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    Teddy Vieira, 100 anos: o sertanejo que traduziu em música e versos os dramas e as alegrias do Brasil caipira

    Fernando Krieger

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    Não há, por esse Brasilzão afora, quem desconheça a trágica história do menino da estrada de Ouro Fino que corria, abria a porteira para a comitiva e pedia para escutar o som do berrante, e que acabou tendo a sua vida tirada por um boi sem coração. Também muitos já devem ter comentado que adoram essa música do Sérgio Reis. Bom, é hora de dar nome aos bois – no caso, aos boiadeiros, os verdadeiros autores dessa moda, personagens fundamentais da história da nossa música regional: Luizinho e Teddy Vieira. Este último, autor de dezenas de composições, cujo centenário de nascimento comemoramos neste 23 de dezembro, hoje está – êita, Brasilzão velho – praticamente esquecido.

    Romildo Sant’Anna, no livro “A moda é viola: ensaio do cantar caipira” (SP: Arte & Ciência/Editora Unimar, 2000), escreve sobre “O menino da porteira”, cujo primeiro registro em disco foi feito por seu coautor Luizinho (Luiz Raymundo) em dupla com Limeira: “Lançado em 1955 (...), esse cururu surgiu primeiramente com o título ‘O menino da portêra’, reproduzindo a redução ditongal tão característica da linguagem falada e, como indução identificadora, imitando caligraficamente a prosódia”. Segue o autor: “De acordo com pesquisa de campo realizada junto a artistas, intérpretes, compositores, diretores de gravadoras e apresentadores de rádio, trata-se da moda caipira gravada em disco mais solicitada, a mais lembrada, por seus predicados de empatia com o mundo rural”.

    A canção foi regravada por diversos artistas, entre eles Sérgio Reis (1973), que foi o protagonista do filme “O menino da porteira” (1977), um sucesso do cinema nacional. Sucesso que Teddy Vieira de Azevedo não chegou a vivenciar. No dia 16/12/1965 – a uma semana de completar 43 anos –, um automóvel Simca Chambord que rumava para Itapetininga (SP) colidiu violentamente com um caminhão na altura do quilômetro 139 da Rodovia Raposo Tavares, após tentar uma ultrapassagem. Morreram os sete passageiros do carro, quatro deles ligados ao meio artístico: o cantor e compositor Paulo Queiroz, o iniciante Manoel José de Andrade, Lauripes Pedroso (da dupla Irmãos Divino) e o próprio Teddy Vieira. Periódicos da época afirmaram que ele, o dono do carro, estava ao volante – embora a Revista do Rádio 859, de 05/03/1966, tenha dito que a condução era de Paulo Queiroz.

    Existe outra “música do Sérgio Reis” bastante conhecida: “Boiadeiro errante”, que deu nome ao seu LP de 1981, é também uma criação de Teddy Vieira, registrada em disco em 1959 por Liu e Léu (os irmãos Lincoln e Walter Paulino da Costa) e difundida por todo o país graças à sua utilização em novelas como “O rei do gado” (1996-1997), onde foi eternizada pelas vozes da dupla Aparício (Pirilampo) e Zé Bento (Saracura) – respectivamente os cantores/violeiros Almir Sater e Sérgio Reis. O próprio título da novela remete a outro clássico de Teddy Vieira: a moda “Rei do gado”, lançada em 1958 por Tião Carreiro e Carreirinho e regravada em 1959 por Tonico e Tinoco. Ela se tornaria um hit das rodas de viola, inclusive na fazenda do pantaneiro José Leôncio – que, num dos capítulos da recente refilmagem de “Pantanal”, chegou a cometer a “heresia” de pedir para escutar essa música no lugar da sua amada “Cavalo preto” (de Anacleto Rosas Júnior).

    “Nascido em Buri, próximo a Itapetininga (em 23/12/1922), Vieira assinou mais de uma centena de toadas e modas de viola: ‘O menino da porteira’ (com Luizinho), ‘Arreio de prata’ (com Roque de Almeida e Mário Bernardino), ‘Rei do gado’, ‘Pretinho aleijado’, ‘Geada do Paraná’. Apreciava temas sociais, contando verdadeiras epopeias protagonizadas por ricos prepotentes em confronto com gente humilde – pobres, negros, trabalhadores, boiadeiros, gente suada da estrada (sempre vencedores)”, analisa Rosa Nepomuceno em “Música caipira: da roça ao rodeio” (São Paulo: Ed. 34, 1999).

    É justamente esse o caso de “Rei do gado”, como explica Rosa: um embate, “num bar de Ribeirão Preto, entre o ‘rei do café’ e um peão malvestido e sujo de terra, que se revela mais poderoso no final dos versos”. O inspirador da música, segundo ela, foi o “verdadeiro rei do gado, o fazendeiro Moura Andrade, fundador da cidade de Andradina” (mencionada na letra). Tião Carreiro, que lançou a moda ao lado de Carreirinho, recebeu sua primeira oportunidade como cantor graças a Teddy Vieira, que, recorda a autora, “ainda lhe inventou o pseudônimo”. Nas palavras de Attilio Giacomelli e Bernardino V. Silvestrini, em matéria para a Revista Sertaneja nº 10, de janeiro de 1959, Teddy era “um verdadeiro ‘olheiro’ de talentos para o disco”.

    Tião Carreiro (José Dias Nunes) foi o criador, em 1959, do revolucionário pagode de viola, também chamado de pagode sertanejo ou pagode caipira. O estilo bem característico desse gênero musical pode ser escutado no seminal “Pagode em Brasília”, de 1960, parceria de Teddy Vieira e Lourival dos Santos – e também do não creditado Tião, segundo declaração do cantor Praiano (Almiro José Alves) ao Correio Braziliense de 15/10/2013: “Ele contava que entregou a música para o Lourival colocar a letra e abriu mão da autoria. Arrependeu-se a vida toda”.

    Quem hoje vir por acaso, em fotografias antigas e periódicos da época, a imagem de Teddy Vieira de terno e gravata, na sua mesa de trabalho, exercendo a função de diretor das gravadoras Columbia e Chantecler – onde ajudou a fundar o selo Sertanejo – na capital paulista, para onde havia se mudado na pré-adolescência, talvez não enxergue naquele moço bonachão alguém ligado ao mato, à vida do campo. Ledo engano. O jovem Teddy apareceu algumas vezes nas páginas de Fauna, “Revista mensal de caça, tiro, pesca e fauna em geral”, segundo informação da capa. “Num cenário bucólico, aparecem os Snrs. Teddy Vieira, Joaquim Azevedo e Jair de Gusmão, após uma caçada de veado em Buri”, dizia a legenda do clichê publicado na página 60 da edição de novembro de 1950 – Teddy é mostrado soprando um berrante, como bom boiadeiro.

    “Teddy Vieira Azevedo e Alcindo Freire (Mineirinho) numa caçada de capivara realizada no Rio Apiaí – Buri – Estado de S. Paulo”, informava a legenda de Fauna em novembro de 1951, página 45. A revista também abria espaço para que o já então compositor – que, aos 25 anos, em 1948, teve sua moda “Goiana” gravada por Tonico (seu parceiro na música) e Tinoco – pudesse mostrar sua produção. O periódico publicava as letras das composições de Teddy e, por vezes, alguma informação sobre elas.

    Foi assim com “Caçada do Pardo”, parceria com Luizinho (“oferecida a um dos caçadores mais antigos e caprichosos de Itapetininga, o Snr. Vilaça”); “Nas águas do Xingu” (“dedicada aos ‘mestres da vara’, Paulo Barbosa, Dario Barbosa e Joaquim Azevedo, moradores em Campinas”); “Úrtima caçada”, outra feita com Tonico (“oferecida aos Srs. João, Chico, Arnaldo e Nelson de Souza Pinto, proprietários da fazenda Santa Vitória em Tambaú – S. Paulo”); e “Surucuju” (“oferecida ao Sr. José Vieira Sobrinho, o maior piloteiro de canoa e caçador de capivaras na zona de Buri”). Este universo aparece no repertório fonográfico de Teddy Vieira, como nos cururus “O canoeiro não morreu” e “Pescadô e canoêro”. A vaquejada também se faz presente, caso da moda “Laço criminoso”.

    Mortes trágicas, contendas entre sertanejos, traições (como as cantadas em “João de barro” e “Falso juramento”), preconceito racial (em “Terra roxa”, um petardo de Teddy Vieira), preconceito de classes (escancarado esplendidamente por Teddy e pelo Capitão Barduíno na fábula “A enxada e a caneta”)... Nem tudo, no entanto, era drama nos universos caipira em geral e de Teddy em particular: também se cantava o amor – às vezes com pitadas de saudade, como em “Morena de olhos pretos” (Teddy e Ado Benatti), sucesso de Sulino e Marrueiro em 1954. A mesma dupla marcou presença em 1958 com “A volta do boiadeiro”, de Sulino e Teddy Vieira. Já a congada “Treze de maio” abafou a banca em 1956 nas vozes de Moreno e Moreninho. Havia espaço também para o alegre arrasta-pé “Toca sanfoneiro”, parceria de Teddy com Cláudio de Barros, que a gravou em 1963, e para o “Fandango do Rio Grande”, feito a quatro mãos com o lendário Capitão Furtado (Ariovaldo Pires).

    Na sua obra figuram as chamadas “respostas”, desdobramentos de uma canção original, muito comuns no ambiente da música sertaneja de antigamente. Segundo Romildo Sant’Anna, elas podem se dar de três maneiras: “a) continuação pura e simples do enredo; b) continuação com mudança de perspectivas ao retomar o assunto; c) réplica da voz enunciadora”. “Irmão do Ferreirinha”, de Teddy e Carreirinho, remete a “Ferreirinha”, de autoria do segundo; “Rei do café”, dos mesmos parceiros, é, nas palavras de Sant’Anna, uma “continuação notável e auspiciosa (...) em resposta à mensagem impressionante de ‘Rei do gado’”.

    Na mesma linha, a história do cãozinho “Corumbá”, de Teddy Vieira e Ado Benatti (o afamado Zé do Mato), foi recontada em “A volta do Corumbá”, de Benatti, Sulino e Nhô Fio. “Capelinha do Chico Mineiro”, de Teddy e Biguá, resgatou o personagem surgido em “Chico Mineiro”, conhecida toada de Tonico e Francisco Ribeiro. E o fox “O bom menino” (“não faz pipi na cama”, “não faz malcriação”...), lançado por Carequinha, foi recauchutado pelos caipiras Teddy e Palmeira: com Ivany Soares, eles criaram a “Marcha do bom menino”, gravada pelo humorista Canarinho. Até mesmo o clássico de Teddy e Luizinho não escapou de uma continuação: os dois autores, um ano após o cururu original, voltaram ao tema em “Resposta do menino da porteira”.

    “Tambaú e seus milagrosos acontecimentos destes últimos tempos já está [sic] exercendo sua influência sobre a produção musical popular, como bem o demonstra o êxito alcançado pelo lançamento feito pela RCA Victor da toada ‘Milagre de Tambaú’ (Teddy Vieira – Palmeira)”, informava o Correio Paulistano de 08/04/1955. O pároco Donizetti Tavares de Lima, beatificado em 2019, criou fama na década de 1950 por fazer, na cidade paulista de Tambaú, conversões e milagres de cura, que ele atribuía a sua santa de devoção, Nossa Senhora Aparecida. O padre Lima ganhou algumas homenagens em formas de música; a de Teddy Vieira e Palmeira, de acordo com o mesmo periódico, fez bastante sucesso: “Soubemos que esse disco constitui o recorde de venda alcançado pela RCA, tendo sido distribuídos em pouco tempo vários milhares da referida gravação”. Só em abril de 1955, segundo o Correio da Manhã de 22/05, foram 19.827 exemplares, obtendo o primeiro lugar entre os mais vendidos.

    “Os compositores do gênero sertanejo em maior evidência no momento são: Teddy Vieira, Anacleto Rosa [sic] Júnior, Ado Benatti, Zé Fortuna e Zé Carneiro [sic]” [o periodista talvez estivesse se referindo a Zé Carreiro], informava o Diário Carioca de 29/05/1960. Sobre Teddy, escreve Rosa Nepomuceno: “Era um fazedor de sucessos, ou, como dizem hoje na indústria do disco, um hitmaker”.

    Por que então seu nome é praticamente desconhecido nos dias atuais? Romildo Sant’Anna pode ter a explicação: “(...) como a dupla intérprete é mais realçada que o compositor, confundindo-se com ele, e, mais importante que ambos, a figura abstrata do personagem-cantador ou o modista, tem-se como relevante que o verdadeiro compositor abastece-se de poucas glórias, da admiração restrita, e, menos ainda, da remuneração em Direitos Autorais. É por isso que, salvo exceções como Teddy Vieira e Lourival dos Santos, dois dos mais prolíficos poetas e luminares da Moda Caipira em disco, raramente aparece um compositor que não seja, ao mesmo tempo, seu próprio intérprete ou integrante de uma dupla de intérpretes”.

    Ouro Fino inaugurou, em março de 2001, um monumento ao seu personagem mais conhecido, construído na entrada da cidade mineira: um menino e uma porteira, ambos gigantescos, criados pelo cearense Genésio Gomes de Moura (existe na cidade uma réplica da estátua em tamanho bem menor, localizada no Hotel Fazenda Menino da Porteira). Ao lado, há uma placa de bronze com a letra da famosa canção. Ainda sob a inspiração desta, Genésio faria, anos mais tarde, os monumentos “Boi sem coração”, “Berrante” e “Boiadeiro”, hoje atrações turísticas de Ouro Fino.

    Já Teddy Vieira, 50 anos após o desastre que o vitimou, foi imortalizado com uma estátua em Itapetininga, onde, segundo pesquisa feita na época, não era conhecido por 80% dos entrevistados. Confeccionada por Cláudio Camargo e aberta ao público em maio de 2015, em dezembro daquele ano já havia sido vandalizada três vezes – a primeira delas antes mesmo de sua inauguração. Ventura semelhante à de sua companheira de bronze instalada na orla da carioca Praia de Copacabana – mas, ao contrário de seu colega de versos Drummond, o poeta Teddy Vieira, caboclo do interior, expoente máximo da nossa autêntica música caipira, permanece hoje envolto num injusto esquecimento...

    Foto: Reprodução da Revista Sertaneja (julho/1959) / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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