Se no campo o time do Flamengo terminou o Brasileirão 2020 como campeão pela segunda vez seguida, na Discografia Brasileira é dele também a liderança das homenagens musicais a clubes de futebol. Basta uma busca simples pelo nome do clube aqui no site (que reúne gravações feitas em discos de 78 rotações, entre 1902 e 1964) e o resultado são 31 ocorrências – mais do que qualquer rival. Um número que fica ainda maior no caso de uma pesquisa mais detalhada que inclua, por exemplo, as músicas que mencionam na letra o nome do clube da Gávea ou de personagens rubro-negros.
Um universo que há quase 40 anos é objeto de pesquisa do designer gráfico Paulo Tinoco, que desde a década de 1980 tem se dedicado a reunir informações e gravações de músicas dedicadas a seu clube de coração. “Inicialmente, eu colecionava tudo que dizia respeito ao Flamengo: livros, revistas, fotos, fitas VHS com lances de jogos... E discos. A música era mais um item dessa coleção”, relembra o pesquisador, nascido há 56 anos na cidade de Itaperuna, no norte do estado do Rio de Janeiro. “Até que em 2004 fui contatado pelo próprio Flamengo em busca de informações para o processo que tinha como objetivo tornar o clube patrimônio imaterial do Rio. Só então comecei a planilhar as informações que eu tinha: cada compositor, intérprete, o tipo de disco, ano de lançamento, a capa do disco, o arquivo de áudio... Só com todas essas informações dou entrada na planilha.”
Até o momento, são aproximadamente 1.250 músicas recolhidas por Tinoco, não só em discos de 78 rotações, como também em LPs, compactos, fitas cassete, CDs e partituras. Ele vem trabalhando para transformar seu banco de dados num livro em que relata passagens da história do Flamengo em paralelo às homenagens musicais dedicadas ao clube, desde 1915, quando foi lançada a música “Píndaro e Nery”, uma composição de Aristóteles Peri, editada em partitura pela Casa Viúva Guerreiro, ainda inédita em disco. “É a primeira música feita para o Flamengo, mais especificamente para a dupla de zaga campeã carioca de 1914, ano do primeiro título rubro-negro no futebol.”
Enquanto finaliza o texto, Paulo Tinoco trabalha na diagramação do livro, que já tem título: “Flamúsica: memória musical rubro-negra – e algumas histórias flamengas”. O design gráfico é uma das atividades do pesquisador musical, que é formado em gestão ambiental e atua também como fotógrafo de aves. Outro passatempo de Tinoco é a banda de rock Agressor, formada por ele com amigos para tocar “thrash metal” – vertente mais acelerada e agressiva do heavy metal. Criado em 1982, o conjunto chegou a ter músicas tocadas na rádio Fluminense FM durante a década de 80, mas só gravou o primeiro disco em 2015, com Tinoco tocando bateria e cantando. “Ou melhor: berrando”, brinca o pesquisador, que apesar da veia roqueira compôs um samba – chamado “Reminiscências flamengas” – dedicado à primeira vez que viu o Flamengo jogar, em novembro de 1977, no Maracanã.
A conversa volta ao passado e, então, Paulo Tinoco é desafiado a escolher suas três músicas preferidas entre as homenagens ao Flamengo lançadas no formato de 78 rotações. O pesquisador responde de bate-pronto, começando a lista pelo samba “Meu Flamengo, meu Brasil”, que é uma composição de Hianto de Almeida e Jurandy Prates gravada e lançada pelo cantor Roberto Paiva em 1956. “A ideia do samba era homenagear o time campeão estadual de 1955, que nessa edição só ficou definido mesmo em 56. O problema é que a gravação foi feita antes das finais, o que foi um problema, especialmente depois que o Flamengo perdeu o segundo jogo das finais para o América, por 5 a 1. Felizmente, os outros dois jogos terminaram com vitórias rubro-negras (1 a 0 e 4 a 1) e o disco pôde ser lançado.”
A segunda ode ao Flamengo escalada por Paulo Tinoco é o “Hino rubro-negro”, composição de Paulo Magalhães, lançada em partitura no ano de 1920, com versos saudando as conquistas tanto no futebol quanto no remo: “Flamengo, Flamengo... tua glória é lutar / Flamengo, Flamengo... campeão de terra e mar.” O lançamento oficial se deu nas festividades pelo 25º aniversário do clube, realizadas na antiga sede da Rua Paissandu, no bairro do Flamengo. Apesar da grande repercussão na imprensa, que anunciava “o novo hino do Flamengo”, a música só foi gravada em disco em 1937, pelo cantor Castro Barbosa, com acompanhamento da Orquestra RCA Victor. No lado B deste disco está a primeira gravação de outro clássico rubro-negro muito popular entre os torcedores mais antigos: a marcha “Piranha” (Armando Fernandes), também cantada por Castro Barbosa: “Piranha eu sou de coração / Flamengo até debaixo d’água...”
Completa a seleção do pesquisador rubro-negro o hino popular do clube: a composição de Lamartine Babo lançada em 1944, com o nome de “Sempre Flamengo”, gravada pelo conjunto vocal Quatro Ases e um Curinga. Lamartine havia composto marchinhas dedicadas a todos os clubes participantes do Campeonato Carioca de 1943, mas somente a do Flamengo – campeão daquele ano – acabou sendo lançada em disco. Só em julho de 1950, durante a Copa do Mundo realizada no Brasil, as outras homenagens de Lamartine foram lançadas em disco e “Sempre Flamengo” foi regravada pelo Trio Melodia, com o nome de “Marcha do Flamengo”. Já em 1956, veio mais uma regravação, pelo cantor Gilberto Alves, agora rebatizada como “Hino do Flamengo”. “Foi esse o nome que ficou, aproveitado em todas as regravações que se sucederam. Até aqui, já foram mais de 50”, contabiliza Tinoco. “Indiscutivelmente, é o maior sucesso do repertório dedicado ao Flamengo.”
Além do trio escolhido por Paulo Tinoco, outros destaques do repertório rubro-negro disponível na Discografia Brasileira são os sambas dedicados ao clube pelo grande compositor (e, evidentemente, torcedor do Flamengo) Wilson Batista. São dele o famoso “Samba rubro-negro” (“Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá...”), gravado por Roberto Silva em 1955, os tristonhos “Memórias de um torcedor” (lançado por Aracy de Almeida, em 1942) e “E o juiz apitou” (também de 42, gravado por Vassourinha) e “Coisas do destino”, gravado em 42 pelo elenco rubro-negro campeão daquele ano: “Ai, ai, são coisas do destino / Sou rubro-negro, meu patrão é vascaíno / Ai, ai, esse emprego eu vou perder / Mas deixar de ser Flamengo... não, não pode ser!”
>> Além dos fonogramas deste post, confira a playlist Sempre Flamengo, feita em comemoração à conquista da Copa Libertadores de 2019.
Na foto, o Flamengo em Lisboa, durante excursão pela Europa em 1951. Foto de José Medeiros / IMS