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    Casa, palacete, barracão, bangalô... Em tempos de confinamento, a moradia em 78 rpm

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    “Fique em casa
    Que é melhor do que na rua
    Tu vês se não mais continua
    Sempre a me fazer sofrer...”

    Lendo, assim, a turma confinada pode até sentir um certo alento nesses tempos de Covid-19. Só que não... Esses versos são mesmo de um samba de 1954: “Fique em casa”, composição de Raimundo Olavo e Bené Alexandre lançada em disco pela gravadora Continental, no canto pungente de Linda Rodrigues. Acompanhada pelo conjunto de Radamés Gnattali (identificado no disco pelo pseudônimo Vero), a cantora suplica pela companhia do marido, sugerindo que ligue o “rádio para ouvir um bom programa”, que abra “a revista da semana para ler” ou mesmo que arranje “qualquer coisa pra fazer”.

    Pois é assim – sobre a dor-de-cotovelo e seus efeitos colaterais – boa parte das músicas da Discografia Brasileira que tratam de moradia e habitação. Como o barraco de “Chão de estrelas” (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas) e a “Casinha pequenina” (repertório tradicional), ambos lembrados juntamente com a saudade de quem partiu. Já em “Meu barracão”, a saudade é recíproca entre o sujeito e o próprio casebre, que no fim da história é humanizado pelo compositor do samba, Noel Rosa: 

    “Já cansado de esperar, saiu do lugar
    Eu desconfio que ele foi me procurar...”

    A casa também pode ser a promessa de felicidade, como no samba-convite “Minha palhoça” (J. Cascata), ou o quadro idílico que Carmen Costa canta no samba-choro “Só vendo que beleza” (Henricão e Rubens Campos). Dos mesmos compositores é o capítulo seguinte dessa última história, o samba “Casinha da Marambaia”, no qual o conto de fadas se desfaz em triste realidade: a casa desmoronou, a trepadeira “ficou triste, amarela e depois secou”, “o sabiá mudou seu ninho”, as andorinhas não voltaram da revoada e até o moreno, outrora disposto, “sem motivo abandonou meu coração”.

    Tem ainda o clássico de Herivelto Martins que é “Ave Maria no morro”: retrato singelo e melancólico do lugar onde, em vez de “felicidade de arranha-céu”, as belezas são mesmo naturais: alvorada, passarada, alvorecer e “sinfonia de pardais anunciando o anoitecer”. Outro olhar lírico está no samba “Lágrimas de barracão” (Osvaldo Cruz e Miguel Ângelo Roggieri), no qual o choro vem pelos buracos do teto. Já o compositor Luiz Antônio (em parceria com Teixeira) aborda o tema pelo viés social, ressaltando em ritmo de samba que o “Barracão”, “pendurado no morro”, “pobretão, infeliz”, vive “pedindo socorro à cidade a seus pés”.

    A pegada social ganha contornos dramáticos no realismo de Adoniran Barbosa, que em suas crônicas traz o olhar perplexo inconsolável dos mais pobres (no caso, ele e os amigos Joca e Mato Grosso) diante da demolição de suas casas. História contada em dois sambas: o famoso “Saudosa maloca” (Adoniran Barbosa) e sua continuação, “Arranjei outro lugar” (parceria de Adoniran com Raguinho), termina no mesmo refrão:

    “Saudosa maloca
    Maloca querida
    Que dim donde nos passemos
    Dias feliz de nossas vidas”

    Na esteira desse sucesso vieram outras crônicas sociais sobre despejo e demolição em forma de samba: tanto dos já citados Osvaldo Cruz e Miguel Ângelo Roggieri (que fizeram “Adeus Marapé” e “Cacarecos”), quanto de Luno Tedesco (“A lei do inquilinato”) e da dupla Venâncio e Monsueto Menezes (“Na casa de Antônio Job”). Os problemas da habitação também foram cantados no carnaval, em marchinhas sorridentes – porém certeiras – como “Daqui não saio” (Paquito e Romeu Gentil), “Marcha do caracol” (Peterpan e Afonso Teixeira) e “Pedreiro Valdemar” (Wilson Batista e Roberto Martins), sobre o operário que “faz tanta casa e não tem casa pra morar”.

    Menos engajada – mas nem por isso desprovida de significados – é “Uma casa portuguesa” (Artur Fonseca e Reinaldo Ferreira), a canção-símbolo lusitana que acomoda dentro de um lar símbolos e valores de um país inteiro. Fez tanto sucesso que inspirou duas outras músicas: uma é a marchinha “Uma casa brasileira” (Wilson Batista e Everaldo de Barros), que reúne uma imagem de “São Jorge na entrada”, “um retrato do Mengo na parede” e “uma morena tipo violão”, entre outros clichês brasileiros. Já na paródia “Casa da Tereza” (com letra de Vasco de Matos Sequeira), o ambiente é menos mimoso do que na letra original:

    “Lá na casa da Tereza fica bem
    Um porrete atrás da porta
    Co’ele apanho um dia sim, outro também
    Estou até com a carta torta...”

    Ainda na linha bem-humorada está o samba-choro “Do outro mundo” (Sá Roris), na qual o cantor Almirante dá voz ao sujeito queixoso de sua casa estar sendo “frequentada por amigos do além”. Mais palpáveis são os problemas dos imóveis cantados em dois anúncios imobiliários musicados: o samba de breque “Aluga-se uma casa” (Nilo Viana e Príncipe Veludo), que tem Moreira da Silva no papel de corretor, e a “Marcha do apartamento” (Alcyr Pires Vermelho e Peterpan), que tenta vender um cubículo em Copacabana onde “água não vai faltar, porque o mar está sempre cheio”.

    Como numa continuação dos classificados, o samba “Sinfonia do apartamento” (Haroldo Barbosa) traz Linda Batista cantando com graça o arrependimento da moradora recém-chegada a um prédio onde joga-se carta até de madrugada, aprendizes de canto solfejam e um enxerido usa binóculos para espiá-la trocando de roupa. A mesma cantora dá voz às queixas de outra criatura, esta moradora de uma “Casa de cômodos” (Buci Moreira e Carlos Sousa) cheia de barulhos e pancadarias. Mas nada supera os perrengues do “Apartamento maluco” (Arlindo Corloni), localizado num edifício “onde moram só malucos e gente sem condição”, como canta o Trio Tambatajá.

    “O rapaz do andar de cima é meio amalucado... 
    Diz que é um grande artista com o seu sapateado
    O que mora em minha frente, ai meus Deus, ninguém aguenta!
    Ele sopra a noite inteira uma gaita barulhenta...”

    Ainda assim, caríssima turma do confinamento, há que se resistir e ficar em casa. Mesmo ouvindo recitais involuntários, vizinhos impertinentes ou equivocados que reduzem a “gripezinha” a pandemia que, só até aqui, já custou 20 mil vidas.

    Foto: David Zingg/Acervo IMS

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