Elizeth Cardoso é, com justiça, um dos nomes da música brasileira mais homenageados em 2020: são 100 anos de seu nascimento (em 16 de julho) e 30 de sua morte (em 7 de maio). Mas há uma outra data redonda a ser lembrada: os 70 anos de seu primeiro sucesso, “Canção de amor”, composição de Elano de Paula e Chocolate que ela lançou num 78 rotações da gravadora Todamérica, em outubro de 1950. A música saiu como lado B do disco de nº 5.010, que tinha no lado A a gravação de Elizeth para o samba “Complexo” (Wilson Batista e Magno Oliveira). Seria o segundo disco da cantora, pois em junho do mesmo ano ela havia gravado os sambas “Braços vazios” (Acir Alves e Edgard Alves) e “Mensageiro da saudade” (Ataulfo Alves e José Batista), mas este primeiro disco acabou recolhido das lojas logo após o lançamento devido a problemas técnicos, como informou a gravadora Star.
Elizeth, portanto, deu mais sorte quando foi vista cantando na noite pelo compositor Erasmo Silva, que recomendou a visita ao amigo Antônio Almeida, também compositor além de diretor da gravadora Todamérica. O local era o Dancing Avenida (na Avenida Rio Branco, Centro do Rio), onde o dirigente ficou boquiaberto com Elizeth, que interpretava justamente “Canção de amor”, música que havia recebido de Elano de Paula e Chocolate – ambos seus colegas na Rádio Guanabara, onde cantava desde 1936. O capítulo seguinte dessa história foi no dia 25 de julho de 1950, no estúdio da gravadora, onde “Canção de amor” foi registrada com arranjo e regência do maestro Pachequinho e introdução tocada pelo saxofonista Zé Bodega, recrutado por Elano de Paula na Rádio Tupi, a instantes da gravação.
O sucesso da música teve efeito imediato. Além da vendagem do disco (segundo Chacrinha, em sua coluna na Revista do Rádio, foram 18 mil discos até abril de 1951), “Canção de amor” rendeu a Elizeth um convite – aceito na mesma hora – para se transferir para a Rádio Tupi, que lhe daria não só mais projeção que a Guanabara, como também um salário mais vantajoso: Cr$ 3 mil mensais, o dobro do que recebia na outra emissora. Cifras e informações publicadas por seu biógrafo, o jornalista Sérgio Cabral, que destaca também as impressões de Vinicius de Moraes numa crônica escrita para o semanário Flan, já em 1953. O poeta escreve que não gostou da letra de “Canção do amor”, mas que foi revirado pela voz “dessa grande dama da música popular carioca”. “A verdade é que Elizeth dava aula de canto no disco em questão e eu me pus a ouvi-la furiosamente, dezenas de vezes por dia. A música me fazia sofrer, me colocava num espaço diferente do mundo, me abraçava como uma mulher”, relatou Vinicius.
Surgida como uma criação de Elano de Paula e completada em arremates decisivos de Chocolate, “Canção de amor” foi importante também para os compositores. Marcou a estreia fonográfica de Elano (1923-2015), cearense da cidade Maranguape que trabalhou como empresário, escritor e diretor dos programas de TV de seu irmão, o grande humorista Chico Anysio. Já o carioca Chocolate (1913-1989), que atendia também por Dorival Silva, era ator, comediante e compositor do tema do programa de Chico e de outros grandes sucessos românticos, como um de Angela Maria (“Vida de bailarina”, com Américo Seixas) e outro de Nora Ney (“É tão gostoso, seu moço”, com Mario Lago). Foi a única parceria dos dois.
“‘Canção de amor’ deu popularidade e prestígio a Elizeth Cardoso, que foi recebida pelos músicos e pelos demais cantores como uma espécie de Dick Farney e Lúcio Alves de saias”, relata Sérgio Cabral na biografia “Elizeth Cardoso, uma vida”. “Ou seja: uma cantora avançada no tempo, capaz de enfrentar com tranquilidade as dissonâncias até então exclusivas do repertório dos dois cantores. Por causa disso, passou a ser a cantora predileta dos produtores da Rádio Tupi – em especial, de Haroldo Barbosa – que vibravam com a onda de modernização do samba que acabou resultando, na segunda metade da década, na bossa nova.”
Com o novo status, conquistado a partir do sucesso de “Canção de amor”, Elizeth logo passou a colecionar epítetos como “A Divina” e “A Enluarada”, entre outros apelidos pomposos. Não à toa, a música virou seu prefixo nos programas de rádio e TV, sendo também o mais emblemático dos sucessos que lançou em sua trajetória, como “Nossos momentos” (Luiz Reis e Haroldo Barbosa), “Molambo” (Jayme Florence e Augusto Mesquita), “Barracão” (Luís Antônio e Oldemar Magalhães), “Eu bebo sim” (Luís Antônio e João do Violão) e tantos outros.
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