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    A ‘deusa’ e o ‘beijo molhado’: há 85 anos, o sucesso de dois amores tão diferentes num 78 rpm de Sílvio Caldas

    Pedro Paulo Malta

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    Em 1939 Sílvio Caldas completava dez anos de seu primeiro contrato, ganhando 20 mil réis por noite como atração da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Nesta década, fez sua estreia fonográfica na gravadora Victor (1930), tornou-se o “Caboclinho Querido” de sua legião de fãs e garantiu um lugar entre as principais vozes masculinas do rádio brasileiro (os “quatro grandes”, como eram chamados), lado a lado com Francisco Alves, Carlos Galhardo e Orlando Silva. E já colecionava sucessos como “Faceira” (Ary Barroso, 1931), “Chão de estrelas” (de Sílvio com Orestes Barbosa, 1934), “Minha palhoça” (J. Cascata) e “Pastorinhas” (Noel Rosa e João de Barro, 1937), entre muitos outros.

    Aos 31 anos, estava “na melhor fase de sua carreira”, como definem os pesquisadores e escritores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no fundamental livro “A canção no tempo – vol. 1” (Editora 34, 1997). Uma fase de muito trabalho, fosse participando de espetáculos diversos (como a revista “Vai ter”, no Teatro Carlos Gomes), animando concorridos bailes de carnaval (no Fluminense, no Bola Preta e outros salões) ou apresentando-se no programa de Cesar Ladeira na Rádio Mayrink Veiga, ao lado de Aracy de Almeida, Carmen Miranda e grande elenco.

    Sem contar as viagens, tanto pra cantar em outras emissoras – como a Rádio Atlântica de Santos e a Difusora de Porto Alegre – quanto para visitar fãs: numa campanha promocional, a Mayrink prometia a presença do cantor “e seus acompanhadores para uma audição especial, em qualquer parte do Brasil”, na casa do ouvinte que acertasse o número de cartas recebidas por ele na emissora em abril de 1939, conforme anunciado na Gazeta de Notícias (18-03-1939). Pois no meio de tamanho corre-corre espanta que Sílvio ainda conseguisse tempo para gravar discos.

    Entre os seis que lançou em 1939, todos pela Victor, estava o 78 rotações de nº 34.485: o disco histórico lançado em setembro daquele ano trazendo, na voz de Sílvio Caldas, a valsa “Deusa da minha rua” e o samba “Da cor do pecado”. Primeiras gravações de dois grandes sucessos românticos – cada um à sua maneira – da música popular brasileira.

    No lado A estava o amor impossível de “Deusa da minha rua”, composição de Nilton Teixeira e Jorge Faraj que logo se tornaria “um clássico estupendo”, como definiu o cronista Paulo Mendes Campos, que a incluiu entre os versos mais bonitos da música brasileira em duas listas que fez para a revista Manchete: uma em 08-07-1961 e a outra em 02-11-1974. A “Deusa”, aliás, volta e meia também era citada na imprensa entre as preferidas de personalidades da música – como o cantor Jorge Veiga (Revista do Rádio, 21-11-1953) e o compositor Ataulfo Alves (Radiolândia, 27-10-1956).

    A deusa da minha rua
    Tem os olhos onde a lua
    Costuma se embriagar
    Nos seus olhos eu suponho
    Que o sol num doirado sonho
    Vai claridade buscar

    Sua letra, tão exaltada pelas belas imagens poéticas, é obra de Jorge Faraj, filho de imigrantes libaneses que chegou a trabalhar como balconista (do armarinho do pai) e mecânico, mas se firmou profissionalmente como jornalista – tendo fundado o semanário “O Botafogo”, dedicado a seu bairro de origem. A intimidade com as palavras e com a boemia o aproximou da composição. “Ouvia a música e começava a produzir os versos onde quer que estivesse – e geralmente estava num bar”, disse o compositor Eratóstenes Frazão (JB, 18-06-1963). “Tornou-se principalmente letrista, uma vez que era terrivelmente desafinado.”

    Militante incansável do direito autoral, em 1955 participou da fundação da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (a Sbacem), juntamente com seu parceiro em “A deusa da minha rua”, Nilton Teixeira. Este era carioca do Irajá, irmão do também compositor Valzinho (Norival Teixeira) e violonista. Apaixonado por serestas, lançou-se também como cantor na década de 1950, sem o mesmo destaque que teve como melodista. “Hoje, com tantos edifícios altos, é impossível fazer serenata”, queixou-se numa entrevista em 1976, segundo seu obituário no JB (09-03-1990).

    Na mesma matéria, Nilton comentou também que há quase 30 anos não via a “deusa”, sem dar maiores detalhes sobre a composição. Esta teria surgido ainda no tempo em que estudava no Colégio Pedro II, a partir de “um amor meio proibido – seu primeiro amor, por sinal”, como escreveu o repórter Djalma Sobrinho na revista A Cigarra (julho de 1953). A revelação era como a continuação de um relato do próprio compositor àquele periódico, alguns anos antes, quando sentiu “vontade de confessar que ela vive e nos amamos”, confidenciou. “Não é um sonho, uma imaginação, aquela história.”

    Na rua uma poça d’água
    Espelho da minha mágoa
    Transporta o céu para o chão
    Tal qual o chão da minha vida
    A minh’alma comovida
    O meu pobre coração

    O romance, novelesco e misterioso, foi contado por Nilton num texto em primeira pessoa na edição de setembro de 1945 d’A Cigarra: “A deusa de minha rua não me pertence. Nunca me pertencerá”, entregou o melodista da famosa valsa. “É uma mulher honrada, que compreende e mantém a santidade de seu lar. (...) Jamais, entretanto, nos encontramos. Há seis anos, todas as terças-feiras, falamos pelo telefone. Contento-me com isto e ela também. Assim irei envelhecendo.”

    Ainda segundo Djalma Sobrinho, partiu de Nilton Teixeira a iniciativa de recorrer “aos bons ofícios do poeta Jorge Faraj, autor de algumas letras de grande repercussão, entre outras a do ‘Telefone do amor’, no sentido de com ele colaborar em uns versos”. Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no já citado “A canção no tempo – vol. 1”, a melodia ainda foi modificada pelo violonista (a pedido de Faraj) e só então a música ficou pronta, lá pelos idos de 1936.

    Espelhos da minha mágoa
    Meus olhos são poças d’água
    Sonhando com seu olhar
    Ela é tão rica e eu, tão pobre
    Eu sou plebeu, ela nobre
    Não vale a pena sonhar

    Ainda se passaram três anos até que se consumasse a primeira gravação, pois Sílvio Caldas, que já vinha trabalhando a valsa no rádio e em shows, parecia desinteressado em levá-la ao disco, como descrevem Jairo e Zuza, reproduzindo aspas de Nilton ao pesquisador Lauro Gomes de Araújo: “Até que um dia, perdendo a paciência, tive que tirar o Sílvio de uma roda no (Café) Nice e praticamente arrastá-lo ao estúdio.” Na gravação, finalmente realizada em 10-07-1939, o acordeom que se ouve é de Heriberto Muraro, pianista argentino radicado no Brasil desde 1932 e muito atuante nas emissoras de rádio da época.

    Álbum de compositores: da esquerda para a direita, Jorge Faraj (reprodução da internet / Acervo Marcelo Bonavides), Nilton Teixeira e Bororó (ambos da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS)

    Já o amor que o cantor gravou do outro lado do disco não era platônico, mas consumado. Aliás, consumado e descrito na letra de maneira bem “à frente de sua época na forma como tratou a paixão carnal”, segundo o jornalista Nelson Motta no livro “101 canções que tocaram o Brasil” (Estação Brasil, 2016), no verbete dedicado ao samba “Da cor do pecado”, outro grande sucesso lançado naquele mesmo disco, gravado em 06-07-1939, por Sílvio Caldas com acompanhamento de regional.

    Era a estreia fonográfica de seu autor, Bororó, compositor de obra curta – apenas 20 músicas lançadas em discos de 78 rpm – e personagem de muitas histórias da boemia carioca, em noites que emendava com a rotina de funcionário da Justiça Federal. Nascido Alberto de Castro Simões da Silva, era carioca de Botafogo, descendente da Marquesa de Santos e aluno gazeteiro do Colégio Santo Inácio. Numa dessas escapulidas, conheceu a nata do choro num baile no Catumbi, onde sentiu “pela primeira vez toda a grandeza da nossa música popular”, como contou a Lúcio Rangel numa matéria para a revista A Cigarra (janeiro, 1957).

    Na mesma entrevista, contou que a história da composição de “Da cor do pecado” começa numa madrugada de 1936, no bairro da Glória. “Nasceu na esquina da Rua Benjamin Constant, no botequim do Máximo Broa. Estavam presentes o Custódio Mesquita e o Mozart Araújo”, relembra. “Havia certa morena que era tudo que eu disse nos versos. Chamava-se Felicidade, foi a minha inspiração.”

    Este corpo moreno
    Cheiroso e gostoso que você tem
    É um corpo delgado
    Da cor do pecado que faz tão bem
    Este beijo molhado
    Escandalizado que você me deu
    Tem sabor diferente
    Que a boca da gente jamais se esqueceu

    Levou mais de duas décadas para trazer mais detalhes à história, numa entrevista à jornalista Mara Caballero publicada no JB (22-10-1983). “Eu cantava bem, fazia versos bonitos e ficou uma dose de simpatia recíproca. Mudei a vida dela, pus nos eixos”, contou, depois de defini-la como “uma mulher de vida pregressa pouco recomendável”, na expressão moralista da época, incompatível com a duração da relação entre eles: “Ficamos uns cinco ou seis anos juntos.”

    A própria expressão “da cor do pecado”, impregnada da cultura racista que hiperssexualiza corpos negros, era – e ainda é, infelizmente – usada com frequência como um elogio à beleza, aliás como fez o próprio Bororó, no verso que deu origem à composição. “A primeira frase que me veio à cabeça foi ‘este corpo delgado da cor do pecado’”, disse o compositor, em aspas reproduzidas pelo jornalista Marceu Vieira em seu obituário na Tribuna da Imprensa (09-06-1986).

    E assim Bororó desenvolveu este samba “brejeiro, malicioso” que “possui uma das letras mais sensuais de nossa música popular”, como definem Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello em “A canção no tempo – vol. 1”. “De melodia e harmonia elaboradas, ‘Da cor do pecado’ tem seu aspecto mais interessante nas modulações da primeira para a segunda parte e na volta desta para a primeira.” Ainda sobre a música, os escritores destacam a linha melódica da frase final: “É um primor de preparação para o acorde de dominante que conduz ao tom da primeira parte.”

    Quando você me responde umas coisas com graça
    A vergonha se esconde
    Porque se revela a maldade da raça
    Este cheiro de mato tem cheiro de fato
    Saudade e tristeza
    Esta simples beleza
    Teu corpo moreno, morena, enlouquece
    Eu não sei bem por que
    Só sinto na vida o que vem de você

    A primeira audição foi num almoço oferecido pelo Clube dos 40, sociedade carnavalesca à qual pertencia Bororó, a representantes da imprensa. Como se lê no jornal A Batalha (26-01-1939), a festividade teve uma série de pronunciamentos sobre o carnaval e, ao fim, um recital. “Para maior brilho da reunião, Sílvio Caldas cantou várias músicas da atualidade, quando foi conhecida uma linda canção de Bororó intitulada ‘Da cor do pecado’”, descreve o texto. “A mostra dos 40 foi abafante.”

    A gravação original, feita em julho, também abafou na voz de Sílvio Caldas. A ponto de ser apontada – junto com “Deusa da minha rua” – entre os destaques fonográficos de 1939. E de ser considerada, quase duas décadas depois, uma das “obras-primas da música popular brasileira”, segundo Djalma Sobrinho na lista que fez para a seção Rádio, da revista A Cigarra (setembro-1956).

    E na enquete “Os dez melhores sambas brasileiros”, realizada pelo mesmo impresso em dezembro de 1949, ficou em 8º lugar, com 57 votos, a 37 da campeã “Carinhoso” (Pixinguinha e João de Barro), escolhida por 94 leitores, e com dez a mais que “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso), classificada em 10º lugar, com 47.

    Ao longo dos anos, “Da cor do pecado” recebeu inúmeras regravações, em geral com andamento mais lento que o da original de Sílvio, feita como samba-choro. João Gilberto foi um que regravou-a duas vezes: a primeira ao vivo, feita em sua apresentação na série Heineken Concerts (1994), e a segunda em seu último disco de estúdio, “João” (1999). Outro que fez sua leitura toda especial foi Ney Matogrosso (1977), dando nova vida ao clássico de Bororó.

    Na música instrumental ele também teve interpretações marcantes, tanto no violão de Luiz Bonfá (1957), quanto no bandolim de Jacob (1959) e no piano lindamente tocado por Sivuca (1997), um dos mestres do acordeom. Já entre as vozes femininas, destacam-se os registros de Elis Regina (1968), Nara Leão (acompanhada por Roberto Menescal, em 1985) e Leny Andrade (com Cesar Camargo Mariano, em 2006).

    E teve ainda a regravação da cantora Luciana Mello, na versão com levada mais chegada ao pop que virou tema de abertura de “Da cor do pecado”, novela de João Emanuel Carneiro que a TV Globo levou ao ar entre janeiro e agosto de 2004.

    “Deusa da minha rua” virou nome de novela, mas sem um tema de abertura gravado em disco, como nas produções da TV Globo. É que a novela inspirada pela valsa, escrita por Luiz Quirino e Péricles do Amaral, fez parte da programação da Rádio Nacional em 1950, com “alto nível de popularidade”, como souberam os leitores da Revista do Rádio (20-06-1950). Talvez embalado por este sucesso, o compositor Nilton Teixeira foi o justamente o primeiro a regravá-la, em 1955.

    Mais bem sucedidas em termos de repercussão foram as regravações de Cauby Peixoto, em seu primeiro LP de carreira (1956), Nelson Gonçalves (1962), que regravou-a mais uma vez em 1991, acompanhado pelo sete cordas de Raphael Rabello e, sobretudo, Roberto Carlos (1974). Já os seresteiros se reconhecem nos vibratos e portamentos de registros como os de Carlos José (1966), Francisco Petrônio (acompanhado de Dilermando Reis, em 1972) e Gilberto Alves (1981), entre outros vozeirões.

    Mais contidas e singelas são as interpretações que “Deusa da minha rua” recebeu no século 21, em cantos delicados como os de Geraldo Maia (acompanhado pelo violonista Yamandú Costa, em 2003), Zélia Duncan  (com Marco Pereira, em 2004) e o alentejano António Zambujo (2010), emprestando a doçura de seu canto e o sotaque lusitano ao português muito bem tratado por Jorge Faraj.

    Foto principal: Sílvio Caldas / Reprodução da internet

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