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    Mulheres no comando (... ou na farra!)

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Entre as fontes de inspiração dos compositores na Discografia Brasileira, nenhuma é mais recorrente do que a mulher – recorrente e também oscilante. Pode ser a musa “divina e graciosa” (como na valsa “Rosa”) ou a morena “da cor do pecado” (do samba de Bororó) que irradia “intensa magia” (no fox-canção “Mulher”). Em outras músicas, é citada como a criatura que era “mulher de verdade” (“Ai que saudades da Amélia”) ou então a que sabe “preparar o meu café”, "lavar e cozinhar" como nenhuma outra (a “Emília”), entre tantos outros sambas machistas ou até violentos.

    Pouco se fala nas canções em que a mulher dá a volta por cima, o troco no “parceiro” ou o recado mais do que necessário – temas desta playlist na voz feminina que a Discografia Brasileira põe no ar, por ocasião do Dia Internacional da Mulher – salve o dia 8 de março!

    Um repertório que traz, por exemplo, histórias de cabrochas boêmias, entregues à farra – ou à “orgia”, palavra recorrente nas letras de samba. Destas, destacam-se os relatos dos homens incrédulos com tanta ousadia. “Deus nos livre das mulheres de hoje em dia / Desprezam o homem só por causa da orgia”, diz a letra do famoso “Gosto que me enrosco”, samba de J. B. Silva, o Sinhô (1928), antecipando um dos grandes sucessos do carnaval de 1940, “Ó Seu Oscar” (Wilson Batista e Ataulfo Alves), do sujeito que é avisado pela vizinha que sua companheira foi embora, deixando só um bilhete: “Não posso mais, eu quero é viver na orgia!”

    Quando é a própria mulher declarando amor às noitadas, alguns exemplares divertidos estão no repertório de Aracy de Almeida. Como os sucessos carnavalescos “Sambei 24 horas” (Wilson Batista e Haroldo Lobo) e “Quebrei a jura” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), este último com a pequena dizendo que “quis viver do amor, mas não pôde ser”, afinal “a orgia conseguiu me dominar”. Já em “Tem tempo” (Roberto Martins e Waldemar Silva), Aracy dá voz a uma boêmia que despreza o pretendente: “Você quer vir para a minha companhia? / É cedo, deixa eu viver na orgia!”

    O samba também deu vez a denúncias contra abusadores, como em duas composições do pianista Gadé (apelido de Oswaldo Chaves Ribeiro) gravadas no canto ligeiro de Isaura Garcia. Em “Velho enferrujado” (de Gadé com seu parceiro mais constante, o baterista Walfrido Silva) a queixa é contra os aproveitadores das moças que vão sozinhas ao cinema. Já em “Marido maluco” quem levanta a voz é uma doméstica, contando à patroa que usou a vassoura para se defender das mãos do patrão: “Se ele fosse meu marido / Entrava na chibata e o mandava embora...”

    Já em 1952, quando o severo Deraldo Padilha assumiu a Delegacia de Vadiagem do Distrito Federal (na época, o Rio de Janeiro) e proibiu “gracejos” às mulheres, veio o samba “O doutor não gosta” (Arnô Provenzano e Otolindo Lopes). Nele, o sujeito prevê – na voz do cantor Risadinha – que, como a proibição não se estende às mulheres, os marmanjos é que vão se dar bem: “Desse jeito, minha gente, é um chuá... / O homem ir passando e a mulher assoviar!”

    Menos imaginárias são as marchinhas que retrataram as sucessivas mudanças no vestuário feminino. Em 1933, Mario Reis cantou a crônica sobre a garota que ousava andar sem meias pela Avenida Rio Branco (“Moreninha da praia”, de João de Barro). Já em 1949, foi a vez de Emilinha Borba nos apresentar a famosa “Chiquita bacana”, personagem existencialista de João de Barro e Alberto Ribeiro, que se vestia com nada além de “uma casca de banana nanica”. Já sua rival, Marlene, trouxe pro carnaval um tipo ainda mais ousado em 1952: “Eva” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira): “Se estou com muita roupa / Eu jogo a roupa fora!”

    Ainda no mundo da moda, outra pérola é o samba de Pedro Caetano e Alcyr Pires Vermelho, em que um sujeito conta que flagrou sua companheira "de braços com outro", usando o presente que havia ganho dele na véspera (“O vestido que eu dei”, de 1943). Outra história de provedor malsucedido está em “Até hoje não voltou” (Geraldo Pereira e J. Portela), o samba de 46 em que o narrador foi “buscar uma mulher na roça” e, mesmo comprando vestido e sapatos para ela, não conseguiu segurá-la em casa: “Foi dançar na gafieira e até hoje não voltou”. 

    No entanto, nenhum desfecho é mais divertido que o do samba-choro “Amor de parceria”, composição de Noel Rosa em que duas mulheres combinam de se aproveitarem do bígamo que pensa que as engana, como cantou Aracy de Almeida em 1935: 

    “Mas aturamos os seus modos irritantes
    E filamos bons jantares nos melhores restaurantes
    Você não sai do nosso pensamento
    Você foi negócio, foi divertimento”

    No âmbito conjugal, então, o repertório é rico em sambas na voz feminina. Entre as reclamações sobre maridos infiéis, tem Dircinha Batista cantando queixas sobre um sujeito que não trabalha (“Inimigo do batente”, de Wilson Batista e Germano Augusto). Tem Odete Amaral no papel da mulher que vê o dinheiro ser torrado nas farras do cônjuge (“Quem é que paga a gasolina?”, de Walfrido Silva e Gadé). E tem Carmen Costa interpretando a mulher traída dizendo ao marido que sua falsidade é “que nem uma nota de 15 cruzeiros” (“Sei de tudo”, de Claudio Luiz).

    Como no capítulo seguinte às queixas, em alguns sambas vemos personagens que tomaram suas providências. Desde a mulher que queimou os ternos e o violão do sujeito antes de sumir no mundo (“Onde está a Florisbela?”, de Geraldo Pereira e Ari Monteiro) à outra, que decidiu ir ao advogado sobre os maus tratos que sofria (“Marido da orgia”, de Ciro de Sousa). 

    A separação também era uma alternativa, embora fosse uma ousadia naquele tempo – a Lei do Divórcio, que extinguia o vínculo matrimonial entre pessoas separadas, só veio em 1977. E assim cantaram Isaura Garcia em 1946 (“Velho descarado”, de Gadé e Cristóvão de Alencar), Aracy de Almeida em 37 (“Você me paga o que fez”, de Nássara), Odete Amaral em 44 (“Carta fatal”, de Geraldo Pereira e Ari Monteiro) e Carmen Miranda em 36 (“Honrando um nome de mulher”, de Walfrido Silva e Gadé).

    Carmen também entra nesta seleção com outras duas grandes gravações. Primeiro em “Cozinheira grã-fina”, samba de Sá Roris (1939) em que faz uma doméstica que impõe suas condições ao patrão – interpretado por Almirante. Este, por sua vez, responde com uma proposta tão inusitada quanto reveladora do papel feminino à época: “É mais negócio eu me casar consigo / Que a senhora trabalha para mim de graça!” No samba “Deixa comigo” (Assis Valente), gravado em 1940, a Pequena Notável dá voz à mulher que conta seu método para acabar com a valentia de seu “mulato malcriado”: “Basta que eu fique sem fazer carinho / Para ele de joelhos me pedir perdão...”

    Já as mulheres valentes são protagonistas da parte mais divertida deste repertório, que são os sambas de pugilato que não terminam bem para seus “companheiros”. Como em “Sinuca de bico”, samba de Pedro Caetano e Norberto Martins (1940), em que Linda Batista faz as vezes da moça que, cansada do marido na jogatina, ameaça recebê-lo a pauladas. Melhor ainda é o onomatopaico “Paft paft” (mais um de Gadé), em que ouvimos – com Aracy de Almeida – a história do cidadão que é recebido a tabefes ao chegar da orgia. Ou então o hilário “Estão batendo” (de Gadé com Walfrido Silva, em 1935), no qual dois amigos – no caso, a dupla Joel e Gaúcho – conversam sobre a surra de vassoura que um deles está para levar da ex-mulher: “Essa mulata é de meter pavor / Você que trate de se esconder!”

    A seleção tem ainda recados diretos, como no samba “Sacode a lapela” (Mirabeau e Jorge Gonçalves), de 1955, em que ouvimos assim, na voz de Carmen Costa: 

    “O homem sacode a lapela, tá tudo bem
    A poeira cai, a poeira cai
    A mulher quando perde a linha
    Pode lavar, que a mancha não sai...”

    Do ano anterior é o samba “Dono de ninguém”, composição de Ivan Paulo da Silva (o Maestro Carioca) que, lançado por Ademilde Fonseca, talvez seja o panfleto mais explícito desta seleção. Aliás, explícito e - lamentavelmente - ainda atual: 

    “Dou-lhe o meu amor, mas não sou toda sua
    Não sou objeto achado na rua
    Tenho mil razões para pensar assim
    Você é meu amor, mas não é dono de mim”

     

    *Agradecimentos a Luiz Fernando Vianna e aos pesquisadores Barão do Pandeiro e Tuco Pellegrino, pelas colaborações neste levantamento.

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