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    Garota sexagenária: entre Ipanema e o mundo, a estreia fonográfica na voz de Peri Ribeiro

    Pedro Paulo Malta

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    É curioso que ainda existam histórias a serem contadas sobre a canção brasileira mais conhecida internacionalmente, “Garota de Ipanema”, o samba de Tom Jobim e Vinicius de Moraes que rodou o mundo depois do sucesso que fez nos Estados Unidos, com o disco “Getz/Gilberto”, lançado pela gravadora Verve em março de 1964. No entanto, antes do famoso registro em trio (nas vozes contidas de João e Astrud Gilberto e no saxofone de Stan Getz), a moça já era conhecida por aqui, tanto das reuniões musicais em apartamentos quanto de shows e suas primeiras gravações. A primeira de todas, aliás, está completando 60 anos: foi no dia 26 de março de 1963 que Peri Ribeiro entrou em estúdio para fazer a gravação original de “Garota de Ipanema”.

    Um registro, diga-se, nem tão bossa nova assim: foi na voz quente e com vibratos de Peri (além dos violinos do arranjo de Lírio Panicali) que o samba estreou em disco. No caso, em discos: a Odeon lançou a gravação tanto no 78 rotações de nº 14869-1 quanto no longplay “Pery é todo bossa”, terceiro do jovem cantor, então com 24 anos. Neste lançamento de 1963, a obra mais famosa de Tom Jobim e Vinicius de Moraes abria o lado B, em meio a um repertório em que predominavam parcerias de Menescal e Bôscoli (“Rio”, “Ah se eu soubesse”, “Vagamente” e “Nós e o mar”), além de composições do próprio intérprete.

    Tanto o 78 rpm quanto o LP chegaram às lojas em julho de 1963, menos de um ano após a primeira audição da música, em agosto de 1962, num show histórico que reuniu Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana – sim, foi no bairro vizinho que se ouviu pela primeira vez a “Garota de Ipanema”, que até ali era mais uma das músicas apresentadas no “Encontro” – nome do show. Outras composições de Tom que estrearam na temporada (que começou em 2 de agosto de 1962 e durou 45 noites) foram “Corcovado”, “Samba do avião”, “Só danço samba” e “O amor em paz”, as últimas duas com Vinicius.

    No caso da “Garota”, os sortudos e as sortudas que estiveram no Bon Gourmet ainda puderam conhecê-la em sua forma original, com uma introdução feita especialmente para ser cantada pelo trio, na forma de uma conversa, como se pode ouvir nas gravações do "Encontro" disponíveis no YouTube.

    João: “Tom, e se você fizesse agora uma canção que possa nos dizer, contar o que é o amor?”
    Tom: “Olha, Joãozinho... Eu não saberia sem Vinicius pra fazer a poesia.”
    Vinicius: “Para essa canção se realizar quem dera o João para cantar...”
    João: “Ah, mas quem sou eu? Eu sou mais vocês. Melhor se nós cantássemos os três.”

    Sobre a composição, feita no verão de 1962, convencionou-se dizer que foi feita numa mesa de bar na esquina da Rua Prudente de Moraes e Montenegro (hoje Vinicius de Moraes), em Ipanema. Mas não foi bem assim: “De uma vez por todas, Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes não compuseram ‘Garota de Ipanema’ no bar Veloso”, assevera Ruy Castro no livro “Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema” (Companhia das Letras, 1999). “Sim, foi dali, com olhos compridos, que eles viram passar a jovem Heloísa Eneida, depois Helô Pinheiro, ‘a caminho do mar’. Mas só isso.” Segundo, Ruy, Tom teria composto a música em seu apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema, e Vinicius fez a a letra, algumas semanas depois, em sua casa em Petrópolis. "Eles tinham mais o que fazer nos bares além de trabalhar.”

    O roteiro da composição (melodia de Tom composta em Ipanema e a letra de Vinicius em Petrópolis) era o mesmo do maior sucesso da dupla até ali, “Chega de saudade”, lançado em meados de 1958, em gravações de Elizeth Cardoso e João Gilberto – esta segunda considerada o marco inicial da bossa nova.

    Inicialmente, a nova melodia de Tom era destinada a um musical que Vinicius vinha escrevendo com um plot no mínimo inusitado: um extraterrestre que vinha parar no Rio de Janeiro. O espetáculo do poeta, chamado “Blimp”, ficou pelo caminho, mas o encanto melancólico dos boêmios de meia-idade pela jovem colegial (com seus 16/17 anos) rendeu mais uma obra à parceria. Inicialmente, tinha o nome de “A menina que passa” e a primeira parte assim:

    “Vinha cansado de tudo
    De tantos caminhos
    Tão sem poesia
    Tão sem passarinhos
    Com medo da vida
    Com medo do amor
    Quando na tarde vazia
    Tão linda no espaço
    Eu vi a menina
    Que vinha num passo
    Cheia de balanço
    A caminho do mar”

    “A moça vai à praia à noite, Vinicius?”, teria perguntando Tom, zombeteiro, segundo seu biógrafo, o jornalista e escritor Sérgio Cabral, no livro “Antônio Carlos Jobim” (Editora Lumiar, 1997). “Nenhuma letra resistiria a uma pergunta dessas disparada por Tom Jobim, sendo, por isso, inteiramente modificada”, relata o autor.

    Quando a bossa nova expandiu seus domínios para os Estados Unidos (após o famoso show no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro de 1962), nada mais natural que o doce balanço da garota também chegasse por lá. A letra em inglês foi confiada ao estadunidense Norman Gimbel, que inicialmente não queria saber de mencionar Ipanema em seus versos – temia que seus compatriotas confundissem com Ipana, uma famosa marca de pasta de dentes da época, e a música acabasse sendo entendida como um jingle. Prevaleceu a vontade de Tom Jobim e o bairro ficou – não só na letra como no nome da música, “The girl from Ipanema”.

    E assim se deu um dos grandes sucessos de 1964, mesmo que algumas características originais do samba de Tom e Vinicius tenham se perdido na adaptação de Gimbel, como observa Ruy Castro em um de seus livros dedicados à bossa nova (“A onda que se ergueu no mar”, 2001): logo no primeiro verso (“Olha que coisa mais linda mais cheia de graça”), as síncopes se diluem na languidez arrastada de “Tall and tan and lovely”. Seja como for, foi assim – na já mencionada interpretação de João, Astrud e Stan Getz – que ela foi eleita a “gravação do ano” de 1964, na 7ª edição do Grammy Awards, vencendo indicados de peso, como Louis Armstrong (com “Hello Dolly”) e os Beatles (com “I want to hold your hand”).

    O quarteto de Liverpool, por outro lado, foi o único que “The girl from Ipanema” não conseguiu superar nas paradas de sucessos dos Estados Unidos, nas quais o samba permaneceu por 96 semanas consecutivas como uma das mais executadas nas emissoras de rádio e TV estadunidenses, segundo o jornalista e escritor Sérgio Cabral na biografia de Tom. “Mas eram quatro contra mim", justificava o pianista, bem-humorado.

    O sucesso internacional da “Garota” se consolidou através de interpretações de artistas consagradas, a começar por Sarah Vaughan, que em 1964 adaptou a história musicada para “The boy from Ipanema”, assim como faria Ella Fitzgerald no disco “Ella abraça Jobim”, de 1981. Ainda em 1964, a garota balançou no piano de Oscar Peterson e no canto aveludado de Nat King Cole – numa das últimas gravações de sua vida. Em 1966 foi a vez de Frank Sinatra cantar “the girl” no célebre disco que dividiu com Tom Jobim. Outro registro marcante numa voz estrangeira foi o da londrina Amy Winehouse, lançado em 2011.

    Já no Brasil é mais fácil listar quem não gravou “Garota de Ipanema”: só em 1963, outros 23 artistas gravaram a música além de Peri Ribeiro, segundo o Instituto Memória Musical Brasileira. Entre estes registros estão alguns de sucesso, como um dos Cariocas, um do Tamba Trio e o primeiro do próprio Tom, em seu primeiro disco solo, “The composer of Desafinado plays” (mais um da Verve Records). Já Vinicius só cantou em disco sua criação mais famosa a partir de 1970, quando dividiu os vocais com Toquinho e Maria Creuza.

    Wilson Simonal sublinhou o doce balanço da garota em 1964 e 1970, enquanto Elis Regina divertiu-se com a menina – e com o piano de Hermeto Pascoal – em 1982. Já Roberto Carlos só gravou em 2008, em dueto com Caetano Veloso, e em 2022 Anitta deu o que falar (essa era a ideia) partindo da composição de Tom e Vinicius para cantar sua “Girl from Rio”.

    Segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), até o ano passado tinham sido registradas 436 gravações de “Garota de Ipanema”, que então se tornou a música brasileira mais gravada de todos os tempos, ultrapassando “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso) e “Carinhoso” (João de Barro e Pixinguinha), empatadas com 422 execuções, e “Asa branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), com 366.

    Fora da música, a garota de Tom e Vinicius também passou cheia de graça por outros caminhos. No cinema, inspirou em 1967 o longa-metragem “Garota de Ipanema”, de Leon Hirzsman, mais lembrado pelo elenco pitoresco – João Saldanha, Chico Buarque, Ziraldo, Rubem Braga, Fernando Sabino... – do que exatamente por críticas favoráveis. Depois, passou a emprestar sua fama também a lojas de roupas, biquíni de grife, perfume da Avon, salão de beleza, coleção de joias e incontáveis condomínios à beira-mar. Além, claro, do Bar Veloso, o ponto de encontro de Tom e Vinicius que, em fins de 1966, passou a chamar-se “Garota de Ipanema”.

    Foto: Nagib Allit / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS 

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