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    Playlist pro Zuza: uma seleção musical inspirada nas histórias que ele contou

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Com a morte de Zuza Homem de Mello, no último dia 4 de outubro, a música popular perdeu um dos melhores contadores de sua história. Menos mal que essa história ficou muito bem contada nos diversos meios usados pelo historiador e crítico musical paulistano – falecido em casa, aos 87 anos. Como resenhas em jornais, livros de memórias, incontáveis aparições na TV, documentários que o tinham como tema e programas de rádio, além da “Playlist do Zuza”, que produziu 2017 e 2020 para a Rádio Batuta (confira aqui todas as edições). Pois foi nesse mesmo formato - uma playlist - que resolvemos prestar mais uma homenagem ao mestre: uma “Playlist pro Zuza”, com o repertório selecionado da Discografia Brasileira a partir das histórias que contou.

    Nossa seleção começa com um dos números musicais que formavam a vinheta de abertura do Programa do Zuza, comandado por ele na Rádio Jovem Pan, entre 1977 e 1988. Lá estava, entre um Duke Ellington, um Cole Porter e um Pascoal de Barros, “o som delicioso do sax-alto de Abel Ferreira em ‘Doce melodia’”, como ele descreveu entre as memórias do livro “Música nas veias”.

    Já em “Música com Z”, um dos textos publicados vem da revista Época, no ano 2000: uma seleção dos quinze versos mais bonitos da música popular brasileira. Apresentada em ordem cronológica, a lista é aberta pelo samba “Feitio de oração” (Noel Rosa e Vadico), no qual são ressaltados dois trechos da letra: “Quem acha vive se perdendo” e “Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio.” “Tão frequentes eram tais arremates em suas letras, semelhantes às conclusões de fábulas de La Fontaine, que Noel seria futuramente apelidado de ‘O Filósofo do Samba’”, escreveu na crônica que encerra o livro, toda dedicada ao Poeta da Vila.

    A seleção de versos tem ainda Caymmi, com “Quem não gosta de samba bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé” (“Samba da minha terra”) e Vinicius de Moraes, por uma das letras que escreveu para a segunda parte do samba “A felicidade”, em parceria com Tom Jobim: “A felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor / Brilha tranquila, depois de leve oscila / E cai como uma lágrima de amor”. Em sua justificativa, Zuza ressalta que “Vinicius foi quem deu status aos letristas da música popular do Brasil”.

    A toada “Asa branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) também entrou na seleção pelos versos “Quando o verde dos seus olhos / Se espalhar na plantação”. “Humberto teve o mérito de dar vestimenta de canção a um tema folclórico, a pedido de Luiz Gonzaga, o maior herói da música nordestino”, destrincha Zuza, que em muitas entrevistas que concedeu citava o Rei do Baião como um de seus ídolos de infância. O outro era o cantor Mário Reis, famoso pela forma coloquial com que dizia sambas e marchinhas – “o primeiro cantor de bossa na MPB”, como definiu o crítico no obituário que dedicou ao cantor no Estadão (5-10-1981). Para representar Mário nesta playlist escolhemos sua interpretação de “Doutor em samba” (Custódio Mesquita), em gravação do ano do nascimento de Zuza, 1933.

    Outra referência da infância do pesquisador e cronista remonta à infância vivida no bairro paulistano da Bela Vista, onde se tornou ouvinte da Rádio Tupi PRG 2, que ouvia com sua avó materna, D. Elisa, com quem foi “descobrindo a ventura de poder sonhar ouvindo rádio”, por “horas e horas, de manhã, à tarde e à noite, até acabar o Noturno do Sumaré”, como contou em “Música nas veias”, antes de destacar uma das memórias musicais da época: “O regional do Rago, o primeiro a incorporar o acordeom, tocado por Orlando Silveira, tocava acompanhando cantores de música brasileira como o sambista gaúcho Caco Velho.” Para ilustrar o encontro, escolhemos a batucada “Até onde vai o tubarão” (Caco Velho e Mauro Pires), em gravação de 1946.

    Do mesmo livro é um ensaio dedicado às orquestras de dança do Brasil na primeira metade do século 20. Uma história que tem entre seus destaques a Tabajara, que Zuza descreve como “uma das mais notáveis orquestras de dança da música brasileira, seguramente a mais longeva, possivelmente sem rival no mundo nesse aspecto”. Entre as qualidades da orquestra liderada por Severino Araújo o cronista destaca que “era a mais versátil, tocando frevos e as versões em samba para clássicos da música americana”, entre eles “Poeira de estrelas” (título alternativo para “Stardust”, de Carmichael e Parish) e “Tempestade” (“Stormy weather”, de Harold Arlen), este segundo “com novo e sensacional solo de Zé Bodega”.

    Aproveitando a interseção da Discografia Brasileira com a música americana, seguimos com Ray Charles, ou melhor: o primeiro sucesso de Ray Charles, interpretado por Galli Jr. com acompanhamento dos Jet Blacks numa gravação de 1962: “What I’d say”. Outro que figura apenas como compositor no nosso banco musical é o jazzman mais querido de Zuza, Duke Ellington, aqui representado pelo foxtrote “In a melow tone”, interpretado por Totó (Antônio Sergi) e sua Orquestra Columbia num registro de 1943. A seção estrangeira da nossa playlist se encerra com “Petite fleur” (Sidney Bechet) interpretada por Booker Pittman, saxofonista americano radicado no Brasil na década de 1930, com quem Zuza – durante sua curta carreira de contrabaixista – chegou a tocar na noite paulistana, durante os anos 1950.

    Por falar em São Paulo, é de Adoniran Barbosa (em parceria com Hervê Cordovil) o próximo número musical desta seleção, o samba “Prova de carinho”. Vem desta letra outro trecho selecionado por Zuza na crônica “Quinze versos na música brasileira”: “Com a corda mi do meu cavaquinho / Fiz uma aliança pra ela / Prova de carinho”. Também da São Paulo dos anos 50 vem a lembrança de um show memorável: “Nunca me esquecerei do dia em que ouvi Pixinguinha pela primeira e única vez no Teatro Colombo, do Brás, tocando sax-tenor em contraponto para a flauta de Alfredinho”, escreveu Zuza no livro “Música com Z”. “Foi o que abriu meu horizonte e mudou meus conceitos sobre a música popular brasileira.” Assim, Pixinguinha está presente em nossa seleção com o choro “Um a zero” (de sua autoria), em duo não com Alfredinho, mas Benedito Lacerda.

    Já do interior de São Paulo vem uma representante da música caipira: o cateretê “A agricultura hoje tem seu lugar”, que é uma parceria de Ochelsis Laureano com Capitão Furtado gravada em 1940 por Nhô Pai e Nhá Zefa, com participação do próprio Furtado, que Zuza aprendeu a admirar menino ainda, ouvindo o programa Arraial da Curva Torta, pela Rádio Difusora PRF3. Depois, tornaram-se amigos e parceiros de trabalho: Zuza confiou a Capitão Furtado a tarefa de fazer os verbetes do universo caipira para a “Enciclopédia da Música Brasileira”.

    De volta à cidade, atravessamos a Dutra para chegar ao último livro lançado por Zuza Homem de Mello, em 2018: “Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958)”. Aqui, nossa seleção começa justamente pela música que leva o nome do livro e do bairro: uma composição de João de Barro e Alberto Ribeiro dedicada a uma boate nova-iorquina chamada... Copacabana. Sobre a primeira gravação, feita por Dick Farney em 1946, o escritor destaca o arranjo de Radamés Gnattali para uma orquestra praticamente sem sopros nem marcação rítmica – o baterista não usa baquetas, mas escovinhas. “Era um disco surpresa”, conta Zuza, “chegando a desnortear até o flautista Benedito Lacerda, que reclamou de cara, ‘bonintinho, mas não é samba...’ E não que estava certo? Era samba-canção. O samba-canção.”

    Outro exemplar do gênero digno de nota é “Ocultei”, composição de Ary Barroso que, na gravação de Elizeth Cardoso (1954), foi a primeira escolhida por Zuza quando solicitado em 2019, pelo programa “Lista Arte 1”, do canal de TV Arte 1, a relacionar cinco sambas-canção de sua preferência. A justificativa para a escolha está no livro dedicado ao gênero, onde Zuza destaca a cantora: “Acompanhada pelo quinteto de Radamés Gnattali, Elizeth é arrebatadora na altivez de uma interpretação dramática que não extravasa para o dramalhão, definindo os versos com emotiva expressividade.”

    Ao contrário do samba-canção, os festivais de música – outro assunto que mereceu um livro inteiro de Zuza (“A era dos festivais: uma parábola”, de 2003) – não estão representados na Discografia Brasileira. Do banco de músicas que compõem o site (mais de 63 mil lançadas em discos de 78 rotações), as mais recentes são de 1964 – ano anterior ao I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Excelsior e vencido por “Arrastão” (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), na interpretação marcante de Elis Regina. Assim, para representar este tema na nossa seleção rebobinamos até o concurso “As 10 Mais Lindas Canções de Amor”, que foi promovido no Rio em setembro de 1960, mas que, segundo Zuza, não pode ser considerado o marco inicial da era dos festivais, por ser “evidentemente restritivo”. Deste certame escolhemos a vencedora, “Canção em tom maior” (de Ary Barroso, cantada por Ted Moreno) e a vice-campeã, “Ternura antiga” (de Dolores Duran e Ribamar, na voz de Luciene Franco).

    Outro assunto recorrente entre os escritos de Zuza é o cantor e violonista baiano João Gilberto – tema de uma biografia que ele deixou pronta e será lançada postumamente. Uma paixão que remonta a 1959, como Zuza contou na introdução do ensaio “Folha explica: João Gilberto”, publicado em 2001. “Lembro-me nitidamente de quando fiquei estatelado ao ouvi-lo pela primeira vez, no rádio da perua Dodge 51 verde, próximo ao Monumento das Bandeiras, no Ibirapuera. Tive de encostar o carro na guia para ouvir ‘Desafinado’ até o fim, no máximo do silêncio possível e livre de qualquer motivo de distração”, relembra o escritor. “Naquele dia, também para mim, ele mostrou onde estava o futuro.”

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