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    Lina Pesce, 110 anos: a compositora de muitos ritmos que deu asas ao bem-te-vi mais atrevido do choro

    Fernando Krieger

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    O Brasil precisa conhecer melhor a obra musical de um de seus maiores, mais admiráveis compositores – a paulista Lina Pesce. Seu talento criador e seus dotes excepcionais de intérprete fazem dela, sem nenhum favor, uma das culminâncias da nossa música popular. (...) O Brasil precisa conhecer melhor a continuadora de Anacleto e de Nazareth, a moça paulista que só não é mais famosa porque, incrível que pareça, é a esposa do maior editor musical do nosso país.

    Lúcio Rangel (A Cigarra, dezembro de 1958)

    “Um encanto de simplicidade, de uma inteligência e uma vivacidade extraordinárias”. Assim Lúcio Rangel descreve, na matéria acima citada, a eclética compositora e pianista Lina Pesce, autora de tangos, valsas, sambas, marchas, dona de um repertório bastante plural. Nascida há 110 anos – em 26 de janeiro de 1913 – na capital paulista, ela acabaria mais conhecida, no entanto, pelos seus choros, notadamente por aquele que se tornaria seu carro-chefe, um dos mais conhecidos e executados até hoje: “Bem-te-vi atrevido”, que, nascido em 1942, bateu as asas e acabou pousando em Hollywood.

    “‘Bem-te-vi atrevido’, chorinho da compositora paulista Lina Pesce, é um dos números apresentados no filme ‘Dupla ilusão’, da Metro, na execução da famosa organista Ethel Smith, que o gravou, também, em disco Decca”, dizia a nota de A Cena Muda de 02/04/1946. Helio Jorge, na coluna “Pandeiros e violinos” da revista Carioca de 14/10/1944, já registrava a ótima aceitação da música no estrangeiro: “Na República Argentina foi lançado [sic] com grande êxito uma gravação de ‘Bem-te-vi atrevido’ pelos ‘Quatro Acordeones’ – um conjunto especializado do broadcasting portenho. Esta página da compositora Lina Pesce está também sendo apresentada nos nightclubs La Conga, Habana, Madrid, Leon Eddis e Cuban da Broadway pela bailarina brasileira Any Guaiba, em excursão coreográfica por Cuba, México, Canadá e Estados Unidos”.

    “Agora, chega-nos a notícia de que a composição acaba de conseguir posição invejável, situando-se em 1º lugar, no que diz respeito à execução e vendagem no Velho Continente, entre as músicas nacionais, suplantando páginas como ‘Aquarela do Brasil’ e ‘Tico-tico no fubá’”, publicava a Revista do Rádio em 13/02/1954. E o pássaro bateu asas para mais longe, de acordo com o relato de Chuck em sua coluna “Gatos pardos”, no 2º Caderno do Correio da Manhã de 31/07/1958: “A Rádio de Moscou, segundo o músico Sivuca, que gosta de ouvir as ondas curtas de seu rádio, estava tocando uma composição brasileira há dias. Não se trata de Villa-Lobos nem de Mignone. A música executada era ‘Bem-te-vi atrevido’, chorinho de Lina Pesce”.

    O “Tico-tico no fubá” de Zequinha de Abreu tinha agora uma avezinha à altura para ser sua rival nas quatro linhas do choro. Para Brasil Rocha Brito, em texto publicado em A Tribuna (SP) de 21/08/1980, haveria equivalências entre as duas para além dos títulos que homenageiam nossos amigos emplumados: “‘Tico-tico’, nos anos 40, foi uma das duas músicas brasileiras mais difundidas no exterior, somente perdendo o primeiro lugar para ‘Aquarela do Brasil’, de Ary Barroso. (...) O fraseado melódico-rítmico, pleno de síncopas, é muito pessoal, característico, [e] sem sombra de dúvida serviu de modelo para peças posteriores de compositores como Carolina Cardoso de Menezes (...) e Lina Pesce”.

    A edição de 03/04/1948 da Revista da Semana publicou a letra – sim, letra! – do choro, até hoje praticamente desconhecida, de autoria da própria Lina: “Quem não conhece esse pássaro indiscreto / Ferrabrás e inquieto / Que seu ninho faz aqui / Repare bem como os casais de namorados / Ficam todos assustados / Quando ouvem ‘bem-te-vi’...”. Talvez motivada pela enorme aceitação alcançada por sua obra-prima, a paulistana seguiu soltando vários passarinhos no céu da música popular brasileira, todos em forma de choro.

    Em 1945, George Brass – cujo acordeom já havia levado ao disco o bem-te-vi famoso em 1942 – mostrou o “Tangará na dança”, lançado no ano seguinte. Em 1949, a orquestra do maestro Carioca (Ivan Paulo da Silva) atacou de “Pintassilgo apaixonado”. O “Sabiá feiticeiro” surgiu em 1950 pelo saxofone de Luiz Americano; no ano seguinte, as teclas do piano de Heriberto Muraro viram passar uma “Curruíra saltitante”. E, em 1959, um “Canarinho gracioso” pousou nas cordas do violino de Irany Pinto.

    Filha de peixes (pesce, em italiano) peixinha é – no caso, filha do maestro Giacomo Pesce e da pintora, cantora e compositora Josephina Cantarella. Magdalena Cantarella Pesce “aos 4 anos de idade compunha suas primeiras músicas, dedilhando ao piano melodias singelas, e despertando assim a atenção de seus pais”, revelou Esther Chamma no Jornal de Notícias de 15/01/1950. Após as primeiras lições de música, ministradas pelo pai, começou a ter aulas de piano com Marcelo Buogo. Tinha então 6 anos, e fugia dessa obrigação saltando o muro para o jardim da casa vizinha, como ela confessou a Esther Chamma: “(...) eu detestava as aulas de piano. (...) [Os pais] iam encontrar-me aflitos e zangados, sem saber como castigar tais traquinices; e eu, contentíssima por ter fugido assim a mais uma aula. Confesso que essa rebeldia prejudicou meus estudos musicais, mas talvez o espírito tenha adquirido mais força e liberdade”.

    “Quando o tango-canção estava em moda em S. Paulo”, prosseguiu Esther, “seu pai sugeriu-lhe que publicasse um, que ele considerava de possível êxito; e como Lina não conhecesse escrita musical ele prontificou-se a escrevê-la”. Assim surgiu “Quantas vezes”, que, segundo Esther, “teve realmente grande vendagem e um êxito extraordinário”. Nascia, aos 9 anos, a compositora Lina Pesce. Com o nome artístico que a acompanharia vida adentro, aos 14 já tinha conseguido editar várias composições, entre elas o tango-canção “Esqueça-me”, com letra de Orfeu, e os tangos “A vingança de Cupido” (que seria gravado em 1955 pelo conjunto de Henrique Simonetti), “Miente” e “Fatalidade”. Aos 15, já era considerada uma campeã de vendas, aparecendo em matéria do Diário Nacional de 05/10/1928 ao lado de expoentes como Zequinha de Abreu: “Tudo quanto eles escrevem se vende com sucesso”.

    Foi possivelmente por essa época que o autor do “Tico-tico” chegou a conhecer a menina-prodígio compositora; na ocasião, um ficou bastante espantado com o outro, como Lina contou na entrevista a Esther Chamma: “Ambos achamos muita graça na surpresa estampada em nossas fisionomias. Eu o imaginava muito mais moço, enquanto ele, por sua vez, imaginava-me muito mais velha. Afinal, são coisas que acontecem...”.

    Com o tango “Miente”, lançado em fevereiro de 1929, a adolescente Lina, aos 16 anos, debutou em disco como autora. No mês anterior, às vésperas de completar essa idade, os periódicos paulistas destacaram que a “maestrina”, como já a chamavam, havia noivado – ou, como se dizia na imprensa da época, havia “contratado casamento” – com o editor musical Vicente Vitale (1903-1980), dez anos mais velho do que ela. O matrimônio foi oficializado em 1933 – e muitos desconfiaram de que, graças a ele, pudesse haver uma espécie de nepotismo ou de favorecimento, já que as composições de Lina eram publicadas justamente pela editora do marido, a Irmãos Vitale.

    “Lina Pesce nunca usou o prestígio de seu marido para colocar suas músicas”, afirmava o texto da Revista Feminina do Diário de Notícias de 12/10/1958. “Diziam que a Copacabana só apresentava dona Lina Pesce porque dona Lina é esposa do comendador Vitale [Obs: Vicente era um dos fundadores da Copacabana Discos]. Pois dona Lina foi contratada pela Columbia, que a considera uma excelente compositora e uma grande pianista. – Ato para tapar a boca dos faladores deste Rio de Janeiro”, escreveu Serafim Ponte Grande (Everardo Guillon) na Radiolândia de 06/12/1958, mencionando a cidade onde Lina foi morar após o casamento.

    A própria Lina, instada por Lúcio Rangel a falar sobre o marido na entrevista concedida para A Cigarra de dezembro de 1958, pôde esclarecer: “Não posso nem tenho interesse em impor minha música. Se hoje sou conhecida, devo isso à qualidade dela. Nunca música de minha autoria foi ‘trabalhada’. O que Vitale fez para muitos compositores, nunca fez para mim, justamente por ser meu marido”. Na avaliação de Denise Mello, autora de “A mulher na canção: a composição feminina na era do rádio” (Machine Editora, 2022), “Lina teve grande parte de sua obra editada pela Irmãos Vitale, trabalho que lhe proporcionou reduzida circulação e pouca visibilidade”.

    “A sra. Lina Pesce é uma compositora cujos trabalhos sempre alcançaram êxito positivo. Prova do que afirmamos está no sucesso que tiveram duas de suas últimas canções, ‘Nuvens que passam’ e ‘Felicidade é o meu amor’ – Por último, a sra. Lina Pesce lançou ‘História de uma lágrima’, que já está sendo cantada pelos melhores intérpretes de grande número das nossas emissoras”, dizia a nota de A Batalha de 24/09/1936. As três foram gravadas por Gastão Formenti, que em 1929 emprestara sua voz à valsa “Crepúsculo”, com versos de Amil (Vicente de Lima), e se tornaria o principal intérprete de Lina em 78 rotações.

    A autora passeava por diversos gêneros musicais e descartava qualquer preferência: “Há compositores que se especializam em determinado gênero; pela minha parte sempre procurei compor ritmos diferentes, sempre outros, variando constantemente”, declarou à Carioca de 01/08/1936. Pode-se notar essa variedade em sua obra. “Cantiga (Vela branca)”, feita a partir dos versos de Adelmar Tavares e frequentemente citada pelos jornais dos anos 1930, somente em 1953 receberia registro fonográfico. De sua discografia constam a valsa “Rainha do meu coração”, a rumba “Duerme alma mia” (em parceria com o pai, Giacomo Pesce), uma “Cantiga de Natal”, o bolero “Canción de mi alma”, “Vamos bailar la conga” e os samba-canção “Era uma vez”, “Eu sou assim”, “Onde estará meu amor” e “Violão de pobre”. Este, em parceria com a irmã, a poetisa Lydia Pesce, foi gravado em 1971 por Ângela Maria.

    Artistas de rádio, entre eles Dalva de Oliveira, Arnaldo Pescuma, Zezé Fonseca, Jorge Fernandes e Alzirinha Camargo, tinham em seu repertório criações de Lina – essas performances radiofônicas, registradas pela imprensa da época, infelizmente não costumavam chegar ao disco. A própria Lina chegou a atacar de cantora, tendo estreado na Rádio Club do Brasil (PRA-3), em novembro de 1934, mostrando tangos de sua autoria: “Amor de Colombina”, “Paulistana” (parceria com Luiz Roldan), “Noviecita” (com Orfeu), “Porque te quiero” (outra feita com o pai, Giacomo Pesce)... “Há tempos, curiosa de saber como ficaria a minha voz através do microfone, atuei em várias estações de broadcasting”, disse à Carioca de 01/08/1936, complementando: “Deixei o microfone também em parte devido à compreensão que sempre tive e procuro manter com as pessoas da minha família”.

    Obteve o quarto lugar no concurso de marchas juninas do jornal A Noite, em 1937, com “Noite fria de São João”, levada ao disco no ano seguinte por Gastão Formenti e em 1956 por Pacheco e Paixão. Lina, neste certame, concorreu com um pseudônimo que, anos mais tarde, iria batizar sua criação mais conhecida: Bem-te-vi. Na folia de Momo, foi campeã do Concurso de Músicas Carnavalescas de 1938 promovido pela prefeitura de São Paulo com a marcha “Você gosta de brincar” (“Eu não tô pra brincadeira / Sou garota brasileira e tenho meu valor!”). Outra marcha, “Quem semeia vento”, chegaria ao disco em 1960 pela voz de Gilda de Abreu.

    Escolhida como destaque de 1958 pelo Correio da Manhã (28/12/1958), foi eleita no mesmo ano para assumir a cadeira nº 22 – que tinha como patrona Chiquinha Gonzaga – da recém-fundada Academia Brasileira de Música Popular. Em sua coluna “Brasil sonoro” do Suplemento Literário do Diário de Notícias de 01/02/1959, Marisa Lira exaltou a artista, único nome feminino da instituição: “A grande musicista alcança no momento o apogeu de sua carreira de compositora”. Como que a corroborar as palavras da pesquisadora, O Cruzeiro de 23/05/1959 publicava a foto de Lina recebendo um prêmio concedido pela crítica musical, o Troféu da Música de 1958, por seu long-playing “Inspiração”, com composições suas interpretadas pelo violinista Irany Pinto.

    O primeiro LP com músicas de Lina tinha sido lançado em 1956 por Henrique Simonetti e os Ritmistas RGE: “Ritmos de Lina Pesce”. Em 1961, saiu o disco onde ela pôde finalmente mostrar seus dotes de pianista: “Valsas bem brasileiras”. Aluna de Lorenzo Fernandez e Tomás Terán na juventude, havia sacrificado sua carreira de concertista em prol do casamento. Mas a vocação falaria mais alto décadas depois. “E a música popular brasileira, que já contava com uma compositora de méritos incontestáveis, ganha, assim, uma nova artista, que executa ao piano, acompanhada pela orquestra de cordas dirigida por Lyrio Panicalli, uma série de composições suas, de valsas bem brasileiras, que é uma delícia ouvir”, entusiasmava-se Walter Rocha no Correio Paulistano de 27/12/1961.

    Recebeu, em 1962, o Prêmio Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro como uma das melhores do disco em 1961. Lina ainda lançaria mais dois LPs: “Concerto em ritmo” (1963), voltado para o repertório da chamada “música clássica”, e “Chorinhos bem brasileiros” (1964), no qual ela pôde dar sua própria interpretação para as famosas páginas do gênero que lhe deu fama, incluindo aí a série dos seis passarinhos e o “Elegante” choro que Irany Pinto gravara em 78 rpm em 1959. O álbum “Lina Pesce – Seus grandes sucessos” (1966) traria obras suas interpretadas por diversos nomes da MPB, como Elizeth Cardoso, Sivuca, Altamiro Carrilho, Agnaldo Rayol e Gilberto Alves.

    Já tinha voltado a morar em São Paulo quando, em 1980, com a morte do marido, decidiu se retirar de vez da vida artística. Lina Pesce deu o último suspiro no dia 30 de junho de 1995, aos 82 anos, em sua cidade natal. No dia seguinte, 1º de julho, os principais jornais do país anunciavam a perda de Lana. Não, não está escrito errado. As notícias davam conta do falecimento – ocorrido no dia 29 – da atriz estadunidense Lana Turner, ícone do cinema mundial, aos 74 anos. Sobre o passamento da compositora e pianista brasileira, não se encontra nada em buscas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, tampouco em acervos virtuais de periódicos da época na Internet. Os jornais que tanto a incensaram em décadas anteriores desta vez silenciavam sobre ela. Sua obra múltipla está hoje praticamente condenada ao esquecimento.

    Menos pior para a música brasileira que seus choros continuem ecoando vez por outra através dos trinados de cavaquinhos, flautas, bandolins, pianos, sanfonas, emulando o canto de alguns passarinhos... principalmente de um certo bem-te-vi.

    Foto: Lina Pesce na contracapa da revista Vamos Ler (19-11-1942) / Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

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