Com pandeiro ou sem pandeiro
Eê eê, eu brinco...
Com dinheiro ou sem dinheiro
Eê eê, eu brinco...
Sucesso de 1944, quando por pouco não se brincou carnaval (eram tempos de Segunda Guerra Mundial), a marcha “Eu brinco” ganhou novo prazo de validade em 2021, quando a pandemia do coronavírus levou à suspensão ou ao cancelamento da folia em muitas cidades brasileiras – como Rio de Janeiro, Salvador e Recife-Olinda. Enquanto contamos os dias para 2022 (com fé na vacinação e na volta segura às aglomerações), um bom começo talvez seja erguer um brinde ao compositor da marchinha-hino dos foliões de raça, Pedro Caetano, cujo nascimento completa 110 anos neste primeiro dia de fevereiro.
Nascido em 1911, na cidadezinha de Bananal, no interior de São Paulo, Pedro Walde Caetano foi muito mais do que o compositor de “Eu brinco” (em parceria com Claudionor Cruz). Nas horas vagas do ofício de comerciante de sapatos, compôs muitos outros sucessos e não só de carnaval. Fosse sozinho ou em parceria (geralmente escrevendo a letra sobre melodias dos parceiros), também criou clássicos da seresta e do samba-choro, entre outros gêneros musicais, como atesta a maior entusiasta de sua obra: sua filha única, Cristina Caetano.
“Eu sempre soube que ele foi um compositor importante e de sucesso, mas só fui ter uma consciência real desse legado há dez anos, quando fizemos homenagens no centenário dele e pude me aprofundar em seu repertório completo”, conta Cristina, que tem 63 anos e é terapeuta ocupacional aposentada. Das composições do pai, sua preferida é a valsa “Dama de vermelho” (parceria com Alcir Pires Vermelho), que desde menina sabia tocar no piano – arte que começou a praticar aos quatro anos de idade e aperfeiçoou no Conservatório Brasileiro de Música, onde se formou.
“Já a preferida dele era ‘É com esse que eu vou’. Não por ser a mais bonita ou a mais bem feita, mas pelo sucesso que fez, inclusive na década de 1970, com aquela regravação feita pela Elis Regina, em 1973 (ouça aqui)”, revela a filha, que hoje mantém um perfil dedicado a Pedro Caetano no Instagram (@pedro.caetano2020). “Cresci na década de 1960, quando os sucessos dele já estavam no passado, eram considerados ‘velha-guarda’. Isso o amargurava muito: ter sido relegado à condição de ‘ultrapassado’. Daí ele ter lutado sempre pela divulgação das composições dele, pra continuarem na boca do povo.”
Entre as lembranças do pai estão a amizade com o parceiro mais frequente, o violonista Claudionor Cruz (“Que linda era a amizade daqueles dois!”), e o gosto com que Pedro Caetano contava histórias, como a do principal sucesso dos dois, a valsa “Caprichos do destino”. “Correu um boato que o autor daquela letra tinha se suicidado”, relata Cristina Caetano. “Um dia meu pai entrou num bonde e sentou-se num banco atrás de três normalistas: uma delas cantarolou a música e foi repreendida pelas amigas, por causa da história do suicídio. Até que ele se aproximou com voz soturna, dizendo ‘O compositor sou eeeeeu’, antes de cair na gargalhada.”
Segundo Cristina, é provável que Pedro Caetano não estivesse feliz com os rumos atuais da música brasileira. Por outro lado, estaria feliz com os novos compositores de sambas e marchinhas, afinal “ele adorava estar rodeado de gente jovem, de músicos novos, dessa energia”. Prova disso foi a alegria que sentiu ao conhecer o conjunto Céu da Boca, convocado pela Funarte em 1984 para se juntar à veterana cantora Marlene numa série de shows em homenagem a ele, primeiro na Sala Funarte (Centro do Rio) e depois numa turnê do Projeto Pixinguinha.
“Ele ficou absolutamente encantado com a gente!”, relembra o músico Chico Adnet, que era um dos integrantes do conjunto, todos na faixa dos 20 anos. “Ele gostou de mim, ficamos amigos e, quando vi, estávamos fazendo jingles juntos. Ele se despencava lá do Espírito Santo, onde morava, e vinha até meu apartamento, num prédio sem elevador, subindo escadas aos 70 e poucos anos, para gravarmos. Trazia sempre bombons nos bolsos, pra alegria dos meus filhos, Luísa e Marcelo (o humorista Marcelo Adnet).”
Até a temporada do Céu da Boca na Funarte, Pedro Caetano era mais conhecido por Chico como nome de rua: justamente a rua em que ficava a casa onde ele passava férias com os pais e irmãos, em Guarapari, no Espírito Santo. A homenagem foi uma retribuição pela homenagem do compositor à cidade litorânea, que inspirou a valsa “Guarapari”, feita numa série de músicas dedicadas a municípios do estado. “Foi minha mãe quem me disse da importância dele: dos sucessos de carnaval que tinha feito, do compositor que era”, conta Chico, que da obra de Pedro Caetano gosta especialmente dos choros letrados, como “Botões de laranjeira”, “O que se leva dessa vida”, “O pingo e a pinga” (com Antonio Almeida), “Levei um bolo” e “Engomadinho” (as duas últimas com Claudionor Cruz).
“Um dia ele chegou na minha casa e, além dos bombons no bolso, trazia um papelzinho: era uma letra para eu colocar melodia”, recorda o músico, que procurou criar uma melodia nos moldes tradicionais, “exceto uma única entortadinha que fiz num determinado trecho”. O resultado foi a canção “Arquiteto”, gravada por Chico só em 2011 (confira aqui), mas que teve uma estreia inesquecível. “Foi num evento em homenagem a ele, com a presença de outros veteranos, como o Claudionor Cruz e Alcir Pires Vermelho. Até que me chamaram para tocar a nossa música e lá fui eu. Quando passei pelo acorde moderno, o Alcir olhou feio pra mim”, relembra, entre risadas. “Definitivamente, ele não gostou daquela novidade que eu tinha inventado.”
Outro músico que soube aproveitar a convivência com Pedro Caetano foi o cavaquinista e produtor Henrique Cazes, que participou da turnê de 1984 do Projeto Pixinguinha, como substituto de Dalmo Medeiros no Céu da Boca. “Era bacana como ele curtia observar a garotada, as movimentações dos mais novos, quem estava paquerando quem, essas coisas. Eu mesmo estava passando por um dilema amoroso nessa época e ele percebeu”, conta Henrique, que acabou aconselhado pelo novo amigo: “Você é novo, seja feliz. Viva sua paixão!”
Henrique conta que, durante um almoço em São Paulo, aproveitou para perguntar a Pedro Caetano sobre uma de suas músicas preferidas do veterano, o choro “Nova ilusão”, da parceria com Claudionor Cruz, lançado em 1941 por Renato Braga e regravado por Paulinho da Viola em 1976 (ouça aqui). “Quis saber quem era a musa da letra e imediatamente ele se transfigurou: foi uma paixão avassaladora que teve a 40 dias do casamento. Apaixonou-se e, mesmo assim, manteve o compromisso”, relata o cavaquinista, que em seguida perguntou como ficou a situação. “Ainda transfigurado, ele me olhou nos olhos e disse: ‘Não tem um dia em que eu não me arrependa.’”
Mesmo assim, prevalece nas memórias de Henrique Cazes o humor de Pedro Caetano: um estado de espírito que era evidente tanto na convivência com as pessoas quanto nas composições que fazia, fossem músicas bem-humoradas, como “Credi bife”, fossem sambas de carnaval, como “Onde estão os tamborins” e “Sandália de prata” (com Alcir Pires Vermelho). “Sem contar a musicalidade dele, que compunha aquelas coisas todas sem tocar um instrumento sequer”, destaca. “Não é qualquer um que faz um samba como ‘Foi uma pedra que rolou’, que não é uma composição simples, elementar.”
O próprio Pedro Caetano não cansava de expressar sua gratidão pela convivência com os mais jovens, como fez questão de deixar registrado no livro de memórias “Meio século de música popular brasileira – O que fiz, o que vi”, que lançou em 1984 com histórias de suas composições e de sua carreira. É o que se lê nos últimos versos de um poema que está no livro, dedicado ao Projeto Pixinguinha, com o nome de “Samba reportagem”.
Este samba reportagem
É o registro da viagem
Mais saudosa que já fiz.
E pra esta meninada
Que terá que ser lembrada
Cada dia, cada ano,
O agradecimento eterno
E o beijo mais fraterno
Do amigo Pedro Caetano
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS / Fotógrafo: Paulo José