Chega ao fim o carnaval que não houve, a folia que por motivo de força maior – a pandemia do novo coronavírus – será futuramente lembrada pelo cancelamento de bailes e desfiles de escolas de samba e blocos de rua, entre outras formas de aglomeração. Findo o feriado, a sensação dos foliões é a de que, neste ano, tudo não passou de uma grande quarta-feira de cinzas, como na famosa marcha de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes feita na primeira metade da década de 1960. A letra, aliás, parece descrever não só o fim do carnaval, como também os dias que temos vivido.
Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando
Cantigas de amor
Perguntamos sobre a atualidade destes versos a Carlos Lyra, criador da melodia da “Marcha da quarta-feira de cinzas”, e a reação foi de surpresa, junto com a admiração confessa pelo autor da letra: “Não tinha pensado nisso, mas agora vejo o quanto Vinicius é atemporal e atualíssimo”, exclama o violonista, também parceiro do poeta em sambas como “Você e eu”, “Minha namorada” e “Primavera”, entre outros. “Realmente, ele é o que podemos chamar de genial.”
Os holofotes seguem em Vinicius de Moraes quando assuntamos sobre outra particularidade da “Marcha da quarta-feira de cinzas”: embora frequentemente associada aos anos de chumbo, a composição é anterior ao golpe militar de 1964. “Sempre que penso no que teria motivado essa letra, lembro da frase de Ezra Pound (poeta estadunidense), que diz que os poetas são a antena da raça, porque não há explicação”, afirma Lyra. “Vinicius teve uma premonição, ele já sentia o que estava por vir.”
Os dois parceiros encabeçavam a ala mais engajada da bossa nova, com composições que, entre outras belezas, tinham também um olhar social – como as que fizeram para o musical “Pobre menina rica”. Carlos Lyra era um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (o CPC da Une): movimento inaugurado em março de 1962 com o objetivo de criar e divulgar uma “arte popular revolucionária”, como defendiam o sociólogo Carlos Estevam Martins, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho e o cineasta Leon Hirzsman, entre outros intelectuais de esquerda que participavam daquele grupo.
Foi neste contexto que se deu a composição da “Marcha da quarta-feira de cinzas”, cuja história se inicia no casarão de número 243 da Rua do Catete, no Rio de Janeiro, onde funcionava a sede da União Nacional dos Estudantes. “Vinicius foi me encontrar lá, onde havíamos combinado de fazer o ‘Hino da Une’”, relembra Carlos Lyra. “Foi quando ele chegou com essa letra para mim.”
Antes da gravação mais emblemática, lançada em fevereiro de 1964, no LP de estreia da cantora Nara Leão (ouça aqui), outras duas gravações já tinham saído em discos de 78 rotações. Uma de 1963, feita pelo cantor Jorge Goulart no selo Copacabana, e a outra do conjunto paulistano Os Bossais, que apesar do nome tinha na formação artistas do primeiro time, como as cantoras Alaíde Costa e Claudette Soares e o pianista Pedrinho Mattar. Esta segunda gravação consta em nosso banco de dados como sendo de 1962, o que causou estranheza a Lyra: “Se bem me lembro, a música é de 1963.”
Nos comprometemos desde já a checar a informação, até porque não há registro da data de lançamento nos discos da gravadora Audio Fidelity em que saiu o registro d’Os Bossais: nem no selo da bolacha de 78 rotações, nem na capa do compacto duplo. É provável que a informação que consta em nossa base tenha como origem levantamentos feitos por pesquisadores nas gravadoras. A memória de Lyra, no entanto, é respaldada por informações como a que já encontramos na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: uma página de O Jornal (edição de 24-03-1963) em que o colunista Fernando Lobo se refere aos Bossais como um conjunto que “acaba de nascer” (veja aqui).
Divergências à parte, Lyra ouviu as duas gravações da “Marcha da quarta-feira de cinzas” lançadas em 78 rotações e gostou do contraste entre as interpretações do conjunto vocal (“uma gravação alegre”) e de Jorge Goulart, com “aquele tom dramático que chega a ser engraçado”: “São duas intenções completamente distintas que mostram que a obra é como um ator que encarna personagens distintos.”
Quanto às regravações da “Marcha da quarta-feira de cinzas”, Carlos Lyra só não gosta da leitura triste que a música recebeu de parte de seus intérpretes. “Os produtores sempre escolhiam um clima pesado, com aquela marcação de surdo dando um clima fúnebre, e eu acabava apelidando a música de ‘O enterro da porta-estandarte’”, relata Lyra, que prefere, por exemplo, o “ritmo de celebração” da gravação do DVD “Carlos Lyra, 50 anos de música” (Biscoito Fino, 2005).
Aos 84 anos, o compositor de “Canção do subdesenvolvido” (com Chico de Assis), “Feio não é bonito” (com Gianfrancesco Guarnieri) e “Maria do Maranhão” (com Nelson Lins e Barros) continua sensível à realidade político-social do Brasil. Mesmo que, desde o início da pandemia, tenha preferido manter distância dos noticiários, para não “se envenenar” com tantas informações desencontradas que levam “o cidadão à total confusão e desconfiança”.
“Numa hora em que o mundo passa por esse sofrimento, com tantos amigos e parceiros queridos que perdi no último ano, ver a politicagem envolvida em relação à saúde é algo inadmissível. A ciência é quem deve ditar as regras e não os políticos”, afirma o músico, confinado desde o dia 17 de março do ano passado. Rara escapulida foi a que ele deu no dia 10 de fevereiro, véspera da entrevista ao site da Discografia Brasileira, quando foi tomar a primeira dose da vacina contra a Covid. “Ficar em casa não é problema, pois sou caseiro e me sinto confortável. O que dá saudade mesmo são os encontros com amigos, os palcos e o contato com o público.”
E como estaria o parceiro Vinicius de Moraes nesses tempos de pandemia? Difícil imaginar o poeta confinado em casa, sem encontrar os parceiros de boemia... “Certamente alguém estaria zelando por ele e o impedindo de sair. Mesmo assim, ele estaria convidando amigos, com aquele jeitinho dele irrecusável, e conseguiria manter seus encontros com alguém fiscalizando à distância”, divaga Lyra. “O vejo aproveitando essa pandemia e escrevendo muitas letras, porque assunto não falta e a criatividade dele era intensa!”
Foto: Carlos Lyra por Magda Botafogo