Anoiteceu
O sino gemeu
E a gente ficou
Feliz a rezar...
A marchinha “Boas festas” foi um dos números iniciais da “live” natalina de Caetano Veloso, que aproveitou o momento pra relembrar os natais da infância, em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, com presépios montados dentro de casa e o chão coberto com areia da praia e folhas de pitangueira. Caetano também atentou para o retrato que a composição de Assis Valente faz do Natal à brasileira, com sua letra que fala por boa parte da população daquele que, segundo o tropicalista, é “o mais desigual entre os países emergentes”. Uma realidade bem conhecida pelo próprio Assis Valente, que recorreu à infância pobre e sem presente ao compor a marchinha, no Natal de 1932, num quarto de pensão em Icaraí, Niterói.
O próprio compositor relembrou o momento da composição à revista Carioca, na edição de 18 de julho de 1936: “‘Boas festas’ foi feito no mês de dezembro, há alguns anos. Morava, então, em Icaraí e estava só, longe da família e sem notícias dos meus. Uma tristeza forte me invadia pouco a pouco. No meu quarto havia um quadro representando uma menina dormindo com um sapatinho ao seu lado – quadro típico de Natal, que logo me impressionou. Pensei então na alegria de ser feliz, de não estar só no mundo como então me encontrava, e pedi a Papai Noel uma quantidade de coisas bonitas.”
No livro Assis Valente – Quem samba tem alegria (editado pela Civilização Brasileira em 2014), o biógrafo Gonçalo Júnior descreve detalhadamente – e com algumas diferenças – a imagem que inspirou o compositor: “Era uma garota de vestido amarelo que olhava com tristeza o par de sapatinhos sobre a mesa”, descreve o texto. “Na pequena mesa, três imagens em miniatura do que parecia ser José, Maria e o menino Jesus, formando um presépio. Não há muita nitidez, mas talvez somente Assis tenha visto expressão de abandono na personagem, uma vez que seu olhar não parecia de alguém solitário, mas que apenas contempla os delicados calçados feitos para dançar."
Papai Noel
Vê se você tem
A felicidade
Pra você me dar
“Boas festas” foi levada ao disco para o Natal seguinte, de 1933, depois de passar no crivo do diretor da gravadora RCA Victor, o norte-americano Mr. Evans, que achou a letra triste demais, mas aprovou a melodia. A gravação foi realizada no dia 17 de outubro, tendo como cantor Carlos Galhardo – que já havia lançado dois sambas de Assis Valente naquele ano: “Pra onde irá o Brasil” (em março) e “Pra quem sabe dar valor” (em julho, em dueto de Galhardo com Carmen Miranda). Já o acompanhamento na gravação coube à Orquestra Diabos do Céu, dirigida por Pixinguinha, provável autor do arranjo.
Assim, a primeira gravação da marchinha de Assis Valente saiu no lado B do disco da RCA Victor lançado em dezembro, trazendo no lado A o samba “Pão de Açúcar” (uma parceria de Assis Valente com Artur Costa), também no vozeirão de Carlos Galhardo. Se a gravadora não levava tanta fé naquele lançamento natalino (geralmente, a principal aposta era a música do lado A), o mesmo não se pode dizer da editora Irmãos Vitale, que editou a partitura de “Boas festas”, com uma “tiragem inicial de respeitáveis 10 mil cópias”, como informa Gonçalo Júnior na biografia “Assis Valente – Quem samba tem alegria”.
Quem também apostou no sucesso da marchinha foi a produção da peça “Raça de caboclo”, que completava a centésima apresentação na Casa de Caboclo – teatro localizado na Praça Tiradentes – quando estreou um novo quadro – com o nome de “Natal de Caboclo” – especialmente para as festas de fim de ano. A atração, encaixada no fim do espetáculo, foi assim descrita pelo Diário Carioca em 12 de dezembro de 1933, data da estreia: “Nesse quadro de assunto delicado e de toda oportunidade, aparecer-vos-ão as figuras obrigatórias hoje do Natal do Brasil – “Vovô Índio” e “Papá Noel”, interpretadas por Severino Rangel (Ratinho) e Augusto Calheiros”. Segundo a imprensa da época, o centro do quadro era a composição de Assis Valente, cantada em coro pela plateia, comovida com os versos singelos.
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma brincadeira de papel
“Há um detalhe em torno dessa marcha”, conta Carlos Galhardo no livro “A jovialidade trágica de José de Assis Valente”, de Francisco Duarte da Silva e Dulcinéa Nunes Gomes (editada pela Funarte em 1988). “Nunca tinha sido gravado antes nada dirigido para festa de Natal. Daí para frente criou-se este hábito.” A música seria lembrada também como o primeiro sucesso de Assis Valente e do próprio Galhardo, que ainda regravaria “Boas festas” duas vezes no formato de 78 rotações: a primeira em 1941, acompanhado da Orquestra Passos (reproduzindo o arranjo de Pixinguinha), e a segunda em 1951 (já em “alta fidelidade” ou “hi-fi”), com acompanhamento creditado para “Orquestra”.
O sucesso de “Boas festas” inspirou outros lançamentos natalinos, mas nenhum permaneceu como a marchinha de Assis Valente, que só no formato 78 rotações seria regravada outras 10 vezes, ao longo das décadas de 1950 e 1960. Entre as regravações, destacam-se uma da cantora Marlene, outra de Hebe Camargo e ainda as instrumentais: uma com Altamiro Carrilho e Sua Bandinha, uma na guitarra havaiana de Poly e Seu Conjunto e três com solos de harpa: por Luiz Bordon, Dionísio Bernal e Pedro Gamarra.
Assim se consolidou a canção do Natal à brasileira, quase um manifesto anti-Noel, que ainda teve inúmeras regravações após a era dos discos de 78 rotações. Entre as gravações mais marcantes estão uma do conjunto Novos Baianos (1973) e as de Tonico e Tinoco (1980), Joyce Moreno (1996), Ivan Lins (1999), Lisa Ono (2000) e Maria Bethânia (2006). Além, claro, da interpretação (e das memórias) de Caetano Veloso em sua “live” de Natal.
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade é brinquedo que não tem
Imagem: fotografia de Assis Valente no Boletim da SBACEM / Coleção José Ramos Tinhorão