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    Memórias de Jamelão, a voz da Mangueira, da dor-de-cotovelo e de outras franquezas

    Pedro Paulo Malta

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    “Quando se escrever as formas de lazer urbano, haverá certamente um capítulo dedicado às gafieiras, dancings e cabarés. E quando a história desses salões dos pobres for escrita, não poderá deixar de haver uma parte dedicada aos cantores de suas orquestras, desde o fim da Segunda Guerra Mundial chamados de crooners. Pois bem, quando finalmente se puder penetrar nesse mundo ainda não pesquisado e maravilhoso dos bailes pagos, com seu ambiente de música, dança, boemia, amores rasteiros e dor-de-cotovelo, um crooner fantástico terá a sua voz e o seu estilo de interpretação louvados com os mais retumbantes adjetivos: José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão.”

    E assim, em sua coluna no Jornal do Brasil, o pesquisador e crítico musical José Ramos Tinhorão propunha duas reparações históricas num mesmo parágrafo: aos salões de dança – especialmente os da zona norte e do Centro do Rio – e a sua principal cria. Afinal, foi nesse ambiente que se moldou a voz potente e metálica de Jamelão, como aprenderam os leitores daquela edição do JB (08-04-1977), no mesmo texto de Tinhorão. “Nesse tempo as gafieiras não possuíam microfones nem amplificadores e os cantores tinham de abrir a voz para dominar a estridência dos metais, já àquela época berrando em arranjos imitados de orquestras americanas.”

    O tempo a que se refere o pesquisador é a virada entre as décadas de 1930 e 40, quando o então adolescente José Bispo – à época atendendo por Saruê, apelido de infância – começou a sair com os amigos de pelada para riscar o chão dos salões do Méier. Na gafieira Fogão, a turma avisou ao diretor da orquestra que o companheiro era bom de samba: os músicos adoraram, o público aplaudiu. Algumas noites depois, já na gafieira Jardim do Meyer, o mestre de cerimônias Euclides arriscou um novo apelido para o novato (“Com vocês, Jamelão!”) e assim ele foi se acostumando a ser anunciado e aplaudido – também pelos pés-de-valsa de outros salões, como a Cigarra e a Tupy.

    Até que Onéssimo Gomes, que iniciava carreira de crooner e conhecia Jamelão desde que trabalharam juntos numa fábrica de artefatos de borracha, chamou o amigo para uma substituição no Dancing Eldorado, na Praça Tiradentes. “O maestro gostou e eu fui tomando mais gosto ainda pela coisa”, contou ao Pasquim (09-07-1987). “De repente o Onéssimo ficou doente, com problemas de garganta, e mandaram me procurar.” Pouco depois, já era titular no Dancing Brasil, com um retorno financeiro (20 mil réis por noite) que o permitiu abrir mão de seu emprego da vez, como operário da fábrica de tecidos Confiança, em Vila Isabel, onde recebia diárias de 5.600 réis.

    Por essa época, em 1942, já vinha se arriscando também nos concursos do rádio: na Tupi, cantou “Ai que saudades da Amélia” (Ataulfo Alves e Mário Lago) no programa de Ary Barroso e levou a nota máxima, virando atração fixa do programa “Escada de Jacó”, do Professor Zé Bacurau (nome artístico de Lourival Maia). Já em 1945, depois de ser um dos vencedores – com a cantora Zezé Gonzaga – do programa “Pescando Estrelas”, é contratado pela Rádio Clube, com um ordenado mensal de 800 mil réis. Além do dinheiro e da projeção, o ingresso no rádio valeu a Jamelão as primeiras visitas a gravadoras, inicialmente para participar de gravações como corista.

    Até que foi escalado pela Odeon para substituir Francisco Alves num concurso de músicas carnavalescas no Teatro João Caetano e saiu vencedor. Felisberto Martins, autor do samba campeão no certame (“Maior é Deus”), retribuiu encaminhando-o para gravar um disco como solista, naquele mesmo ano, de 1949. E assim veio o disco 12960 da Odeon, com o samba “Pensando nela” (Antenógenes Silva e Irani de Oliveira), sempre mencionado por Jamelão como sua primeira gravação – embora em 1948 já tivesse feito um 78 rotações na Star, com “Deus e a natureza”, samba de Antenor Borges, Raimundo Lessa e J.R. de Oliveira.

    Dos mesmos Antenor e Raimundo – em parceria com S. Queima – era a marcha “Já vi tudo”, que Jamelão gravou em seguida (janeiro de 1950) pela mesma Odeon, em dueto com o amigo-padrinho Onéssimo Gomes, em brancas nuvens. Um pouco mais de repercussão teve outra marchinha lançada no mesmo carnaval, só na voz de Jamelão: a zombeteira “Este é o maior” (Pereira Matos, E. Correa e O. Silva). Mas sucesso mesmo ele só conheceu em maio de 1952, quando deu voz ao samba “Mora no assunto”, verdadeiro inventário sincopado de gírias cariocas composto pelos mangueirenses Osvaldo Vitalino de Oliveira (o Padeirinho) e Joaquim dos Santos (vulgo Quincas do Cavaco).

    Mora no assunto e vê se te manca
    Me admira muito você dando bronca
    Ora deixa disso... é fogo na roupa!
    Sabe lá o que é isso? Então mudou?
    Eu lhe dei o serviço e você nem morou

    Jamelão gravará outras composições de Padeirinho, como o sincopado “Deixa de moda” (outro sobre gírias) e o samba-enredo da Estação Primeira em 1956, “O grande presidente”. Desde o carnaval de 1951 era ao som de sua voz que desfilava a Verde e Rosa – escola da qual se aproximou na infância, levado por Lauro dos Santos, o Gradim, que assim como ele trabalhava como pequeno jornaleiro. Jamelão, que até ali frequentava a Deixa Malhar (escola de samba de sua mãe, D. Benvinda, lavadeira de profissão), se tornaria um dos ícones da Mangueira, pela qual desfilou até 2006, aos 92 anos, como intérprete – jamais puxador (“Puxador é quem puxa carro ou fumo!”).

    “Agora tem gente pedindo pelo amor de Deus pra desfilar, mas no começo fui muito censurado, ouvi muita chacota de alguns colegas cantores”, contou ao JB (13-02-1977). “Agora todo mundo dá palpite: tem que puxar assim, assado. Em samba e futebol é a mesma coisa: todo mundo se mete, mas no fundo não entende nada. O importante é o samba ser bom: aí, do garoto ao velho, todo mundo canta.” Haja vista os outros sambas do repertório mangueirense que lançou: como o dolente “Grande Deus” (Cartola, 1958) e “Exaltação à Mangueira” (Enéas Brites e Aloísio Augusto da Costa, 1955), até hoje hino informal da veterana escola.

    Também de Mangueira era Policarpo Costa, vulgo Mestre Gato, que já há algum tempo tentava emplacar seu samba “Eu agora sou feliz”, mas só depois da gravação de Jamelão (que co-assina a composição) tornou-se um dos grandes sucessos do carnaval de 1963. Outro arrasa-quarteirão da folia (no caso, a de 1960), “Fechei a porta” teria sido feito pelo próprio Jamelão, que no entanto não assina a composição: está no nome de sua companheira Delice Ferreira dos Santos (vulgo Dona Didi) “com um amigo nosso, Sebastião Mota, usineiro em Campos que estava interessado em fazer música”, como o cantor revelou a Tárik de Souza (JB, 24-07-1983).

    Eu não quero mais amar
    Pra não sofrer ingratidão
    Depois do que eu passei
    Fechei a porta do meu coração

    Outros grandes sucessos lançados em sua voz revelam escapulidas que deu até o terreiro rival da Portela. Foi de lá que veio o primeiro hit carnavalesco de Jamelão, “Leviana” (Zé Kéti e Amado Regis, 1954), assim como outros dois em que seu nome figura como parceiro. Um deles é “Meu barracão de zinco”, de Jair Costa (nome civil de Jair do Cavaquinho), de 1961. E outro é “Esta melodia”, composição de Jorge de Oliveira (o Bubu da Portela) lançada por Jamelão em novembro de 1959, no outro lado de um 78 rotações que tinha como lado A outro sucesso: “O samba é bom assim”, de Norival Reis (outro portelense!) com Hélio Nascimento.

    Além dos sambas de carnaval, o repertório tem Jamelão em crônicas espirituosas como “Seu deputado” (Alcebíades Nogueira e Átila Nunes, 1953) e “Jajá da Gamboa” (Batatinha e Jamelão, 1960). E números românticos como o samba “Esquina da saudade” (Radamés Gnattali, Chiquinho e Alberto Ribeiro, 1959) e o choro “Mirando-te” (Severino Araújo e Aldo Cabral, 1956). Este último marca o início fonográfico de uma parceria importante na trajetória de Jamelão: as gravações com a Orquestra Tabajara do maestro Severino Araújo, com a qual o cantor já se apresentava desde o início da década de 1950, na Rádio Tupi.

    Ao lado da principal big band brasileira, Jamelão foi atração não só em outras cidades brasileiras, como também “numa das festas inesquecíveis do milênio, o famoso baile do Castelo de Coberville, nos arredores de Paris, promovido em 1952 pelo estilista francês Jacques Fath para apresentação do algodão brasileiro à alta-costura europeia”, como contou o jornalista Moacyr Andrade no JB (25-07-2000). “Entre os convidados, declararam-se conquistados pela voz do cantor o cineasta Orson Welles e o ator Jean-Louis Barrault.”

    Entre as 13 gravações de Jamelão com a Tabajara no site Discografia Brasileira destacam-se bons sambas, como “Confiança” (Luiz de França e Alcebíades Nogueira) e “Dengosa” (Raul Marques e Estanislau Silva), e até um dobrado, “Vida de circo” (Angelo Reale e Dois Coringas), todos de 1956. Do mesmo ano é a primeira gravação de “Folha morta”, o clássico samba-canção de Ary Barroso, cujo sucesso acabou dobrando Braguinha, então diretor da gravadora Continental, que não queria Jamelão cantando músicas de dor-de-cotovelo.

    Sei que falam de mim
    Sei que zombam de mim
    Oh, Deus... Como eu sou infeliz
    Vivo à margem da vida
    Sem amparo ou guarida
    Oh, Deus... Como eu sou infeliz

    Animado com o resultado da gravação, Jamelão correu para a Rádio Tupi para mostrá-la ao severo Ary Barroso, sem perceber que o nome do samba estava errado no selo do 78 rotações. “Quando eu cheguei lá, logo que ele pegou o disco percebeu que o título da música estava no plural: o original era no singular. Criou caso, fez um escarcéu no programa”, relembrou o cantor ao jornal O Pasquim (09-07-1987). “Tocou o disco, mas espinafrou. No dia seguinte – a audiência do programa era grande – tudo que era gente corria às lojas para comprar.”

    Quem se animou com o primeiro samba-canção a fazer sucesso na voz de Jamelão foi o principal compositor do gênero, o gaúcho Lupicínio Rodrigues, que não demorou a abastecer o cantor com novidades, como informou O Globo em sua edição de 12-10-1972: “Em 1957, numa das vindas de Lupicínio ao Rio, os dois se encontraram e o compositor mostrou um samba que estava guardando para Nora Ney, que se chamava ‘Ela disse-me assim’. Jamelão ouviu a melodia, gostou da letra, pediu para gravar.”

    Lupicínio ficou amigo de Jamelão, que deu voz a outras dores-de-cotovelo do compositor (como “Torre de Babel”, 1964”) e colocou o gênero samba-canção de vez em seu repertório. “O brasileiro é muito nostálgico, cheio de problemas. O divórcio aqui é uma coisa bem recente e não é mole o número de casos de famílias desgarradas e romances desfeitos que há por aí. E uma dor-de-cotovelo geral”, filosofou ao jornal O Globo (10-01-1981). “As músicas que vão em cima disto agradam plenamente.”

    Assim, nunca mais tirou os sambas-canção do repertório que o acompanhou pela longevidade – mesmo depois dos 90, continuava na ativa, aplaudido com entusiasmo por seu público. Só não tinha a menor paciência para os tributos que volta e meia prepararam para ele – aos 70, 80, 90... “Estou de saco cheio de homenagens. Isso não leva a nada”, disse ao JB (10-05-2003), com sua franqueza característica que a imprensa se acostumou a chamar de rabugice. “Vivo do meu trabalho da maneira que posso. Preciso do dinheiro para pagar minhas contas. Se me pagarem eu vou.”

    Jamelão e Cartola. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    Aposentado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, onde foi investigador de 1960 até aos anos 1980 (“Tinha o meu serviço burocrático, fazia rondas, investigações”, disse ao Pasquim em 09-07-1987), era preciso complementar o orçamento. “Ganho R$ 300, R$ 400 de aposentadoria. Se eu não correr atrás…”, ralhou às repórteres Anabela Paiva e Lena Frias, do JB (01-03-1998). “O empresário fala: ‘Ô Jamelão, tem um trabalho aqui.’ Eu falo: ‘Vamo s’imbora!’”

    Na festa dos 90 anos – um baile com a Orquestra Tabajara no Scala, extinta casa noturna localizada no Leblon – não só estava feliz, como fez as honras: “De paletó e gravata, ficou de pé na porta recebendo os convivas, dançou ao lado de amigos como Zeca Pagodinho e Alcione” e “cortou o bolo ao lado da mulher, Dona Didi, e dos netos, Manoela e Tomás”, como descreveu o jornalista Bernardo Araujo no Globo (14-05-2003). Antes de cantar canções e sambas-enredo, disse no microfone: “Já dei um tapa no beiço. Estou como o diabo gosta.”

    E qual seu segredo para passar dos 90 cantando, Jamelão? “Esse negócio de segredo é papo furado. Quem pode, canta. Quem não pode, fica calado.” (O Dia, 06-03-1995) “Pesar, a idade pesa. O físico vai sentindo. Mas eu procuro me cuidar, procuro me alimentar. Fico na manha, descanso. Não tenho cuidados especiais. Meu negócio é arroz com feijão. Não faço esses negócios de mastigar gengibre, tomar mel.” (JB, 01-03-1998)

    Quando faleceu, na Casa de Saúde Pinheiro Machado, em Laranjeiras, vitimado por um choque séptico aos 95 anos (14-06-2008), os obituários lembraram não só a trajetória artística. Destacaram também as batalhas que encarou desde os tempos de Saruê (trocando a escola pelo corre-corre de vendedor de jornais) e a origem: era carioca da Rua Fonseca Teles, em São Cristóvão, onde nasceu há 110 anos, em 13 de maio de 1913.

    Na Folha de S. Paulo (20-06-2008), Carlos Heitor Cony destacou que sua voz era como “um lamento saído de uma alma sofrida, às vezes gozadora, mas sempre legítima, autêntica, inconfundível”. Já em seu blog na Veja (14-06-2008), o colunista Reinaldo Azevedo chamou atenção para o fato de Jamelão ser um “produto da lógica da superação” e arrematou com graça: “Deus não sabe o que o espera. Vai tomar muita esfrega de Jamelão, com seu humor prejudicado, eternidade afora. O jeito vai ser pedir pra ele cantar.”

    Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

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