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    Há 90 anos, duas despedidas em forma de samba confirmavam a veia carnavalesca de Noel Rosa

    Pedro Paulo Malta

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    Noel Rosa já sabia o que era fazer sucesso no carnaval desde 1931, quando “Com que roupa” foi o samba mais cantado nos bailes e blocos, “apesar da música fora dos cânones carnavalescos”, como destacou Edigar de Alencar no livro “O carnaval carioca através da música” (Livraria Freitas Bastos, 1965). No ano seguinte, ainda segundo o grande jornalista e pesquisador, o sambista também frequentou as paradas momescas com duas marchinhas espirituosas: “A.E.I.O.U.” (com Lamartine Babo) e “Gosto, mas não é muito” (com Ismael Silva). Mas foi só na folia de 1933 que Noel se firmou como “o grande compositor do ano” (na definição de Alencar), especialmente por conta de dois sambas de sua autoria – sem parceiros – que caíram imediatamente no gosto popular: ambos lançados há 90 anos, em janeiro de 1933.

    Um deles é “Fita amarela”, que chegou ao disco pela Odeon nas vozes do dueto-sensação daquele início dos anos 1930, Mário Reis e Francisco Alves. Samba que Edigar de Alencar define como o “retumbante sucesso do ano, no qual não se sabe o que mais merece destaque, se a melodia bem carnavalesca sem consonância com o tema meio macabro, ou os versos mordazes, caracteristicamente noelescos”, antes de reproduzir a letra, em cujas cinco estrofes o Poeta da Vila suaviza a morbidez do assunto com lirismo (como na segunda estrofe):

    Não quero flores
    Nem coroa com espinho
    Só quero choro de flauta,
    Violão e cavaquinho

    ...e deboche (na quinta):

    Meus inimigos
    Que hoje falam mal de mim
    Vão dizer que nunca viram
    Uma pessoa tão boa assim

    Fez tanto sucesso que incomodou Donga, que logo foi à imprensa acusar Noel Rosa de ter plagiado seu samba “Quando você morrer” (dele com Aldo Taranto), que Carmen Miranda gravou e saiu em disco pela Victor – curiosamente – só no mês seguinte a “Fita amarela”. Sem qualquer semelhança na melodia ou nos versos, Donga reclamava que o rival havia se aproveitado deste mote que seria seu – mas, na verdade, era mais antigo. “Desejos para serem cumpridos depois da morte, testamentos poéticos, coisas na base de ‘quando eu morrer’ sempre foram muito comuns no Brasil”, escreveram Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa: uma biografia” (UNB, 1990). Os escritores Laurindo Rabelo (1826-1864) e José de Alencar (1829-1877) são citados no livro como autores de poemas iniciados pelo verso “Quando eu morrer...”

    No samba também o tema fez sucesso, inspirando quadrinhas que, aqui e ali, partiam do tema fúnebre para fazer graça, bravata ou gracejos românticos. “Tema muito explorado, seja por poetas conhecidos, seja por sambistas anônimos, é um mote, pode-se dizer, de domínio público”, sublinham Didier e Máximo. Mas Donga, experiente nesse tipo de quizumba desde o tempo da rivalidade com Sinhô (que dizia que “samba é que nem passarinho: é de quem pegar primeiro”), não queria saber de relativização. Espalhava nas rodas que havia sido plagiado por Noel Rosa. Até que Almirante (apelido de Henrique Foréis Domingues, cantor e depois radialista e pesquisador) defendeu o amigo: disse que tinha cantado para Noel uma quadrinha que havia aprendido com improvisadores numa tendinha de São João de Meriti.

    Quando eu morrer
    Não quero choro nem nada
    Eu quero ouvir um samba
    Ao romper da madrugada

    Aí foi a vez do pessoal do Estácio reclamar: estes versos já eram cantados nas batucadas de lá desde a década de 1920 – a depender da fonte de pesquisa, são atribuídos a Mano Rubens (Carlos Didier e João Máximo, em “Noel Rosa: uma biografia”) ou a Mano Edgar – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, em “A canção no tempo” (Editora 34, 1997). Seja como for, segundo Almirante (mais uma vez!), em sua coluna “Cantinho das Canções” (O Dia, 11-02-1973), consta que o samba de Donga e Aldo Taranto teria aproveitado integralmente letra e melodia da estrofe que era cantada no Estácio.

    De qualquer maneira, foi o samba de Noel que acabou caindo no gosto popular, tanto pela gravação original quanto pelas regravações que vieram a partir da década de 1950. Em 78 rotações foram três os novos registros lançados em disco: um pelo Trio Surdina (1955), outro com o Trio Irakitan (sem data) e ainda um terceiro, gravado sem letra por Moacir Silva e Sua Orquestra (1963).

    A história de “Fita amarela” fica ainda mais curiosa quando se sabe que esses versos podem ter voado até o Rio de Janeiro diretamente de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Foi lá que o poeta e compositor Paulo Cesar Pinheiro pesquisou e recolheu informações para sua peça musical “Besouro Cordão de Ouro” (2006), sobre o famoso capoeirista Besouro Mangangá – apelido de Manuel Henrique Pereira (1897-1924). Nas conversas com os mais-velhos da cidade baiana, o poeta conheceu o “Canto do Besouro”, que era assinado pelo capoeirista e tinha versos idênticos aos do refrão de Noel.

    Vale registrar que esta não é a única ocorrência do mote fúnebre na história de Besouro: são dele os versos aproveitados por Paulo Cesar Pinheiro e Baden Powell como refrão do famoso samba “Lapinha”, vencedor da Bienal do Samba de 1968, na voz de Elis Regina. “Quando eu morrer, me enterrem na Lapinha / Calça, culote, paletó, almofadinha”, dizia o mote, que Baden aprendeu com um sucessor de Besouro, o capoeirista soteropolitano Canjiquinha (Washington Bruno da Silva, 1925-1994).

    Muito menos intrincada é a história do outro grande sucesso de Noel Rosa no carnaval de 1933, lançado pela Odeon na voz do cantor João Petra de Barros: “Até amanhã”, samba que com o tempo viraria número de encerramento de tantos shows e bailes de carnaval, mas nasceu mesmo em contexto romântico. Isso em maio do ano anterior (1932), quando Noel, juntamente com Francisco Alves e Mário Reis e o pianista Romualdo Peixoto (o Nonô), viajava em turnê pelo Sul do Brasil.

    Um enredo que começa em Porto Alegre, na véspera da partida para Florianópolis, onde se seguiu a excursão, como contou o próprio Noel. “Defronte ao meu hotel morava a ‘deusa’ inspiradora. Chovia muito e eu sentia desejos de vê-la. Da janela conversava com ela, mas, súbito, alguém a chamou e teve que se despedir. Fechou-se a janela e eu fiquei cantarolando: ‘Até amanhã / Se Deus quiser...’”, disse o compositor à revista Carioca (18-07-1936), como já publicamos em 2020, num texto dedicado a ele.

    Segundo os biógrafos de Noel, o verso inicial (e nome) do samba partiu de uma fala da própria pequena, por quem o sambista teria tido “uma paixão breve, mas intensa”. Os dois conversavam pela janela, “separados pelo aguaceiro”, até que veio a interrupção: “Alguém a chama lá dentro. A morena entra apressada, com tempo apenas para dizer: ‘Até amanhã...’ Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de Porto Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu quarto de pensão.”

    Até amanhã, se Deus quiser
    Se não chover, eu volto pra te ver, oh mulher
    De ti gosto mais que outra qualquer
    Não vou por gosto, o destino é quem quer

    Quem deu mais detalhes sobre a musa de “Até amanhã” foi Almirante, em seu livro fundamental “No tempo de Noel Rosa” (Contrastes e Confrontos, 1963). “Durante a temporada, Noel e Nonô moravam na Pensão Mangache, na Rua Nova, e após os espetáculos permaneciam no Clube Jocotó, espécie de dancing. Ali Noel apaixonou-se por uma das criaturas do cabaré”, descreveu o grande radialista e pesquisador musical, companheiro de Noel e outros músicos no conjunto Bando de Tangarás, formado no fim da década de 1920. “Durante a volta de navio, encheu-se de tristeza, o que deu origem a ‘Até amanhã’, um dos mais melancólicos sambas de sua produção.”

    Mesmo assim, o samba virou sucesso de carnaval e também uma das composições mais regravadas de Noel, a começar pelos registros que saíram em discos de 78 rotações. Regravações que, a exemplo de “Fita amarela”, começaram a ser lançadas muito depois da morte de Noel Rosa (1937), quando a obra do Poeta da Vila passou a ser redescoberta e revalorizada, graças ao fiel Almirante – que relembrou o amigo numa série de programas de rádio – e à cantora Aracy de Almeida, que regravou sucessos em 1950-51, na Continental. Já o samba “Até amanhã” foi reagravado em 78 rotações pelo seresteiro Gilberto Alves (1952), pelo sambista Dilermando Pinheiro (1955) e ainda em formato instrumental, por Canhoto e Seu Regional (1958).

    Foto: Noel Rosa na Rádio Mayrink Veiga em 1935 / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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