Foi em 1948 que a cantora Ademilde Fonseca foi coroada a Rainha do Chorinho, assim apresentada na edição de maio da Revista do Rádio, com sua mania de títulos de nobreza, cetros, coroas e faixas. Menos mal que o apelido selou sua marca: a cantora de choro, com fôlego e velocidade de sobra para interpretar exemplares desse gênero musical predominantemente instrumental. Ademilde não foi a primeira a cantar choro, mas se destacou lançando versões letradas de choros que já eram famosos.
Foi assim em 1942, ano-chave pra Ademilde Fonseca: primeiro ela trocou o emprego de datilógrafa numa empresa de capitalização por um teste na Rádio Clube, sendo aprovada por Renato Murce. Depois foi cantar numa festa acompanhada do regional de Benedito Lacerda e surpreendeu o flautista cantando “Tico-tico no fubá” (Zequinha de Abreu) com versos que ele desconhecia, escritos por Eurico Barreiros.
“O Benedito não soube do que ficar mais espantado, se da letra ou da ligeireza com que eu cantava”, contou Ademilde à Revista do Rádio (19-2-1955). Em seguida, foi encaminhada por ele à direção da gravadora Continental: em setembro, chegava às lojas seu disco de estreia, com a primeira versão cantada do choro de Zequinha de Abreu, gravado originalmente em 1931, de maneira instrumental, pela Orquestra Colbaz. No lado B, Ademilde lançou “Volte pro morro”, samba de Darci de Oliveira com Benedito Lacerda.
Já era contratada da Rádio Tupi quando, em abril de 1943, pôs seu canto ligeiro a serviço de outros dois choros antigos: “Apanhei-te cavaquinho” (composição de Ernesto Nazareth, aqui co-assinada por Darci de Oliveira e pelo próprio Benedito) e “Urubu malandro”, do repertório tradicional, assinada por Louro com letra de João de Barro, então diretor da Continental.
E assim, mais uma vez na base do resgate, veio em novembro de 1945 o primeiro grande sucesso de Ademilde Fonseca: a polca “Rato rato” (composição de Casemiro Rocha retomada lá de 1908), acompanhada no lado B pelo choro “História difícil” (Vitor Santos e Pereira Costa). O cronista Antônio Maria não gostou das composições (“mercadorias irregulares”), mas adorou Ademilde, como escreveu em O Jornal (23-12-1945): “Uma das melhores cantoras que atualmente possuímos, espalha alegria e satisfação pela maneira com que oferece essas ninharias”.
Também de 1945 são dois sucessos contemporâneos de Ademilde: os choros “O que vier eu traço” (do portelense Alvaiade com Zé Maria) e “Xem em em”, parceria de um paraibano (o maestro Geraldo Medeiros) com um pernambucano (o jornalista Nestor de Holanda) que a reconecta à sua origem nordestina: Ademilde nasceu em Pirituba (RN) no dia 4 de março de 1921, há 100 anos portanto. Era pequena quando a família se mudou para Natal, onde começou a cantar no serviço de alto-falantes da cidade e na Rádio Educadora. Passou a trabalhar em escritório quando se mudou para o Rio (1941), retornando aos microfones tão logo a situação financeira piorou.
Outro ano-chave para Ademilde Fonseca foi o de 1950, quando começou a relançar choros de sucesso de Waldir Azevedo: ele fazia a primeira gravação em seu cavaquinho e logo depois ela gravava a versão cantada. O primeiro da série, em julho deste ano, foi o célebre “Brasileirinho”, com letra de Pereira Costa – também autor do lado B desse disco, o choro “Teco teco”, em parceria com Milton Vilela. Em outubro, saiu o primeiro disco em sua nova gravadora, a Todamérica, com mais dois choros: o dolente “Molengo” (Severino de Araújo e Aldo Cabral) e o divertido “Derrubando violões”, do maestro Carioca.
Voltou a Waldir em 1951, lançando as versões letradas para outros sucessos instantâneos do cavaquinista. Primeiro foi o baião “Delicado” (com versos de Miguel Lima), que saiu em abril, em mais uma gravação elogiada por Antônio Maria em O Jornal: “Em alguns trechos da interpretação, a voz de Ademilde parecia o cavaquinho de Waldir Azevedo.” Em 19 de junho, o mesmo cronista informou que as vendagens do disco de “Delicado” – com o baião “Arrasta pé” (Rafael de Carvalho) no lado B – já contabilizavam 50 mil unidades.
E teve ainda a interpretação de Ademilde para “Pedacinhos do céu”, choro romântico de Waldir Azevedo (com letra de Ari Vieira) que seria lembrado pela cantora como um dos mais difíceis de gravar. “Aquela segunda parte deu trabalho”, contou a Rainha do Chorinho à revista Carioca (8-11-1951). “Com os fones no ouvido, na sala de gravação, quase boto tudo a perder.”
No lado B vinha mais um clássico de Ademilde Fonseca: o velocíssimo choro “Galo garnizé” (Antonio Almeida, Luiz Gonzaga e Miguel Lima), que arregaçou os ouvidos de Tommy Dorsey. A revista Carioca (26-7-1952) relata que o maestro estadunidense, ao ouvir o choro do galinho durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, quis saber quem era “aquela artista que canta com tamanha velocidade”: “It’s explosive!”
Outro que se encantou com Ademilde foi o cantor e jornalista Manezinho Araújo, também um velocista do canto – era conhecido como “o Rei da Embolada”. Na Revista do Rádio (30-12-52), dedicou uma nota de sua coluna Rua da Pimenta à gravação de “Doce melodia” (Abel Ferreira e Luiz Antônio), lançada em agosto de 1952: “Que chorinho magnifico esse tal de ‘Ifiriu-fiu’. E que interpretação maravilhosa da brasileiríssima Ademilde Fonseca.” Já a polca “Pinicadinho” (Jararaca e Ratinho) foi um de seus lançamentos de 1954, ano em que trocou a Rádio Tupi pela Nacional.
Destacam-se ainda no site da Discografia Brasileira outras interpretações de Ademilde (são ao todo 95), como as que deu ao choro feminista “Dono de ninguém” (Carioca), de 1954, e ao samba romântico “Boato” (João Roberto Kelly), de 1961. Também é personagem recorrente na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, seja pelos discos que fez, pelas viagens ao exterior ou fofocas sobre sua vida amorosa. Além, claro, dos concursos de Rainha do Rádio – Ademilde foi vice-campeã na famosa disputa de 1949, entre Marlene (campeã) e Emilinha Borba (terceira colocada).
Já entre seus lançamentos em LP, merecem destaque os discos “À la Miranda” (Odeon, 1958), no qual refez o repertório da Pequena Notável (outra especialista no canto ligeiro), e “Ademilde Fonseca” (Top Tape, 1975). No repertório deste último álbum está uma bela homenagem dos compositores João Bosco e Aldir Blanc ao universo choro e sua Rainha: “Títulos de nobreza (Ademilde no choro)” (clique para ouvir):
Naquele tempo chorei, vou vivendo
Nosso romance, ainda me recordo
Flor amorosa, apanhei-te assanhado
Numa seresta de sábado
Eu vascaíno, mas ela entre mil, vibrações
Ademilde no choro
Ademilde Fonseca faleceu aos 91 anos, em 28 de março de 2012, após sofrer um mal súbito em casa, no bairro carioca da Lagoa. Em sua última entrevista, gravada na antevéspera de sua morte para o programa televisivo Sarau (veja aqui), comemorava feliz a chegada aos 70 anos de carreira: “Deus deu talento completo pra mim, porque cantei bem legível, cantei com malabarismo e... cantei.”
Foto: Acervo José Ramos Tinhorão / IMS