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    Viva Roberto Silva: os 100 anos do 'Príncipe do Samba'

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Um show de clássicos do samba que lotava a plateia do Cinema Odeon de segunda a sexta (o ingresso custava R$ 2!) e enfileirava sucessos das décadas de 1930 a 50 intercalados com vídeos que traziam depoimentos de Dona Ivone Lara, Zeca Pagodinho, Maria Bethânia, Paulinho da Viola e Moreira da Silva, entre outros grandes da música brasileira. Receita do sucesso de “O samba é minha nobreza”, show que ficou com cartaz entre abril e junho de 2002, produzido por nosso personagem-tema da semana passada, o poeta Hermínio Bello de Carvalho, com direção musical e arranjos de Paulão 7 Cordas.

    No palco miúdo do cinemão, a cantora e pesquisadora Cristina Buarque – responsável por levantar boa parte daquele repertório – dividia solos com alguns de seus aprendizes, entre eles o moço que você lê neste instante, feliz sempre que a memória inventa de passear por aqueles tempos. Já a atração principal daquelas sessões era mesmo Roberto Silva, o veterano cantor de 82 anos que mantinha o vozeirão e o charme capazes de arrancar suspiros e gritinhos da plateia, a começar pelas senhorinhas que corriam para ocupar as primeiras poltronas da sala. Mas bom mesmo era ouvir Roberto no cafezinho antes do show.

    “Hoje estou animado, viu? Já toquei violão e fiz minha física: abdominais, flexões e alongamento”, dizia o veterano, como que desafiando a boemia alheia. “E esses coreanos, hein? Estão impossíveis!”, cutucava, puxando a resenha sobre a Copa do Mundo, que seria vencida pelo Brasil. “Conhece língua mais linda que o português? Duvido que em outro idioma existam versos tão bonitos quanto os daqui”, dizia, preparando-se para cantar a valsa “Rosa” (Pixinguinha e Otávio de Souza) na passagem de som. “Grande Orlando... Quando o conheci, éramos trocadores de ônibus”, relembrava, evocando o amigo cujo sucesso inspirou a troca de seu sobrenome imperial pelo popularíssimo Silva.

    Isso porque alguém cismou que seu nome de batismo – Roberto Napoleão – não tinha a ver com samba. O mesmo se pode dizer sobre o bairro em que nasceu, há cem anos (9 de abril de 1920): Copacabana, na vila militar da Ladeira Rodrigo Sintra, ao lado da Praça Cardeal Arcoverde. Viveu lá até os seis anos, quando se mudou com os pais – a carioca Belarmina e o italiano Gilisberto – para Inhaúma, onde se criou. Frequentou o Colégio Estadual Barão de Macaúbas só até o 3º ano primário, quando um acidente abreviou sua vida escolar: uma pedra arremessada para derrubar do pé uma manga madura acabou machucando uma colega, que fez queixa e levou-o à expulsão.

    Tinha 12 anos quando começou a trabalhar. Primeiro numa marmoraria, depois como lustrador de móveis, mecânico de carros e cobrador na Viação Santa Helena (Orlando Silva trabalhava na Renascença). No trabalho seguinte, como estafeta – mensageiro – da Companhia de Correios e Telégrafos, aproveitou-se do expediente que terminava cedo (às 14h) para arriscar um novo caminho, quem sabe... na música. Dedicou as tardes a percorrer as emissoras de rádio, em programas de auditório como os de Celso Guimarães, Renato Murce, Barbosa Júnior e Ary Barroso.

    A peregrinação só parou quando ele chegou à Rádio Guanabara: em 1938, Roberto foi convidado a substituir uma das atrações do programa “Canta, mocidade”, onde permaneceu até 1940. Em 44, chegou à Rádio Mauá e foi testado em diversos gêneros musicais pelo diretor de programação, o compositor Evaldo Ruy, que no fim das contas o convidou a “ficar como sambista” e a acumular trabalhos burocráticos – primeiro nos serviços gerais, depois no caixa da emissora. Serviço puxado, mas que valia a pena, como contava no cafezinho: “Trabalhava o dobro e recebia dez vezes o que eu ganhava como estafeta. Foi lá que minha vida começou a se acertar.”

    Depois, passou um ano na Rádio Nacional (1947) e seguiu para a emissora mais marcante em sua trajetória, a Rádio Tupi, onde cantou por 18 anos, em dois momentos: primeiro entre 1948 e 64, depois entre 1967 e 69. Foi lá, em 49, que a elegância de Roberto Silva inspirou o locutor Carlos Frias a criar o apelido que o seguiria por toda a carreira: o Príncipe do Samba. Apelido que, aliás, foi atualizado ao longo da temporada de “O samba é minha nobreza”, quando sua entrada em cena – anunciada por este escriba – era antecedida de um recado do cantor João Gilberto, que numa gravação em áudio também se inscrevia no fã-clube de Roberto: “Ele é o Rei do Samba.”

    Trajando terno salmão e camisa social sem gravata, Roberto Silva entrava em cena e – entre adeuzinhos e piscadelas – era a própria nobreza no palco. Começava relembrando sucessos dos amigos Orlando Silva e Ciro Monteiro, antes de entrar numa sequência de sambas sincopados. Às vezes abusava do charme ao pedir desculpas à plateia por uma certa rouquidão (imperceptível), puxando do bolso em seguida uma pastilha para mostrar como vinha cuidando da garganta. E despedia-se com “Oh, Seu Oscar” (Wilson Batista e Ataulfo Alves), arrancando os últimos suspiros do público enquanto deixava o palco, cantando marotamente: “Não posso mais, eu quero é viver na orgia...”

    Desses números musicais, só dois foram lançados pelo próprio Roberto: “Mandei fazer um patuá” (Raimundo Olavo e Norberto Martins), gravado por ele em 1948, e “Mãe solteira” (Wilson Batista e Jorge de Castro), em 54. As outras eram clássicos do samba que haviam sido relançados por ele com sucesso, como na famosa série de LPs “Descendo o morro”, que saíram em quatro volumes, entre 1958 e 61, na gravadora de sempre. “Foram 40 anos na Copacabana, meu filho. Sabe o que é isso?”, contabilizava, entre uma xicrinha e outra. “Não que eu não recebesse propostas... Mas continuar lá foi a melhor coisa que eu fiz.”

    No entanto, sua estreia fonográfica – em agosto de 1947 – não foi por lá, mas na Continental, com um disco trazendo dois sambas que passaram em branco: “Ele é esquisito” (Valter Teixeira, Luiz Guilherme e Rogério Lucas) e “O errado sou eu” (Erasmo Andrade e Djalma Mafra). Só então assinou com a gravadora Star (nome inicial da Copacabana), onde fez o primeiro disco ainda em 47, emplacando em seguida os primeiros sucessos. Em 1948, saíram os sambas “Maria Teresa” (Altamiro Carrilho) e o já citado “Mandei fazer um patuá”, de Raimundo Olavo e Norberto Martins – mesma parceria que assina “Normélia”, sucesso lançado em dezembro de 1949. Desse mesmo ano é "Minha companheira", samba romântico de Geraldo Pereira gravado pela primeira vez no canto dolente de Roberto Silva.

    A Star já se chamava Copacabana quando vieram outros destaques em sua discografia, como “Tiradentes” (Estanislau Silva, Penteado e Mano Décio da Viola), samba com o qual o Império Serrano havia levantado o título do carnaval de 1949. Na gravação do Príncipe do Samba, lançada em janeiro de 55, tornou-se o primeiro samba-enredo a fazer sucesso fora da folia. Desse mesmo ano, do mês de março, é o primeiro registro do “Samba rubro-negro” (Wilson Batista e Jorge de Castro), lindamente cantado pelo botafoguense Roberto, que também deu voz – já em dezembro de 1960 – à marcha-rancho “Ressurreição dos velhos carnavais”, sucesso tardio do eterno Lamartine Babo.

    Seguiu na Copacabana até 1987, com gravações não só em 78 rotações (169 delas catalogadas aqui na Discografia Brasileira), como também no formato LP, com destaque para os dois volumes de “O samba é Roberto Silva” (em 1962 e 63) e uma homenagem a Haroldo Lobo e Geraldo Pereira (1976). Já pela Funarte, dividiu com Joyce Moreno as faixas do disco “Wilson Batista: o samba foi sua glória”, lançado em vinil no ano de 1985. Depois disso, retornou às gravações em 2002, com o CD "Volta por cima" (Universal Music) e a participação no disco de "O samba é minha nobreza" (Biscoito Fino).

    Só o reencontrei dez anos depois do Odeon, em 14 de junho de 2012, num show realizado no auditório do Instituto Moreira Salles do Rio. Acompanhado por um quarteto liderado pelo mesmo Paulão 7 Cordas, cantou de forma irretocável o repertório inteiro do LP “Descendo o morro” (o primeiro da série, de 1958), com raras consultas – sem óculos! – às letras impressas apoiadas na estante de partituras (veja aqui o compacto do show lançado em homenagem ao centenário). Também relembrou passagens de sua trajetória em entrevista ao jornalista Tárik de Souza e, aos 92 anos, sapateou pra valer em um dos números finais da noite: “Eu tô com vontade de sair daqui às seis da manhã!”

    Foi uma das últimas apresentações de Roberto Silva, que faleceu pouco menos de três meses depois, no dia 9 de setembro, após sofrer um acidente vascular cerebral. Foi sepultado no cemitério de Inhaúma, cercado pelos filhos (frutos de seu primeiro casamento, com Jurema), por admiradores e pela viúva, Syone Costa, que ele costumava anunciar do palco como “minha princesa”, mas, na realidade, foi muito mais: a companheira de seus últimos 26 anos de vida, além de produtora decisiva na fase final de sua carreira.

    Quem também compareceu ao velório foi o amigo e admirador Paulinho da Viola, que relembrou os tempos de menino em entrevista a Cristiane Cardoso, do portal G1. “Quando Roberto começou a fazer a série de discos ‘Descendo o Morro’, meu pai (o violonista Cesar Faria) participou e eu pedia para ir lá assistir. Ele que me apresentou Geraldo Pereira e tantos outros importantes nomes”, relembrou o sambista portelense. “Vai deixar muita saudade.”

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