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    Elvira Pagã – 100 anos

    Fernando Krieger

    “Confesso que sou realmente uma criatura ilógica e incompreensível. Às vezes brinco com os homens como se eles fossem bonecos de papelão. Mas tenho franquezas como esta: quem quiser se perder, que acredite em mim. Gosto de dar corda aos homens apaixonados. É um divertimento como outro qualquer. Acho graça naqueles que vêm me dizer que me amam e querem casar comigo. Os homens quando se impressionam por uma mulher são realmente interessantes. Dizem coisas bonitas, embora quase todos eles digam sempre as mesmas coisas”.

    (Elvira Pagã, in Revista “Carioca” nº 477, 25/11/1944, página 57)

     

    Existissem as redes sociais de hoje nos anos de 1940-1960, Elvira Pagã certamente teria tido milhares de seguidores. E provavelmente teria sido cancelada por outros milhares de detratores. Uma das mulheres mais amadas, desejadas e odiadas desse país, que mexeu com as emoções de tanta gente, que pertenceu ao imaginário popular durante pelo menos 3 décadas, hoje é praticamente esquecida por ocasião de seu centenário. Talvez por sermos esse país sem memória que tantos apregoam. Ou por seu nome ainda ser considerado um sinônimo de polêmica, escândalo e indecência.

     

    Elvira foi muitas, que não cabem num post. Chamava a si mesma de “A Mulher dos Sete Ofícios”: cantora, compositora, vedete, escritora, pintora, atriz e bailarina. Nasceu Elvira Olivieri Cozzolino, paulista de Itararé, em 6 de setembro de 1920. Por volta dos 14-15 anos, já no Rio de Janeiro (onde foi morar ainda criança), formou, com a mana Rosina (1919-2014), um duo musical que estreou no palco do Cine Ipanema. Antes de uma apresentação no Tijuca Tênis Clube, a dupla sem nome foi batizada pelo presidente da agremiação, o jornalista Heitor Beltrão, como Irmãs Pagãs.

     

    Estrearam na Rádio Cajuti, conheceram o sucesso na Mayrink Veiga e nos Cassinos Copacabana, da Urca e de Icaraí, passaram pelos microfones das cariocas Nacional, Tupi e Rádio Clube, além da paulistana Record e de outras emissoras país afora. Apareceram nos filmes “Alô, alô, Carnaval” (gravado em 1935 e lançado no ano seguinte), “Cidade mulher” (1936), “O bobo do rei” (1937) e “Laranja da China” (1940). Viajaram por países da América Latina – Argentina, Chile, Peru e Uruguai – e chegaram a apresentar, como Las Hermanas Pagãs, dois números musicais no filme argentino “Tres anclados em Paris”, de 1938.

     

    Foram eleitas, em votação estudantil promovida pelo Club Universitário, Rainhas do Carnaval de 1938, Rosina em primeiro (ganhando a capa da revista “O Cruzeiro” de 26 de fevereiro) e sua mana em segundo lugar. Menos bonita que a irmã, Elvira era dona de uma beleza particular e – como se dizia antigamente – tinha borogodó. Era carismática, atlética – copacabanense convicta, vivia nas areias da praia – e namoradeira. Mas apaixonou-se, casou no México em 1940 e foi morar nos Estados Unidos, desfazendo a dupla. O “Cine-Arte Jornal” nº 138, de fevereiro de 1941, informava que, com o matrimônio, ela acabou “resolvendo por isso abandonar a carreira artística”. A irmã adotou o nome Rosina Sandra e seguiu adiante como cantora e atriz.

     

    Elvira sumiu por cerca de três anos. Reapareceu na capa da revista “Carioca” nº 435, de fevereiro de 1944, cuja reportagem anunciava seu ressurgimento artístico, sem mencionar o fim do seu casamento – mais tarde, em 1952, a “Revista do Rádio” nº 139 diria que a artista havia casado e se divorciado três vezes. Reestreou como cantora em junho de 1944, fez sucesso com “Samburá” (Gadé e Walfrido Silva), apresentou na Nacional o programa “Paganismo” e lançou-se no final do ano como escritora, com o livro “Revelações”. Foi a primeira (de acordo com a revista “Carioca” nº 486) a gravar quatro músicas carnavalescas num só disco de 78 rotações, lançado pela Continental (15.251) em 1945, com “E o mundo se distrai” e “Meu amor és tu” no lado A e “Cabelo azul” e “Briga de peru” no lado B.

     

    Em 1946, estava de volta aos Estados Unidos, fazendo shows em night clubs de Nova York e excursionando por várias cidades. Chegou a participar, cantando e dançando vestida apenas com um biquíni e um sarongue, do filme “Vegas nights” (1948), cujo cartaz a apresentava como “The exotic south american beauty Elvira Pagan”. A futura vedete começava – como se diz hoje em dia – a causar.

     

    Voltou ao Brasil em 1949, e, pela década e meia seguinte, ela foi um furacão com pernas e umbigo de fora. Primeira mulher a usar biquíni na Praia de Copacabana, fato documentado pela revista “Carioca” nº 728, de setembro daquele ano. Estrela de cinema: “Carnaval no fogo” e “O dominó negro” (ambos de 1949), “Aviso aos navegantes” e “A echarpe de seda” (ambos de 1950). Rainha do Carnaval carioca (1950, primeiro ano em que esse título foi oficialmente instituído – mais uma primazia de Elvira), Rainha da Mata (título que atribuiu a si mesma em 1951), Rainha do Carnaval paulista (1952), Rainha da Micareme do IV Centenário de SP (1954), Rainha da Cidade do Rio de Janeiro (1955), Rainha das Atrizes de São Paulo (1956).

     

    No teatro de revista, a consagração popular: “Folias em Bagdá”, “Isso faz um bem”, “E o negócio... tá de pé”, “Marreta o bumbo”, “O pecado em sete véus”, “Muita máscara e pouca roupa”... Teve uma rivalidade histórica com a vedete Luz del Fuego (Dora Vivacqua, 1917-1967), também adepta da pouca ou nenhuma roupa nos palcos – não era publicidade, as duas realmente se odiavam. Presa e espancada em São Paulo só por ser Elvira Pagã, e ainda por cima processada por desacato (condenada no ano seguinte, ficou livre mediante fiança e foi posteriormente absolvida). Tentativa de suicídio, cortando o pulso esquerdo. Processada de novo por esta tentativa. Com o braço esquerdo engessado, datilografou com o direito os originais de “Vida e morte”, o segundo livro (1951), recheado de fotos ousadas. Presa e espancada no Espírito Santo. Novamente processada e absolvida. Respondeu a tudo com sambas de sua autoria: “Cassetete, não!” (Star 269), 1951, e “Condenada” (Ritmos 20-0060), 1956.

     

    Lançou-se como pintora em 1954, e teve uma experiência mística no ano seguinte, que influiu em sua vida nas décadas posteriores. Ainda em 1955, visitou a Europa e a África. No mesmo ano, foi atacada sexualmente no camarim por um investigador em João Pessoa e, por ter reagido a dentadas, novamente foi presa. Em 1956, em São Paulo, ao não cumprimentar um policial minutos antes de entrar em cena... parou de novo na delegacia. Fez nesse ano exposição de 20 quadros seus numa galeria de Copacabana.

     

    Entre 1958 e 1963, viajou por Estados Unidos, Europa e México, apresentando-se como cantora e pintora. Escreveu em 1964 o livro “Adão e Eva”, de caráter espiritualista, e lançou em 1965 “Eu, Elvira Pagã”, um apanhado de histórias sobre sua vida – incluindo todos os assédios que sofreu, as prisões, os espancamentos e os processos.

     

    De cantora a sex symbol, Elvira quebrou tabus, derrubou barreiras, abriu caminhos, enfrentou preconceitos... em seu íntimo, a julgar pelas entrevistas que dava, tinha pensamentos que pareciam variar entre inovadores e conservadores. Enaltecia os donos do poder, representantes máximos do sistema, o mesmo sistema que a brutalizava e encarcerava. Algumas de suas declarações e predileções soam até hoje como contrassensos. Chegou, por exemplo, a manifestar publicamente sua admiração por Getúlio Vargas e pelo governador paulista “rouba, mas faz” Adhemar de Barros. Era ainda apaixonada por Fidel Castro (que chegou a retratar num quadro) e por Che Guevara.

     

    Depois de uma vida atribulada – que definitivamente não cabe num só post –, afastou-se do teatro de revista, dos shows, do strip-tease (foi uma das pioneiras em tirar a roupa nos espetáculos), do disco, dos relacionamentos, e se recolheu. Fundou a seita Doutrina da Verdade, da qual se dizia sacerdotisa, e passou a se dedicar a assuntos que lhe eram caros, como espiritualidade, esoterismo e discos voadores. Fechou-se para o mundo; relatos dão conta de que teria virado uma pessoa arredia, rabugenta e temperamental, alternando momentos de euforia e de raiva. Morava de aluguel num apartamento em Copacabana bancado pela irmã Rosina, que vivia nos Estados Unidos e era, junto com a outra irmã, Leonora, uma das poucas pessoas a visitá-la.

     

    No início de 1973, então com 52 anos, declarou à revista “Realidade”: “Sofri pressões por todos os lados. Dos puritanos, do clero, da sociedade, dos tarados responsáveis por minhas muitas prisões. Fui vítima do desejo irrealizado. Por isso acho que nudismo só em colônias. A nudez pública incentiva a tara”. Hoje, parece um pensamento um tanto limitado e puritano, até preconceituoso. Soa quase como que proferido por uma anti-Elvira – mas ela talvez tivesse seus motivos. Só ela sabia das agressões que havia sofrido.

     

    Foi homenageada em 1979 por Rita Lee e Roberto de Carvalho com o rock “Elvira Pagã” (“Foi-se o tempo em que nua era Elvira Pagã, então eu digo: santa, santa, só a minha mãe e olhe lá”), e retribuiu com o quadro “Rita Lee no Baixo Leblon”. Lançou mais um livro em 1985, “Eu e os mundos”. Morreu numa clínica em Santa Teresa, no Rio, aos 82 anos, em 8 de maio de 2003 – mas a família só divulgou a notícia em agosto.

     

    Como cantora, Elvira deixou uma singela discografia. Pouco mais da metade de suas gravações data da época das Irmãs Pagãs: foram 13 discos de 78 rotações, num total de 26 fonogramas, entre 1935 e 1940. Um dos maiores sucessos da dupla, bastante executado no Carnaval de 1939, foi a marcha “Eu não te dou a chupeta”, de Silvino Neto e Plínio Bretas (Columbia 55.014). Embora do seu repertório constem composições de nomes consagrados, como Ary Barroso, Assis Valente e Custódio Mesquita, não há entre elas nenhum grande clássico da nossa MPB, à exceção de “Camisa listada”, de Assis Valente, samba gravado com muita bossa pelas irmãs em abril de 1937 – antes do famoso registro de Carmen Miranda, em setembro do mesmo ano –, mas nunca lançado comercialmente. As demais músicas valem a audição não só pelas belas vozes das Pagãs (cuja foto que ilustra este texto, autografada para o cantor Vassourinha, com Rosina à esquerda e Elvira à direita, pertence ao Acervo Tinhorão do IMS), mas sobretudo por sua interpretação graciosa e descontraída.

     

    Em carreira solo, Elvira gravou 12 discos, total de 23 fonogramas, entre 1944 e 1959. Compôs 14 músicas, com e sem parceiros, sendo 13 gravadas por ela e uma por Linda Rodrigues, “Bambeio mas não caio” (Sinter 00-00182), parceria com Paulo Marques e Aylce Chaves. Dessa fase, destacam-se: “Samburá”, de Gadé e Walfrido Silva (Continental 15.174), 1944; “Na feira do Cais Dourado”, de Nelson Teixeira e Nelson Trigueiro (Continental 15.353), 1945; “Sururu de capote”, de José Cunha e Ramiro Guará (Star 217), 1950; “Cassetete, não!”, de sua autoria (Star 269), 1951; “Marreta o bombo” e “Condenada”, ambas também de sua autoria (Ritmos 20-0060), 1956.

     

    Nas playlists a seguir, é possível escutar todas as músicas gravadas pelas Irmãs Pagãs e 20 gravações da carreira solo de Elvira Pagã, além da sua marcha gravada em 1953 por Linda Rodrigues, onde ela dá o seu recado de maneira bem clara: “Muita gente quer me ver fracassar / Bambear pra fazer feio / Eu bebo, eu jogo, eu fumo, não há defeito que eu não tenha / Quem for perfeito, pro meu cordão não venha”!

     

    Playlist IRMÃS PAGÃS                    Playlist ELVIRA PAGÃ