Herdeira da modinha, vovó da ‘sofrência’ e desafogo dos boêmios, poucas expressões musicais são tão duradouras no Brasil quanto a seresta. Ela, que nunca precisou estar na moda para ser querida. Que sai de violões e vozes potentes em ritmo de samba-canção, bolero, valsa, toada e o que mais fizer parte do repertório sentimental. Que há um ano perdeu um de seus principais representantes a partir da década de 1960: o cantor Carlos José, falecido em 9 de maio de 2020, aos 85 anos, vítima da Covid-19. "Ele já era sucesso e deu muita força a mim e aos meus amigos da bossa nova no nosso início de carreira", disse o compositor e produtor Roberto Menescal, em mensagem à jornalista Luciana Medeiros, irmã mais velha de João Marcos, ambos filhos de Carlos e Maria D'Ajuda, também jornalista (falecida em 1984). "Seu pai foi um dos grandes."
Nascido em São Paulo (22 de setembro de 1934), Carlos José tinha cinco anos quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro, para onde foi transferido seu pai, Kylvio, funcionário do Ministério da Agricultura e, nas horas vagas, violonista – como a esposa, Flora, também cantora e pianista. Não surpreende que a música tenha feito parte da formação não só de Carlos, como dos outros três filhos do casal: Roberto, Maria Teresa e Luiz Cláudio – este último, compositor, violonista e arranjador, além de diretor musical desde 1989 dos discos e shows de Chico Buarque.
Chico é um dos participantes da vídeo-homenagem produzida pela família com artistas cantando um dos maiores sucessos de Carlos José, o samba-toada “Esmeralda”, composição de Fernando Barreto e Filadelfo Nunes lançada por ele em 1960, pela Continental. Na nova gravação, Chico se junta a Joyce Moreno, Margareth Menezes, Zezé Motta, Alfredo Del-Penho e Wilson Simoninha, além de Luiz Cláudio Ramos, para cantar a história do sujeito que se apaixona por uma noiva que não é dele.
A “Esmeralda” de Carlos José, gravada com acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra, saiu tanto em disco de 78 rotações – tendo do outro lado sua gravação de “Saudade querida” (Tito Madi) – quanto no LP “Carlos José canta para você”. Exemplares de ambos os discos integram – juntamente com os outros lançamentos de carreira – a coleção pessoal do cantor, doada pela família ao Instituto Moreira Salles em novembro do ano passado. Este conjunto, agora incorporado ao acervo de discos do IMS, foi inteiramente digitalizado.
Os arquivos de áudio e imagens relativos aos 25 LPs de carreira de Carlos José foram todos cedidos ao Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB), em cujo site o internauta pode ouvir todas estas gravações, acessando a página do cantor. Já os 47 fonogramas lançados em discos de 78 rotações, entre 1957 e 1964, podem ser conferidos aqui mesmo, no site Discografia Brasileira, nesta playlist dedicada ao artista.
Uma quantidade de lançamentos jamais imaginada por Carlos José nos tempos de universitário da Faculdade Nacional de Direito, na qual se formou e onde participou de um grupo de teatro e música com Geraldo Vandré e Sylvia Telles. Só então, em 1957, arriscou-se como calouro no programa “Um instante, maestro”, que Flavio Cavalcanti comandava na TV Tupi. A classificação em 1º lugar serviu de chamariz para gravadoras como a Polydor, que abriu as portas para o novato, então com 22 anos, fazer sua estreia em disco. Nas conversas iniciais sobre repertório, o diretor artístico da gravadora, Henrique Gandelman, sugeriu que buscasse novas composições em Ipanema, com um "rapaz que toca piano na noite".
O rapaz era Tom Jobim, que a essa altura já havia composto as músicas da peça “Orfeu da Conceição” (com Vinicius de Moraes), mas só no ano seguinte emplacaria seu primeiro grande sucesso, com o mesmo parceiro: “Chega de saudade”, em gravações de João Gilberto e Elizeth Cardoso. No piano de seu apartamento em Ipanema (Rua Nascimento Silva, 107/201), Tom mostrou três músicas a Carlos José, pedindo que escolhesse uma. “Quero todas!”, respondeu o seresteiro iniciante, decidido a gravar “Eu não existo sem você” (de Tom e Vinicius), “Aula de matemática” (parceria de Tom com Marino Pinto) e “Foi a noite” (com Newton Mendonça).
Só a última, no entanto, entrou na estreia fonográfica de Carlos José: um 78 rotações da Polydor gravado em 30 de agosto de 1957, trazendo no lado B outro samba-canção, “Ouça” (Maysa). Nenhuma das duas músicas era inédita – Maysa havia gravado “Ouça” em maio daquele ano, enquanto “Foi a noite” saiu em 56, em dois discos: um de Sylvia Telles e outro de Osni Silva. Mesmo assim, a interpretação do cantor estreante – com acompanhamento orquestral e arranjos de Lírio Panicali – teve boa repercussão na imprensa, valendo a ele o título de “revelação masculina” de 1957, segundo o Clube dos Cronistas de Discos.
“Revelação” foi justamente o nome do primeiro LP de Carlos José, gravado entre fevereiro e março de 1958, com lançamento em seguida, pela própria Polydor. Aproveitando as duas músicas lançadas anteriormente no formato 78 rotações, o disco tinha repertório predominantemente romântico, como por exemplo as outras duas composições mostradas por Tom Jobim no apartamento da Rua Nascimento Silva. “O repertório que selecionamos procura, antes de mais nada, criar o ambiente correto e exato para a sensibilidade do intérprete, que, como já dissemos, é antes de mais nada um cantor de baladas”, define Henrique Gandelman na contracapa do disco, destacando nas interpretações do jovem cantor “momentos de expressão e musicalidade, seja nos agudos ou nos graves, principalmente.”
Outras gravações do LP chegaram às lojas também em discos 78 rotações, como as jobinianas “Eu não existo sem você” (com Vinicius de Moraes) e “Aula de matemática” (dele com Marino Pinto), a autoral “Oferta” (Carlos José) e a inconsolável “Eu e Deus” (Evaldo Gouveia e Pedro Caetano), todas arranjadas por Severino Filho, assim como “Viva meu samba” (Billy Blanco), raro exemplar exultante neste repertório inicial de Carlos José. Já a gravação do samba-canção “Se alguém telefonar” (Alcir Pires Vermelho e Jair Amorim), também comercializada no formato 78 rotações, teve acompanhamento orquestral arranjado por Lírio Panicali.
Registros sonoros que, juntamente com “Esmeralda” e outros sucessos, só fizeram confirmar a previsão de Gandelman, ainda na contracapa do LP de estreia de Carlos José, de que se tratava de “uma promissora carreira, que, esperamos e auguramos desde já, será vitoriosa”.
Foto: reprodução da capa do LP “Revelação” (1958)