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    Bossa, fossa e outros babados: cem anos da ‘personalíssima’ Isaurinha Garcia

    Pedro Paulo Malta

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    Canto versátil era o de Isaurinha Garcia: ótima nos sambas de malandragem, melhor ainda na dores-de-cotovelo. Junte-se a isso afinação, o entendimento preciso das letras, a capacidade interpretativa e a franqueza de quem, na contramão das “belas, recatadas e do lar”, arregalava a sociedade dos anos 1930, 40 e 50 de cigarro na mão, copo cheio na outra, a boca cheia de palavrões e um apetite leonino para namorar. Tudo isso publicamente, temperando a trajetória desta que foi uma das maiores cantoras da era do rádio – nascida há cem anos, no dia 26 de fevereiro de 1923, no bairro do Brás, zona central de São Paulo.

    Quando faleceu, aos 70 anos (30-08-1993), os obituários se ocuparam menos de sua vida artística e mais da pessoal, especialmente do casamento conflituoso que teve com o pernambucano Valter Vanderley, organista e bandleader com quem viveu entre as décadas de 1950 e 60, e pai de sua única filha, Mônica. Outra fofoca – anterior ao casamento – fartamente explorada nas páginas foi a de seu caso com o compositor Herivelto Martins, com quem teria sido flagrada na cama pela companheira dele, a cantora Dalva de Oliveira, em meados da década de 1940, quando Isaurinha chegou ao Rio e foi hospedada pelos dois.

    Menos picantes e mais relevantes são as histórias de como ela, menina, arriscou os primeiros trinados, enquanto ajudava o pai com serviços diversos no bar que ele tinha. Pouco depois, já tentava a sorte no rádio, sempre incentivada pela mãe. “Ela queria ser cantora”, contou ao programa MPB Especial, da TV Cultura, em 1972. “Como não conseguiu, empurrou para mim o negócio.” Estava ainda na adolescência quando, depois de ser gongada no primeiro programa de calouros, saiu vitoriosa do segundo, que se chamava “Quá Quá Quá Quarenta” e era transmitido pela Rádio Record.

    Na emissora paulistana, onde passaria mais de 30 anos como contratada, virou artista de vez: fez par teen com o cantor Vassourinha, conquistou seu imenso fã-clube, conheceu seu primeiro companheiro (Teófilo de Sá, diretor da Record) e ganhou o apelido “A Personalíssima”, criado pelo apresentador Blota Jr., depois que garantiu seu espaço com seu timbre anasalado, o forte sotaque paulistano italianado e a maneira especial com que dizia os sambas. “Carmen Miranda e Aracy de Almeida foram as duas que me inspiraram a cantar”, definiu-se no MPB Especial.

    Para entender as duas influências basta ouvir o primeiro disco de Isaurinha, lançado em agosto de 1941: em ambos os lados há verdadeiras aulas de bossa da estreante, com os ótimos sambas que lançou no 78 rpm de nº 55294 da Columbia, sua primeira gravadora: fazendo a cabrocha arrependida em “Pode ser” (Geraldo Pereira e Marino Pinto) e a sufocada em “Chega de tanto amor” (Mário Lago).

    As queixas seguem afiadas em outras tretas que gravou pouco depois, voltando a compositores da estreia fonográfica. De Mário Lago – com Roberto Martins – veio “Eu não sou pano de prato”, lançado por ela em dezembro de 1941, e de Marino Pinto – com Murilo Caldas – deu voz a “Teleco teco”, saracoteando com a flauta de Benedito Lacerda em disco de maio de 1942.

    As madrugadas do marido boêmio – agora sem conciliação – estão em outro sucesso inicial de seu repertório, já lançado na Victor, gravadora em que fará seus discos entre 1942 e 1956. Trata-se de “O sorriso do Paulinho” (Gastão Vianna e Mário Rossi), que saiu em abril de 1943, um mês depois do lançamento de “Aperto de mão”, de Augusto Mesquita com os violonistas Horondino Silva (Dino 7 Cordas) e Jaime Florence (o Meira).

    “‘Aperto de mão’ foi um dos sambas mais bonitos que gravei”, disse ao programa MPB Especial. Não por outra razão seus compositores aparecem outras tantas vezes em seu repertório lançado em 78 rpm. Como no disco 80-0262, que saiu em abril de 1945 trazendo o ótimo samba-choro “Deixa pra lá” (parceria de Meira com Mesquita) no lado A e o samba romântico “Ironia do amor” (de Dino com Del Loro) no B.

    Ainda no repertório buliçoso há boas crônicas em forma de samba-choro, a começar por “Velho descarado” (Gadé e Cristóvão de Alencar, 1946), mais uma resposta afiada da mulher ao marido polígamo: “Isso são horas do senhor chegar em casa...?” E também “Amanhã tem baile” (Ciro de Sousa e Marino Pinto, 1944), da pequena que se recusa a servir de substituta.

    Outro triângulo amoroso numa composição de Ciro de Sousa é o de “Duas mulheres e um homem” (co-assinado por Jorge de Castro, 1943), mas aqui, no lugar de queixas ao bígamo, são as duas que decidem a parada, num papo-reto em forma de samba. Já em “Marido maluco” (Gadé, 1949), Isaurinha dá voz à doméstica que, sem meias palavras, denuncia o patrão abusivo à esposa dele: “Dona Julia, ensine esse palhaço a respeitar mais a senhora / Se ele fosse meu marido estava na chibata...”

    Também em primeira pessoa é o melodioso samba “Eu não sou louco” (Lupicínio Rodrigues e Evaldo Rui), um dos mais bem-sucedidos lançamentos de Isaurinha mirando o carnaval – no caso, o de 1950. Outro exemplar de seu repertório folião é a marcha “A baratinha” (Antonio Almeida), que, com relativo destaque no carnaval de 1942, volta e meia era citada pela cantora como sua primeira música gravada.

    Outros gêneros além do samba se fizeram presentes no repertório de Isaurinha Garcia. Como a polquinha “Negócio de família” (Filhinho, Thalma de Oliveira e Caco Velho, 1955), gravada com muita graça em dueto teatral com Ivon Curi, e o xote “Carro de bigode” (dos mesmos Filhinho e Thalma de Oliveira, 1954), cuja interpretação ela divide com Hervê Cordovil. O mesmo duo pode ser ouvido também em “Pé de manacá”, baião de 1950 assinado pelo próprio Hervê com Mariza Pinto Coelho.

    Já no choro o principal destaque é sua gravação para o clássico de Pixinguinha “Sofres porque queres”, com letra atribuída a Benedito Lacerda. Do outro lado deste mesmo disco – o RCA Victor 80-0621, de outubro de 1949 – está o melodioso “Seresteiro”, que, embora assinado por Pixinguinha e Benedito Lacerda, segundo consta no site oficial do primeiro, seria de autoria exclusiva do segundo.

    Também em ritmo de choro é uma espécie de versão paulistana da “casinha lá na Marambaia” cantada por Carmen Costa em 1942: aqui, nesta gravação de 1957, é no alto do bairro do “Tucuruvi” que fica o bangalô imaginado por Vicente Longo e Osvaldo Morigge, com “roseira carregadinha de flor” e varanda onde “bate sombra o ano inteiro”.

    Já do contexto pré-bossa nova é o samba-canção “Deixa pra lá” (outra com esse nome em seu repertório), composição pouco conhecida de Vinicius de Moraes gravada no ano anterior (1957) ao marco inicial do movimento. E também “De conversa em conversa”, samba de Lucio Alves e Haroldo Barbosa que, muito antes de fazer sucesso com João Gilberto (1970), teve sua primeira gravação em 1947, com Isaurinha e o conjunto Namorados da Lua.

    No entanto, o maior sucesso disparado de seu repertório (“Um hino”, como ela definiu no MPB Especial) não teve canto ligeiro nem breques malandros: foi o samba romântico “Mensagem” (Aldo Cabral e Cícero Nunes), lançado por ela em abril de 1946, que a projetou nacionalmente e, de quebra, lhe valeu sua primeira coroa: a de “Rainha dos Carteiros” – já em 1953 seria coroada também a primeira “Rainha do Rádio Paulista”.

    Confirmam a força de seu canto pungente outras dores-de-cotovelo que fizeram sucesso em sua voz, a começar pelo lado B do disco de “Mensagem”, que traz o samba “Edredon vermelho” (Herivelto Martins), interpretado por Isaurinha com todos os portamentos e vibratos a que tem direito. E ainda um dos líderes das paradas em 1960, o samba “E daí” (Miguel Gustavo), lançado por ela em setembro de 1959, já na Odeon.

    Pois foi nesta mesma gravadora que fez seus primeiros sete LPs, entre 1957 (“A Personalíssima”) e 1963 (“Sambas da madrugada”). Já pela Continental teve outros lançamentos marcantes, como os três songbooks de duplas de compositores que saíram no fim da década de 1960: o primeiro dedicado a Chico Buarque e Noel Rosa (1968), o segundo a Martinho da Vila e Dolores Duran e o terceiro a Ary Barroso e Billy Blanco  – os dois últimos de 1969.

    Já em 1976 veio o disco “Nua & Crua ao vivo”, como sete pot-pourris que privilegiam a variedade de seu repertório. No texto da contracapa, Hermínio Bello de Carvalho, produtor do disco, é preciso ao destacar a franqueza de Isaurinha Garcia. “Uma das maiores estilistas de nossa música, uma cantora que grafa dramaticamente cada sentimento, que enfatiza o óbvio sem resvalar em redundâncias”, define. “Porque tudo nela vem excessivamente de dentro, a intenção antes do efeito: sem filtros, sem policiamentos, sem pudores estéticos.”

    Foto: Curt / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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