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    Samba era com Marília Batista: a cantora ‘preferida de Noel’ que também fez história como compositora

    Pedro Paulo Malta

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    Fala tudo que meu peito sente
    Pois, meu amigo verdadeiro
    Nem brincando você mente

    Foram dedicados ao violão os primeiros versos de Marília Batista, menina ainda, quando nem sonhava tornar-se a cantora e compositora importante de sambas que seria nas décadas de 1930 e 40. Ainda não tinha dez anos de idade e não largava por nada o instrumento-brinquedo, dedilhando as cordas como numa “conversa estranha e amiga que me chamava não sei para onde”, como contou à revista Diretrizes (03-04-1941). Até que o pai, admirado com o xodó da menina, importou um violão espanhol, “premiado em duas exposições em Sevilha”, como corria na família. “Que ciúme eu tinha dele... Não o emprestava a ninguém”, relembrou, na mesma matéria.

    Até que, numa tarde de 1932, lá foram os dois – menina e brinquedo – a um evento musical no Grêmio Esportivo Onze de Junho, no bairro do Riachuelo. “Eu estava lá com meu violão quando um rapaz magro e pálido pediu-me emprestado”, “Não tive tempo de negar. O rapaz levou o violão consigo, subiu no palco e o speaker – que era Lamartine Babo – anunciou: ‘Vamos ouvir agora... Noel Rosa!’” Não sabia de quem se tratava, mas gostou do que ouviu. “Quando ele terminou de cantar, já não me lembrava mais do meu violão. O samba melancólico havia me rodeado de uma atmosfera desconhecida e eu como que navegava o ar.”

    Tinha ela 14 anos de idade e, na mesma hora, veio a aspiração para se tornar sambista. No mesmo violão, que aprendeu a tocar em aulas com Josué de Barros (o descobridor de Carmen Miranda), começou a fazer música. Participou de festivais, virou atração mirim de shows coletivos de samba e foi parar no rádio: é no Programa Casé, de imensa popularidade, que reencontra “o rapaz magro e pálido”. Mas agora – já estamos em 1934 – Marília Batista já é uma das atrações do programa líder de audiência da Rádio Philips, com direito a prefixo exclusivo anunciando sua entrada, como contam João Máximo e Carlos Didier em “Noel Rosa: uma biografia”:

    Fala o Programa Casé
    Veja se adivinha quem é
    Faço a pergunta por troça
    Pois todo mundo já conhece
    A menina da voz grossa

    A menina, já com 16 anos, faz amizade instantânea com Noel Rosa: logo estará frequentando a família do Poeta da Vila e criando laços não só com a noiva dele, Lindaura, como também com as namoradas. Passam a cantar em dueto no Programa Casé, como no dia em que ele chegou com um refrão que tinha ouvido na rua e João da Baiana identificou como sendo de autoria de João Mina, cuiqueiro do Estácio. Os versos da segunda parte Noel cria de improviso e “De babado” faz sucesso – primeiro na programação, depois no disco que a Odeon leva às lojas em abril de 1936, trazendo do outro lado mais um dueto deles, agora em “Cem mil réis”, de Noel com Vadico.

    Já em dezembro virão novos discos da dupla – e boas histórias que Marília contaria com gosto. Como as dos sambas “Provei” (de Noel com Vadico) e “Você vai se quiser”, que ela aprende no banco traseiro de um táxi, a caminho da gravadora, enquanto o poeta termina de compor. Já a lembrança das gravações de “Quantos beijos” (outra com Vadico) e “Quem ri melhor” é do timaço que gravou com eles: Pixinguinha comandando a orquestra e ilustres convidados mangueirenses, como o coro feminino comandado por Dona Neuma e, ainda, Cartola e sua turma – Preguiça, Nego, Ataliba e Crioulo.

    Quando a tuberculose levou Noel antes da hora (aos 26 anos, em maio de 1937), Marília já se apresentava como contratada da recém inaugurada Rádio Nacional, onde era a “Princesinha do Samba”. Criado pelo apresentador Paulo Roberto, o epíteto nobiliárquico – mania do povo de rádio – juntava sua juventude (recém chegada aos 19) ao gênero musical que cantava desde o início, também precoce. Marília ainda não tinha 14 anos quando saiu seu primeiro disco (em março de 1932), com duas composições próprias em parceria com o irmão, Henrique Batista: os sambas “Pedi implorei” e “Me larga”, este segundo com versos no mínimo inusitados para uma mocinha:

    Mas eu vou é para a farra...
    Porque eu sou é do brinquedo!
    Se quiserem impedir eu faço um estrago
    E grito sem medo:

    – Me larga, me larga...
    Que eu não sou burro de carga!

    O samba, de fato, seguirá como bandeira de Marília, mesmo depois de encarar seis anos de estudos no Instituto Nacional de Música, como volta e meia frisa em entrevistas à imprensa. Na revista Carioca (28-08-1937), por exemplo, revelou planos ambiciosos de “dar ao samba uma casaca cosmopolita”, pois este, “devidamente orquestrado, adquirirá uma popularidade mundial única”. Foi dedicado ao gênero musical popular o programa de rádio que ela e Henrique Batista produziram e apresentaram a partir de 1937, na Rádio Educadora: “Samba e Outras Coisas”, no qual recebiam convidados e divulgavam novos lançamentos.

    Seus ouvintes souberam em primeira mão, por exemplo, da reestreia fonográfica de Marília (após a morte de Noel) lançando um samba inédito do amigo, “Silêncio de um minuto”, em 1940. Do mesmo ano é outro disco de Marília como intérprete, fazendo dueto com Edmundo Silva em “Vai andar” (Roberto Martins e Mario Rossi) e “No samburá da baiana” (Moacir Bernardino e J. Portela), o segundo mimetizando o tabuleiro de Ary Barroso consagrado nas vozes de Carmen Miranda e Luís Barbosa.

    Também no programa Marília e Henrique Batista lançaram composições da parceria, como algumas que ela só gravaria nos anos 1950. Entre elas os sambas carnavalescos “Tamborim batendo” e “Lamento”, que ela lançou em 1951, com acompanhamento de Guio de Morais e Seus Parentes. Assim como outros dois que saíram em 1956, pela Musidisc: os dolentes “Vila dos meus amores” e “Nunca mais”, este último o preferido de Marília entre os sambas de sua autoria. “Ganhou todo o meu sentimento”, revelou à revista Carioca (05-12-1936).

    Nunca mais eu hei de amar como te amei
    Nunca mais hei de querer como te quis
    Muito embora nunca mais sejas feliz, bem sei
    Nunca mais hei de te amar como te amei

    “A voz de Marília, entre outras coisas, é doce e cheia de mágoa. Voz interessante, repleta de cadência, onde dormem os batuques do morro e a nostalgia da cidade”, definiu Teóphilo de Barros na seção “Figuras de cartaz” da revista Carioca (04-12-1937), antes de exaltá-la também como compositora que “põe muita alma nos seus sambas”, antes de um adendo importante: “Digamos de passagem, não se admite samba sem alma, sem essência, sem o espírito inexplicável que faz a gente ficar fascinado pela melodia ritmada.”

    A compositora Marília também se orgulhava de ter seus sambas gravados por colegas. Como Francisco Alves, que em 1943 deu voz ao romântico “Era eu” e ao libertário “A mulher tem razão”. Linda (sem parentesco com Marília) Batista, que lançou “Grande prêmio”, também de 1943, dedicado a Vila Isabel, também tema da nostálgica “Praça Sete”, que Elizeth Cardoso lançou em 1959. E ainda Aracy de Almeida, com sua voz chorosa potencializando a graça do samba-choro “Menina Fricote”, lançado em 1940.

    Eu não sei que doença
    Deu na Risoleta
    Que agora só gosta
    De ouvir opereta
    Está cheia de prosa
    Cheia de orgulho, cheia de chiquê
    (E faz fricote como o quê)
    Não canta mais samba
    Só quer imitar Lucienne Boyer

    Até que a “Princesinha do Samba” resolveu se casar e deu um tempo na vida artística. Despediu-se dela com dois bons sambas lançados num disco da Victor em agosto de 1944: de um lado, o romântico “Salão azul” (composição dela com Henrique) e, do outro, uma homenagem de Pereira Matos e Manoel Vieira aos pracinhas brasileiros a caminho da Segunda Guerra: “Liberdade”. Casada desde agosto de 1945 com o cirurgião Hugo Cotta dos Santos, passou a dedicar-se à criação de seus três filhos, Henrique, Hugo e Valéria.

    O violão e as composições, no entanto, nunca saíram de sua rotina, mas restritos ao ambiente caseiro e aos amigos. As voltas à carreira artística foram quase sempre esporádicas e pontuais, como quando abriu novamente o baú de inéditas de Noel Rosa para lançar em 1956 as primeiras gravações de “Remorso” e “Tipo zero” – ambas incluídas no disco de dez polegadas “Samba e outras coisas”, que saiu naquele ano pela gravadora Musidisc, trazendo no repertório sambas inéditos de sua própria autoria. Também musicou poemas deixados pelo amigo famoso, como o samba junino “Balão apagado”, que entregou à amiga Elizeth Cardoso (1961), e o telecoteco “João Teimoso”, que ela mesma gravou em 1962.

    Quando faleceu, de insuficiência respiratória, aos 72 anos (em 9 de julho de 1990), os obituários informaram que era carioca de Botafogo (nascida na Travessa Marciano, em 13 de abril de 1918), embora tenha sido criada em Vila Isabel – filha do médico Renato Batista e da pianista Edith de Barros (que lhe ensinou os primeiras noções musicais) e neta do poeta Luís Monteiro de Barros. Também trouxeram uma novidade: além de sambista, a “preferida de Noel” (como definiu o jornalista Mauro Ferreira n’O Globo de 10-07-1990) era também advogada: na década de 1980, Marília Batista cursou a faculdade de Direito na Universidade Cândido Mendes, em Ipanema, tendo recebido a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil em 4 de abril de 1990.

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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