cantar (como se pode perceber na playlist deste post): dos melismas e érres à moda antiga para o canto enxuto e balançado que a consagraria como a “Diva do Sambalanço”. “Foi nisso que deu ficar ouvindo Dick, Lúcio e Nat King Cole. Devo isso ao Maneca.”

    Além de cantar diferente, foi preciso também trazer novidades pro repertório. “O Billy Blanco me perguntava por que eu não cantava sambas de balanço, por que eu só gravava músicas românticas”, revela. “Eu dizia a ele que meu negócio era cantar suave, que nunca fui ‘suingueira’. Mas ele me mostrou aquela crônica incrível que é ‘Mocinho bonito’ e revi minha convicção. Que jornalista era o Billy Blanco!”

    Também de telecoteco é o samba “Fiz o bobão”, lançado por ela em julho 1961, com autoria da parceria-grife Luiz Reis e Haroldo Barbosa, também compositores de “Palhaçada”, que ela gravou em março do mesmo ano. “Quem me mostrou ‘Palhaçada’ foi Miguel Gustavo, que me parou na porta da Philips pra cantar esse samba batucando no capô de um carro. Subimos no prédio para mostrar pro Armando Pittigliani, que marcou a gravação pro dia seguinte. É que o Miltinho estava para gravar este samba, mas num LP que só sairia dali a dois meses. A nossa saiu antes e tocou em tudo quanto foi emissora de rádio.”

    Dóris a dois

    “Palhaçada” ainda seria gravada pelos dois juntos em 1970, no álbum “Dóris, Miltinho e charme” (Odeon), que é um dos destaques da discografia dela em LP, num dueto que se desdobrou em mais três volumes: em 1971, 1972 e 1973. Outro duo marcante foi o que ela fez com um de seus mestres no disco “Doris e Lúcio no Projeto Pixinguinha” (EMI-Odeon/1978).

    Já em sua discografia solo destacam-se LPs como o bossa-novista “Dóris Monteiro” (Philips, 1964) e os diversificados “Mudando de conversa” (Odeon, 1969) e “Dóris” (Odeon, 1971), entre muitos outros.

    “Não sou saudosista não, mas gosto de lembrar das coisas que fiz, porque valeu a pena, né? Fui atrás do meu sonho, que era cantar, e como eu fui feliz!”, conclui, satisfeita com os shows que faz – como o do Teatro Rival, no último mês de outubro, comemorando seus 88 anos. Ainda assim, deixa escapar uma saudade dos velhos tempos. “Sinto falta do contato com o público, sabe? Daquela proximidade que só nas boates a gente tinha, o público ali pertinho. E hoje as pessoas interagem no virtual, à distância, na rede social. Só que não dá pra cantar por e-mail, né?”

    Foto de Mariz / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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