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    Cachaça não é água... e foi a grande ‘bomba’ do carnaval de 1953

    Pedro Paulo Malta

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    Gênero musical popularíssimo do carnaval brasileiro, a marchinha volta e meia traz em suas letras expressões que nunca mais saem da boca do povo: foi cantando o gênero saltitante que a turma da folia se acostumou a dizer que “banana engorda e faz crescer”, “é dos carecas que elas gostam mais”, “esse ano não vai ser igual àquele que passou” e por aí vai. Pois nesta folia de 2023 completam-se 70 anos de um sucesso que trouxe não só um verso, mas um refrão inteiro que virou dito popular:

    Você pensa que cachaça é água
    Cachaça não é água não
    Cachaça vem do alambique
    E água vem do ribeirão

    No carnaval de 1953 não houve música mais cantada do que “Cachaça”, a marchinha lançada pela gravadora Copacabana (no 78 rotações de nº 5012), em grande performance de um dueto inusitado, mas muito bem timbrado: do comediante Colé (apelido de Petrônio Rosa de Santana) com a cantora Carmen Costa – cujo rosto ilustra este post e já era conhecida do grande público por sucessos de Henricão e Rubens Campos, como os sambas “Está chegando a hora” e “Só vendo que beleza”, ambos do comecinho da década de 1940. Agora era a vez de fazer sucesso em ritmo de marcha: no caso, a marchinha assinada por Mirabeau Pinheiro, Heber Lobato e Lúcio de Castro que teve amplo espaço na imprensa.

    “Todos estão querendo cachaça”, dizia uma das manchetes do jornal A Manhã na edição de 15 de janeiro de 1953, na qual os leitores souberam também que a “vendagem de discos já atingiu a casa dos 17.000”. O mesmo periódico destacou que a música marcava a volta de Carmen Costa às paradas de sucessos, após a longa temporada passada entre Los Angeles e Nova York, onde viveu com o engenheiro estadunidense Hans Von Koehler. “É o primeiro sucesso daquela cantora após dez anos de ausência de nossos carnavais.”

    Já a revista Carioca (17-01-1953) destacou que a gravação de Carmen Costa e Colé – “a nova e já consagrada dupla do nosso rádio, teatro e boates” – era “uma das grandes ‘bombas’ para o próximo carnaval”. No mesmo dia, o crítico musical Paulo Medeiros cantava a mesma pedra em sua coluna Ronda dos Discos, na Última Hora, definindo “Cachaça” como “a grande força de marcha para este carnaval.”. “Apareceu ela praticamente sem pretensões, gravada por dois elementos de teatro”, informava o jornalista. “O povo, no entanto, logo que tomou conhecimento da marcha, lançou-a em cheio. Muitos não sabiam a segunda parte, mas bastava a primeira para fazer dela um sucesso.”

    Mesmo com a segunda parte tendo sido gravada com tanto capricho e graça por Colé (cantando a melodia principal) e Carmen Costa (na segunda voz):

    Pode me faltar tudo na vida
    Arroz, feijão e pão
    Pode me faltar manteiga
    E tudo mais não faz falta não
    Pode me faltar o amor (Hahahaha!)
    Disso até acho graça
    Só não quero que me falte
    A gostosa da cachaça

    Os prognósticos se confirmaram no dia 28 de fevereiro, quando o público superlotou o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, para acompanhar o tradicional concurso anual de músicas carnavalescas – promovido naquele ano pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Rio de Janeiro. “Cachaça” foi a grande vitoriosa entre as marchinhas, deixando em segundo lugar outro clássico do gênero, “Pescador”, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. Segundo a revista A Scena Muda (11-03-1953), o concurso teve 266 músicas inscritas, das quais dez foram selecionadas para serem apresentadas na grande final, por ordem alfabética, com acompanhamento da orquestra do Maestro Chiquinho.

    A marchinha vencedora de 1953 também foi tema da Revista do Disco, que na edição de fevereiro daquele ano trouxe a história da composição: “Aconteceu no Mocambo, quando Carmen Costa ainda atuava naquela boate”, diz o texto, antes de informar que, já no fim da noite, a cantora e seu parceiro de cantoria, Mirabeau Pinheiro, sentaram-se para descansar e perceberam uma mesa mais animada que as outras. “Olha, aquilo é cachaça na certa”, disse o cantor, provocado em seguida por Carmen a fazer uma música sobre o tema. “Mirabeau não teve dúvidas, foi ao microfone e de improviso fez os versos”, relata a revista. “Dez minutos depois com a ajuda do rapaz que estava na mesa, Heber Lobato, acertaram a melodia.”

    Marinósio Filho (Imagem do acervo de Dulcínie Trigueiros)

    Não contavam com um elemento surpresa que mudaria o rumo do enredo. Mas, diferentemente do J. Pinto Fernandes do poema de Drummond, o novo personagem da história de “Cachaça” chegou dizendo a que veio. Isso na edição de 13 de fevereiro de 1953 do jornal A Noite, no qual Marinósio Filho – jornalista atuante em Londrina (PR) – apareceu se dizendo autor da primeira parte da marchinha. “Fiquei surpreendido com a regravação da minha música, assinada por três rapazes que me eram completamente desconhecidos”, afirmou o reclamante, cujo nome completo era Marinósio Trigueiros Filho, baiano de Salvador nascido em 20 de maio de 1914. Era dele o famoso refrão, que originalmente dizia assim:

    Você pensa que cachaça é água
    Cachaça não é água não
    Cachaça fica no alambique
    E água fica no purrão

    Mesmo identificando alterações pontuais no terceiro e quarto versos da letra (como o ribeirão no lugar do purrão – pote grande de barro), Marinósio era enfático na defesa de sua obra: “A melodia (...) é uma só. E o tema não é motivo popular; é meu, original, inteiramente meu.” Seria mais um oportunista, como tantos na história da música brasileira que, sabedores da máxima de Sinhô (“Samba é que nem passarinho: de quem pegar primeiro”), volta e meia tentavam pegar carona no sucesso alheio?

    Qual o quê! Marinósio não só trouxe a novidade, como também a prova: um disco gravado oito anos antes, como contou A Noite, na descrição da visita à redação. “A esta altura, Marinósio pôs sua velha gravação para tocar numa vitrola”, descreve o jornal, na mesma edição. “Constatamos a veracidade de suas afirmações. A seguir, o compositor nos exibiu o disco. Verificamos, então, as características da velha gravação.”

    O disco, por aqui desconhecido, havia sido lançado em Montevidéu, com gravação feita em fins de 1945 para ser lançada no início de 1946. “Cachaça não é água” (nome da música nesta primeira gravação) estava no lado B de um 78 rotações da fábrica uruguaia Sond'Or: o disco de nº 5021, que no lado A tinha outra música do mesmo compositor, o samba “Baiana me leva”. Nos selos do disco lia-se que ambas as gravações foram feitas “con Marinósio y su conjunto típico Afoxé”, como atestou A Noite.

    Marinósio Filho e o disco uruguaio (Imagem do acervo de Dulcínie Trigueiros)

    Antes da gravação uruguaia, a música havia sido lançada em partitura aqui no Brasil em 1944, pela editora A Melodia, com o nome “Tenha cautela” (e o subtítulo “Cachaça não é água”), aproveitado de um verso da segunda parte da composição de Marinósio:

    Rapaz, tenha cautela
    Por causa dela
    Não beba assim
    Olhe, que é breve a vida
    E ela é tão fingida
    Que quer ver seu fim

    A primeira página da mesma edição d’A Noite exibia numa foto a partitura editada (“com orquestração de Jack Sceep”) e o disco uruguaio, sob a manchete enxuta: “Acusados de plágio os autores da ‘Cachaça’”.

    A notícia reverberou em outros veículos, como A Scena Muda, que na edição de 4 de março de 1953 trouxe o capítulo seguinte da novela, com informações sobre o rateio dos direitos. “Constatado o plágio, a União Brasileira de Compositores imediatamente tratou de defender os interesses de seu associado, já que os três autores da marcha que foi uma das campeãs deste carnaval não pertencem a nenhuma sociedade arrecadadora de direitos”, informava a revista. “A UBC deliberou que Marinósio, como legítimo autor da marcha, receberia 60% dos direitos, enquanto que os demais (em número de três) receberiam 40%, sendo que destes 40% seriam descontadas as percentagens do editor (15%) e da sociedade (30%). Dessa forma, os três ‘autores’ da marchinha ainda ficarão devendo à UBC após a partilha dos direitos...”

    Na mesma matéria, A Scena Muda questiona a partilha dos direitos: “Achamos de bom alvitre ressaltar que Heber Lobato, que aparece como um dos três autores da nova versão de ‘Tenha cautela’, não tem uma parcela de culpa no caso, já que o maior responsável é Mirabeau Pinheiro, que entrou com a primeira parte (justamente a plagiada) e o Heber colaborou apenas na segunda parte (justamente a que não foi plagiada), sendo, portanto, levado no arrastão pelos outros dois...” Curiosamente, a participação de Lúcio de Castro – o outro signatário de “Cachaça” – não é mencionada (ou questionada) nesta ou em qualquer outra matéria sobre o imbróglio.

    “Meu pai era muito prático, viu?”, conta Dulcínie Trigueiros, filha de Marinósio. “Quando ele soube da gravação que estava fazendo sucesso no Rio de Janeiro, correu com minha mãe para lá, mas primeiro foram para a rua divulgar a música. Só depois ele foi tratar da questão autoral”, conta a funcionária pública nascida há 59 anos em Londrina, onde o pai fixou residência em 1947, deixando para trás a carreira musical e destacando-se como jornalista, especialmente a partir da década de 1950, no periódico O Combate, com textos críticos aos governantes. A trajetória jornalística de Marinósio Filho foi tema em 2014 da dissertação de mestrado em História do jornalista Felipe Melhado na Universidade Estadual de Londrina – clique aqui para acessar o texto.

    “Ele não tinha papas na língua, dizia tudo o que tinha pra ser dito”, relembra Vilmari Trigueiros, 57 anos, caçula dos quatro filhos de Marinósio, que também era pai de Marinosinho (falecido em 1993) e de Vinísio, que tem 61 anos e vive em São Paulo. “Depois de 1964, meu pai foi perseguido pela ditadura militar e chegou a viver um tempo escondido na chácara de um amigo em Londrina, de onde conseguiu escapar para Curitiba”, conta Vilmari, que, assim como a irmã, é funcionária pública aposentada e vive em Londrina. “Não pegamos a época do pai compositor ou jornalista”, diz Dulcínie. “As histórias que sabemos foram contadas por ele ou ouvimos nas conversas que ele tinha com amigos.”

    Como, por exemplo, a história de como fez sua composição mais famosa. “A marchinha ‘Cachaça não é agua’ ele escreveu num bar na Ribeira, em Salvador, onde ele morava”, relata Vilmari. “Uma noite, estava bebendo com Josa, irmão dele, e escreveu a letra num guardanapo.” Foi na capital baiana que Marinósio formou seu conjunto musical, o Afoxé, com que passou a se apresentar – primeiro na própria Bahia, depois em excursão pelo país. Até que, a convite da Prefeitura de Montevidéu, seguiu em fins de 1944 para o Uruguai, onde se tornou atração no Parque Rodó, em dueto com a cantora Dulce de Almeida.

    Graças ao sucesso da temporada, foi contratado pela gravadora Sond’Or, onde gravou seis discos – entre eles o da marchinha “Cachaça não é agua”, já então sucesso da dupla nos bailes de carnaval em Montevidéu. Infelizmente, até o fechamento deste texto não conseguimos a gravação da primeira “Cachaça”: a gravadora uruguaia (ainda em atividade nos dias atuais) não deu retorno a nossas consultas e o único exemplar do disco guardado por Marinósio – um dos dois mil que a Sond’Or lançou no mercado e rapidamente se esgotaram – quebrou-se. Ficaram as memórias e boas histórias que Marinósio compartilhou com amigos e familiares até 9 de setembro de 1990, quando faleceu em Londrina, aos 76 anos, vítima de complicações respiratórias.

    Entre os guardados do compositor-jornalista mantidos por Dulcínie Trigueiros a principal relíquia é a partitura da primeira versão de “Cachaça não é água”, ou melhor: “Tenha cautela”, com rasuras do próprio Marinósio a caneta, como que atualizando a letra com que a música ficou conhecida. Partitura lançada comercialmente pela editora A Melodia (1944) trazendo impressa na capa um aviso curioso: “Srs. chefes de orquestras. Anotando o título e o nome do autor desta música na lista de execuções fornecida pelo Serviço de Defesa do Direito Autoral (S.D.D.A.) V. Sa. estará cooperando para a garantia do pagamento dos direitos aos respectivos autores.”

    A letra original de Marinósio na partitura de 1944 (Imagem do acervo de Dulcínie Trigueiros)

    No fim das contas, foi com as assinaturas de Marinósio Filho, Mirabeau Pinheiro, Heber Lobato e Lúcio de Castro que “Cachaça” acabou entrando para a história – e segue até hoje entre as mais cantadas de todo o repertório carnavalesco. De acordo com o site da União Brasileira dos Compositores (a UBC), em texto de 25-02-2022, foi a segunda música mais executada no carnaval carioca entre 2016 e 2020, atrás apenas de outro clássico das marchinhas, “Me dá um dinheiro aí” (Homero Ferreira, Glauco Ferreira e Chiquinho).

    O sucesso de “Cachaça” inspirou outras marchinhas de temática etílica que saíram em disco nos carnavais seguintes a 1953 e também nunca mais saíram do repertório carnavalesco. Entre elas destacam-se “Saca rolha” (Waldir Machado, Zé e Zilda), de 1954, “Tem nego bebo aí” (Mirabeau e Aírton Amorim) e “Ressaca” (Zé e Zilda), de 1955, e ainda “Turma do funil” (Mirabeau, Milton de Oliveira e Urgel de Castro), de 1956.

    Foto principal do post: Carmen Costa na Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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