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    Samba no piano era com ele: Romualdo Peixoto, o Nonô, preferido de Ary, Noel e outros mestres

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Há casas muradas e árvores que dão alguma sombra na Travessa Romualdo Peixoto, em Niterói. Calçadas bem feitas, uma igreja pelo caminho e uma padaria na esquina. No vaivém da gente do bairro, chamado Fonseca, vê-se os prédios dos arredores, algumas flores nas entradas e uma farmácia onde a travessa desemboca, na Rua São Januário. Em seus 200 metros de extensão, não há no entanto sequer uma pista sobre aquele que dá nome ao logradouro: o niteroiense Romualdo Peixoto, pianista do primeiro time da chamada “era do rádio”, além de preferido dos mestres do samba – gênero musical que era sua especialidade no piano. Mais conhecido por Nonô, é sua memória que celebramos neste 7 de fevereiro, quando se completam 120 anos de seu nascimento.

    Nonô é um dos protagonistas da história do piano brasileiro: o piano de bossa, percussivo, bom de baile. Assim tocavam os “pianeiros”, apelido inicialmente criado com teor pejorativo, para separar bem separado os seguidores da estética europeia – estes, sim, os pianistas – dos outros, mais fiéis às bossas do que à partitura. Neste segundo time destacam-se nomes como Sinhô (o Rei do Samba), Freitinhas, Manuel da Harmonia (titular dos bailes da Kananga do Japão), Centopeia (sempre citado por Radamés Gnattali), a pernambucana Tia Amélia, o maestro Oswaldo Cardoso de Menezes e sua filha Carolina.

    No caso de Nonô, é possível que a “escola europeia” tenha sido pulada pelo simples fato de ele não ter tido escola: contam as fontes de referência que foi autodidata e menino prodígio, tendo feito as primeiras apresentações em clubes aos nove anos de idade. Quando se profissionalizou, foi convidado a ingressar nas orquestras Brunswick (dirigida por J. Thomaz e, depois, por Henrique Vogeler) e Diabos do Céu, que, liderada por Pixinguinha, fez o acompanhamento em incontáveis gravações de músicas carnavalescas e juninas na Victor. Seu talento ao piano lhe valeu o apelido – criado pelo radialista César Ladeira – de “o Chopin do Samba”.

    Já Noel Rosa, que compôs sambas com ele, foi buscar outra referência polonesa, para chamá-lo de “o Paderewski do samba”. Outro do primeiro time que se rasgava pelo piano de Nonô era Ary Barroso, conhecido pela sisudez e pela economia nos elogios. Quando faleceu, aos 43 anos, em 13 de novembro de 1954, foi de Ary o texto mais emocionado que se leu, na Revista da Música Popular (edição nº 3, de dezembro daquele ano). “A vida castigou Nonô por vingança! Nonô castigou a gente a vida inteira com sua arte, repito, com ‘sua’ arte de ser pianista brasileiro, ou melhor, carioca, riscando no teclado melodias e acordes”, derramou-se o autor de “Aquarela do Brasil”. “Resta-nos hoje Carolina Cardoso de Menezes que é, sem dúvida, o Nonô feminino.”

    Uma comparação que faz todo sentido, segundo o pesquisador Alexandre Dias, que chama atenção para o choro “Comigo é assim”, composição de Carolina lançada em disco pela própria, em 1934. O choro seria uma resposta a outro, de Nonô, lançado por ele em 1932, com o nome de “Eu sou é assim”. Sem contar que o início da música de Carolina lembra a terceira parte do choro mais conhecido do “pianeiro”, “Uma farra em Campo Grande”, lançado por ele no outro lado de “Eu sou é assim”. Neste disco de 78 rotações – o de nº 22.111 da Columbia – estão as únicas duas gravações de Nonô como solista.

    “A gravação de ‘Uma farra em Campo Grande’ por Nonô é algo absolutamente genial e que deve ser ouvida com atenção”, salienta Alexandre Dias. “O que se vê ali é um piano totalmente rico, fazendo uma verdadeira orquestra de baile, como faziam os pianeiros dos EUA daquela época, como Jelly Roll Morton e Fats Waller, que traziam para o piano uma orquestra inteira de Nova Orleans. Era exatamente isso que o Nonô fazia, adaptando para o piano a sonoridade de uma orquestra de gafieira.”

    Outra semelhança entre Nonô e Carolina Cardoso de Menezes apontada pelo pesquisador é o fato de terem sido os primeiros pianistas a gravar samba no paradigma do Estácio, ou seja: com a levada de samba criada por Ismael Silva, Alcebíades Barcelos (o Bide) e companhia, já descolada do samba maxixado. Assim, é dele o piano que se ouve como acompanhamento em gravações emblemáticas da década de 1930: os sambas “Meu barracão” (de Noel Rosa, por Mário Reis), “Esquina da vida” (de Noel e Francisco Mattoso, por Mário Reis) e “Para me livrar do mal” (de Noel e Ismael Silva, por Francisco Alves).

    Foi o cantor Mário Reis quem o convidou para participar dos Ases do Samba, conjunto formado em 1932 por Mário com Francisco Alves, Noel Rosa e o bandolinista Pery Cunha. Em abril e maio daquele ano, embarcou com eles no navio Itararé para uma excursão pelo Sul do Brasil, durante a qual se aproximou especialmente de Noel – com quem “sumia”, invariavelmente na hora dos shows, para desespero de Francisco Alves, a estrela da companhia. Quase sempre eram resgatados nos cabarés ou botequins, em meio a garrafas vazias de anisete (licor de anis) – afinal, como escreveu Ary Barroso, “era filho da noite e amante da boemia”. 

    Mesmo assim, a dupla era sucesso garantido por onde passasse a turnê. Como em São Leopoldo (RS), onde a meia hora de entrarem em cena, os dois foram resgatados por Mário Reis: "Não há anisete que os tire do compasso. O espetáculo começa e assim que Noel canta o eterno 'Gago apaixonado', tendo ao fundo o piano de Nonô, o público os ovaciona", escreveram Carlos Didier e João Máximo em "Noel Rosa, uma biografia".

    Além da esbórnia, Noel e Nonô também foram parceiros em dois sambas: “Vitória” (gravado por Sílvio Caldas) e “Sei que vou perder” (parceria deles com Alfredo Lopes Quintas gravada por Francisco Alves). Entre as 25 composições de sua autoria no site da Discografia Brasileira há ainda cinco parcerias com Francisco Mattoso (“Perto do céu”, “Reminiscência”, “Vai-te embora”, “Tão boa” e “Jardim de flores raras”) e três com Orestes Barbosa: as canções “Meu rosal”, “Vidro vazio” e “Olga”. Orestes, aliás, foi outro que não poupou elogios a Nonô: “Nas pontas de seus dedos há martelos de veludo e ninguém explica o milagre do sentimento, da instituição que ele imprime à sua maneira, destacando-se emotivamente na execução”.

    Afastou-se da música no início da década de 1950, dedicando-se ao emprego que tinha na Secretaria de Viação e Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro. Após sua morte, foi homenageado em 1957 pelo pianista Fats Elpídio, com o disco de dez polegadas “Recordando Nonô”. Já em 1966 foi a vez do poeta Vinícius de Moraes – em parceria com Baden Powell – relembrar seu nome ao pedir a benção ao amigo Ciro Monteiro (“...você. sobrinho de Nonô”), um de seus tantos parentes musicais: também eram sobrinhos dele o cantor Cauby Peixoto e seus irmãos Araken (pistonista), Andyara (cantora) e Moacir Peixoto (pianista).

    *Post produzido com a colaboração do pesquisador Alexandre Dias, fundador e coordenador do Instituto Piano Brasileiro

    Foto do acervo da família Peixoto reproduzida do livro "Noel Rosa, uma biografia", de João Máximo e Carlos Didier (Editora UNB/Linha Gráfica Editora, 1990)

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