Não se engane com o sorriso que você vê nesta foto: sua dona, a historiadora carioca Rosa Maria Araujo, leva o carnaval muito a sério. Não só porque sai há 40 anos em seu amado Império Serrano. Ou porque tem mesa cativa nas frisas do Sambódromo para os quatro dias de desfile – acesso e Grupo Especial. Nem só pelas incontáveis memórias que guarda do Simpatia é Quase Amor, da Banda de Ipanema e do Cacique de Ramos, entre outros blocos de rua do Rio de Janeiro.
O carnaval também tem sido tema recorrente de diversos trabalhos de Rosa. Ele mereceu um capítulo inteiro no livro “Vocação do prazer: a família e a cidade no Rio de Janeiro republicano”, sua tese de doutorado pela Universidade de Johns Hopkins (EUA), publicada em 1993 pela editora Rocco. A folia também já foi tema de mesas redondas coordenadas por ela no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (presidido por Rosa de 2007 a 2019) e é assunto recorrente no podcast “Rio, vocação para a alegria”, disponível desde o ano passado nos principais tocadores de podcasts.
Também criou musicais inspirados na música de carnaval, com destaque para “Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha”, feito por ela em parceria com o jornalista e escritor Sérgio Cabral, com quem pesquisou a fundo o repertório carnavalesco, num trabalho que incluiu consultas a antigas revistas de modinhas e audições de mais de mil músicas. Com temporadas sucessivas entre 2007 e 2016, o espetáculo percorreu o Brasil em duas turnês e foi a Lisboa, com duas sessões lotadas no tradicional Teatro D. Maria II.
Pedimos a Rosa Maria Araujo que escolhesse suas dez marchinhas preferidas e o resultado foi uma lista afetiva, que mistura lembranças do musical, olhares sobre o carnaval carioca e memórias da Tijuca - bairro onde nasceu (1948) e experimentou os primeiros bailes, nas matinês do América F. C., seu clube de coração.
Maria Candelária (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti)
O que me encanta nessa marchinha é o tom de brincadeira, a crítica bem-humorada à funcionária pública que, em vez de ir pro trabalho, passa os dias indo ao dentista, à modista, ao cafezinho... Imagens ótimas, saborosas. E mesmo com toda essa inadimplência a Maria ainda acaba caindo na “letra O”, ou seja, o nível mais alto do funcionalismo público na época.
Sassaricando (Luís Antonio, Jota Júnior e Oldemar Magalhães)
Quando fizemos o musical “Sassaricando”, eu e meu parceiro fomos atrás do significado desse verbo e descobrimos que é se divertir a rodo, brincar ao máximo. E eu sou uma pessoa que cultua a diversão, o prazer – quase uma epicurista. Ou seja, essa marchinha é um hino à diversão, fundamental para qualquer um. E convenhamos: não há retrato mais fiel do sassarico naquela época que o velho paquerando na porta da Confeitaria Colombo. Um retrato perfeito do que se fazia no Centro da cidade.
Aurora (Mario Lago e Roberto Roberti)
É outro retrato de uma época, no caso o início dos anos 40. O sujeito oferecendo à Aurora um apartamento com porteiro, elevador e – o que me comove – ar-refrigerado! Porque ar-refrigerado era o luxo dos luxos. Só tinha em empresa e olhe lá. Claro que tem machismo nessa letra, mas tem também outro sentido: Aurora vai ganhar isso tudo só se for bem comportada, ou seja, não costurar pra fora.
Cantores do rádio (João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo)
Essa marchinha é uma obra-prima, mas a história dela é um capítulo à parte: os compositores saindo do Cassino da Urca depois de torrar tudo na jogatina, sem dinheiro nem pra condução. Entram no ônibus e têm que passar uma cantada no trocador: dizem que são cantores do rádio. E começaram a fazer, de brincadeira, essa melodia lindíssima, essa letra que é também uma apologia da arte, especialmente quando diz “levamos a vida a cantar”. Quer dizer: a formiga teria dinheiro pra pagar o ônibus, mas a cigarra...
A lua é dos namorados (Klécius Caldas, Armando Cavalcanti e Braguinha)
Uma marcha que não é de época, mas eterna, assim como a lua e o fascínio por ela. A lua como símbolo de romance, presente em todos os gêneros musicais. E essa é uma marcha romântica, linda, ótima pra quem gosta de romantismo no carnaval. Não tinha como não entrar no repertório do nosso musical, mesmo sem qualquer relação direta com o Rio – embora o Rio tenha lugares maravilhosas para se contemplar a lua, como as praias, a Lagoa Rodrigo de Freitas, os mirantes...
Máscara negra (Zé Kéti e Pereira Matos)
Assim como “A lua é dos namorados”, essa marcha também tem esse aspecto sublime, mas retratando o clima de um baile, com aquela história do reencontro, um ano depois. Uma história de carnaval dentro do carnaval. E é impressionante como você vê o baile: o salão cheio, as fantasias de palhaço, o arlequim, o pierrô e a colombina... Uma marcha que é toda bonita, romântica, filosófica. Sem contar que venceu o 1º concurso de músicas de carnaval do MIS, em 1967, e eu tenho paixão pelo Zé Kéti.
Obs: Música lançada em 33 rpm.
Primavera no Rio (João de Barro)
Uma exaltação ao Rio de Janeiro, um endeusamento dessa cidade que a gente ama. Marcou muito minha infância por causa de um filme, “Sinfonia carioca” (1955), no qual ela era cantada numa cena inesquecível para mim, que de vez em quando eu relembro. Me lembro de uma sessão do “Sassaricando” que caiu no aniversário da cidade e foi uma choradeira geral na plateia durante “Primavera no Rio”.
Vagalume (Victor Simon e Fernando Martins)
Brincar com os problemas da cidade faz parte do carnaval. Está aí a marchinha do nosso Luís Filipe de Lima, “Cedae ou desce”, sobre essa água suja que está na casa dos cariocas. Está aí o bloco Simpatia é Quase Amor, que neste ano vai sair com um samba que diz “Não põe hora no meu bloco”, respondendo à Prefeitura, que queria que eles desfilassem – imagina! – às 7 da manhã. E assim foi com “Vagalume”, sobre esta cidade que seduz, sim, mas que padece com a falta de água e luz.
Saca-rolha (José Gonçalves, Zilda Gonçalves e Waldir Machado)
Eu poderia ter escolhido “Cachaça” (“Você pensa que cachaça é água...”), “Turma do funil” ou “Tem nego bebo aí”, mas nenhuma retrata a ebulição do carnaval como “Saca-rolha”, na qual o sujeito diz que bebe até se acabar, o que é próprio do carnaval. Marchinhas politicamente incorretas, sim, mas deliciosas.
Até quarta-feira (Humberto Silva e Paulo Sette)
Assim como a “Máscara negra”, essa é uma marcha com uma parte lenta, mais romântica, e outra acelerada, pra cima. Só que essa fala em brincar o carnaval até a quarta-feira de cinzas e aí me lembro do Tio Milton, um vizinho nosso da Tijuca, quando eu era criança. Pai de família, homem sério, mas não resistia ao carnaval. Certa vez, telefonou para a mulher na sexta de carnaval e disse que não tinha conseguido sair do trabalho: “O faxineiro não viu que eu estava aqui e me trancou. Só vou poder sair na quarta-feira.” A mulher ficou aflita (“Meu Deus, você vai ficar sem comida!”) e ele respondeu que ela não se preocupasse, que ele daria um jeito. E só voltou na quarta-feira.
Obs: Música lançada em 33 rpm.