Se existe um cantor brasileiro que – assim como Frank Sinatra – é digno do apelido “A Voz”, esse cantor é Francisco Alves. Não pela potência vocal (Vicente Celestino tinha “mais voz”), nem pela popularidade (o “cantor das multidões” era Orlando Silva), pela “divisão” no jeito de cantar (nessa matéria, o mestre era Cyro Monteiro) ou pela capacidade de propor uma nova forma de interpretar sambas (nessa matéria o rei é João Gilberto). Nenhum deles, no entanto, fez tanto sucesso por tanto tempo – no caso de Francisco Alves, foram 34 anos de carreira (1918 a 52), sendo os últimos 25 de sucesso absoluto. Neles, participou de espetáculos teatrais e filmes, comandou programas de rádio e deixou uma discografia com números impressionantes: foram ao todo 525 discos lançados, com 983 gravações nos mais variados ritmos: sambas, marchinhas de carnaval, valsas românticas, foxes, canções e tangos, entre outros gêneros musicais.
Uma trajetória fonográfica iniciada em 1920, antes do microfone (1927), ainda na chamada fase mecânica, quando os cantores tinham que berrar suas melodias dentro de um cone para que estas fossem sulcadas numa matriz de cera. Pois foi assim a primeira vez de Francisco Alves num estúdio – no caso, as dependências da Disco Popular, pequena gravadora localizada nos fundos de uma casa no Engenho Novo (Rua Barão do Bom Retiro, 475), zona norte do Rio. Na casa da frente, moravam seu proprietário, o português João Baptista Gonzaga, e sua companheira, a grande maestrina Chiquinha Gonzaga – que, dada a diferença de idade (ela 36 anos mais velha do que ele), o apresentava à sociedade como seu filho.
Outro personagem importante dessa história é o autor das duas faixas desse disco: o pianista e compositor José Barbosa da Silva, o Sinhô, que nessa época já emplacava os sucessos iniciais da carreira que, dali a alguns anos, o levaria a ser conhecido como “o Rei do Samba”. Foi dele a ideia de ter suas novas composições lançadas pelo novato Francisco Alves, que desde 1918 tentava se firmar como cantor no circo e no teatro de revista. Tinha 21 anos quando fez a primeira visita à Disco Popular.
“O coro era formado por duas meninas, sobrinhas de Chico, e pelo cômico pernambucano Juvenal Fontes, chamado Jeca Tatu, especializado em papel de caipira. Ninguém ganhou sequer para a condução”, conta o pesquisador Abel Cardoso Junior, no livro “Francisco Alves: as mil canções do Rei da Voz”, antes de dar informações sobre o conjunto que fez o acompanhamento musical. “O Grupo dos Africanos, de Vila Isabel, constituído somente de negros, tinha entre seus componentes o trombonista Liquide.”
Não era possível imaginar que dessa produção amadora resultariam as primeiras gravações de dois grandes sucessos da época: a marcha “O pé de anjo” e o samba “Fala meu louro”. Segundo Abel Cardoso Junior, a popularidade das composições de Sinhô se deu “não exatamente por causa do disco de Francisco Alves, mas pelas edições de piano e orquestra e as revistas musicais”, estas fundamentais para a divulgação de músicas no tempo em que ainda não havia rádio. A revista “O pé de anjo” estreou no dia 28 de fevereiro de 1920, no Teatro São José, que a partir de 27 de julho daquele mesmo ano abriu as portas para o espetáculo “Papagaio louro”, inspirado em “Fala meu louro”.
Além da estreia de Chico Alves, “O pé de anjo” entrou para a história por outra primazia: foi a primeira música identificada no selo de um disco como “marcha de carnaval". Já a história por trás da “composição” é menos abonadora: a melodia é cópia idêntica da valsa francesa “C'est pas dificile”, composição de J. Dorin que por aqui já era conhecida como “Jenny”, nome da versão brasileira. “Parece-nos que ‘O pé de anjo’ foi o maior (e talvez único) avanço de Sinhô em melodia alheia. Louve-se no entanto a inteligência com que se houve na elaboração dos versos que logo todo o povo cantou, embora não se lhe negue o pecado”, escreveu Edigar de Alencar no livro “Nosso Sinhô do samba”: “Aqui o fabuloso compositor tem culpa alta no cartório.”
Segundo o biógrafo, Sinhô trabalhava como pianista demonstrador na Casa Beethoven, onde certo dia uma freguesa chegou ao balcão pedindo a partitura da valsa. “O empregado atendeu a moça e, a seu pedido, levou a parte da música ao pianista da casa para que a executasse e a freguesa melhor a identificasse”, descreve Edigar de Alencar. “Quando esta saiu, Sinhô ocupou o piano e começou a fazer variações em torno da melodia da valsa, alterando-lhe o ritmo e acrescentando-lhe uma que outra frase, enquanto ia cantarolando uns versos.”
Já a letra de “O pé de anjo” não somente foi feita por Sinhô, como é exemplar de uma de suas características mais marcantes, que é a veia polêmica. Seus versos zombam dos pés enormes do cantor e violonista China (Otávio Vianna), irmão de Pixinguinha e pertencente à turma de Donga, com a qual Sinhô vinha se estranhando desde 1917, ano do sucesso de “Pelo telefone” (co-assinado por Donga e Mauro de Almeida), de cuja composição dizia ter participado. A eles Sinhô já havia dedicado, em 1918, o samba “Quem são eles”, que começava assim dizendo que “a Bahia é boa terra / Ela lá e eu aqui...” Boa parte da turma era formada pela segunda geração dos baianos e baianas que, após migrarem para o Rio, fixaram residência na Cidade Nova, onde promoviam rituais de candomblé e festas de samba – como a famosa Ciata. Outra “tia” da região era Amélia Silvana de Araújo, mãe de Donga.
É possível que Donga e sua turma tenham se sentido atingidos também com “Fala meu louro”, mas o alvo principal deste samba era outro: o ex-senador, ministro e deputado Ruy Barbosa. Conhecido por se manifestar sobre os mais diversos assuntos da nação, o veterano político andava quieto após ser derrotado na corrida presidencial de 1919 pelo paraibano Epitácio Pessoa. “Tu que falavas tanto / Qual a razão que vives calado?”, perguntava o samba de Sinhô, que ainda rebaixava Ruy Barbosa em seu apelido (do heroico “Águia de Haia” ao falante “papagaio louro”) e registrava o fim de seu poder na então capital federal: “A Bahia não dá mais coco / Para botar na tapioca / Para fazer um bom mingau / E embrulhar o carioca...”
“O samba ‘Fala meu louro’ igualmente gerou incidente policial-militar”, informa o biógrafo de Sinhô, Edigar de Alencar. “Na Bahia, segundo nota publicada na Revista da Semana em 29 de maio de 1920, numa festividade pública em Salvador, estudantes solicitaram à banda de música do 19º Batalhão de Caçadores que executasse o samba popularíssimo. Um tenente se julgou agravado e com vários praças reagiu à insolência. Mas, ao que parece, não houve mortos nem feridos.”
“Fala meu louro”, assim como “O pé de anjo”, foi regravada pela primeira vez em 1923, pelo cantor mais popular da época, Bahiano. Primeiros indícios da vida longa que teriam na história da música popular brasileira – assim como as polêmicas, sátiras políticas e controvérsias.