Não, ninguém imagina o boêmio e notívago Antônio Maria num bloco, com serpentina enrolada na cabeça. Frequentador das boates de Copacabana, onde trocava a noite pelo dia – morreu em plena calçada daquele bairro carioca, na porta de um restaurante, numa madrugada de outubro de 1964 (o IMS lembrou os 50 anos de seu desaparecimento neste texto) –, compositor de músicas de fossa, sambas-canção, vários clássicos da dor de cotovelo, era praticamente um anti-folião. Mas... sim, Maria gostava de Carnaval. Deixou belas crônicas nas quais falava de maneira apaixonada sobre os festejos do Recife, sua cidade natal, onde nasceu em 17 de março de 1921, há exatos 100 anos.
“Menino, eu andava na rua, com o povo, repartindo o mesmo sentimento festeiro. Cresci, vagando por dentro dos canaviais, sem a preocupação de assisti-lo, sem bisbilhotá-lo, sem pretender ser o seu repórter, mas sentindo-o, intensamente, alegrando-me dele, no cheiro, na cor, no gosto, na música e na dança. Começa que, no Recife, o Carnaval é uma necessidade temperamental do povo. A timidez do pernambucano precisa de uns dias de desabafo, para que se possam dizer coisas enterradas no fundo da alma (...)”, escreveu ele na revista “Manchete” de 21/02/1953.
Já em fevereiro de 1964 – seu último Carnaval –, publicou em “O Jornal” do dia 7, na coluna “O Jornal de Antônio Maria”, mais reminiscências: “O Carnaval do Recife talvez não seja, hoje, um desabafo (...). É possível que se tenha transformado numa festa, simplesmente. Talvez seja alegre e isto é sadio. Mas os meus Carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza do Carnaval pernambucano era revolta – revolta e amor – porque só de amor, por amor, se cometem os gestos de rebeldia”.
Maria tinha 30 anos e morava no Rio de Janeiro desde 1948 quando, em agosto de 1951, chegou ao disco sua composição “Recife”, pelo Trio de Ouro em sua segunda formação: Herivelto Martins, Nilo Chagas e Noemi Cavalcanti. Teria composto este frevo ainda em sua cidade natal, talvez já antecipando a “saudade tão grande” que sentiria quando estivesse longe. Foi o primeiro de uma série de três frevos antológicos – algumas fontes mencionam 5, mas os outros 2 são desconhecidos – que, no melhor estilo da série “Evocação”, do mestre Nelson Ferreira, rende homenagens à cidade em que nasceu e a pernambucanos ilustres – mas Maria fez isso 6 anos antes de seu conterrâneo iniciar a famosa série de frevos de bloco.
“Recife” – hoje conhecido como “Frevo nº 1 do Recife” – menciona, em sua letra, duas agremiações carnavalescas surgidas na cidade no final do Século XIX, o Clube das Pás (dos carvoeiros, fundado em 1887) e o Clube Vassourinhas, de 1889, além de duas personalidades famosas na capital pernambucana: o primeiro é Valfrido Cebola (Valfrido Silva, homônimo do compositor carioca), ex-treinador da equipe juvenil de futebol do Santa Cruz, que chegou a ser candidato a vereador no Rio de Janeiro em 1950. O segundo não é Haroldo Matias, como se ouve no LP “Maria Bethânia” de 1969 (o disco ainda identifica erroneamente a música como sendo o “Frevo nº 2”): é Haroldo Fatia, apelido de Haroldo Praça Guimarães (1916-2011), ex-jogador do Sport – fez o gol da vitória do time por 6 a 5 contra o Santa Cruz na inauguração do estádio da Ilha do Retiro, em 1937 –, mais tarde radialista e cronista esportivo, também citado no baião “Saudade de Pernambuco”, de Sebastião Rosendo e Salvador Miceli.
Existe uma dúvida com relação ao que se escuta na letra logo após a menção do seu nome. Algumas fontes afirmam ser “Colaço”, que seria uma figura conhecida do lugar, boêmio, torcedor do Sport e companheiro de farra de Valfrido Cebola. A revista “Manchete” de 23/03/1957 mostra, numa fotografia, o “velho Colaço”, de “90 e tantos anos”, o “vovô dos foliões pernambucanos” – seria ele o personagem mencionado no frevo? Mas a atividade profissional de Haroldo Praça levanta outra hipótese: de que a palavra possa ser “golaço”. Antônio Maria foi locutor esportivo, certamente conhecia os jargões do futebol e provavelmente viu Haroldo Fatia em sua época de jogador, quando marcou o gol de cabeça que deu a vitória ao Sport em 1937. Na gravação do Trio de Ouro, dá-se a impressão de que ambas as palavras são cantadas.
Em janeiro de 1954 foi lançado o “Frevo nº 2 do Recife” – gravado no ano anterior – pela voz do mestre Luiz Bandeira, também ele compositor de mão cheia e de frevos inesquecíveis, como “Voltei, Recife” – até hoje um hit dos blocos pernambucanos. No final, Maria faz uma homenagem a três ruas de sua cidade natal: Rua Nova, Rua Imperatriz Teresa Cristina – mais conhecida como Rua da Imperatriz – e Rua do Imperador D. Pedro II – ou simplesmente Rua do Imperador.
Encerrando a trilogia vem o “Frevo nº 3 do Recife”, de 1957, registrado em disco por um dos principais intérpretes do gênero, Claudionor Germano. Aqui, Maria faz uma espécie de “quem é quem” da cultura pernambucana: são citados os compositores Capiba (Lourenço da Fonseca Barbosa, 1904-1997) e Zumba (José Gonçalves Júnior, 1889-1974), o poeta Ascenso Ferreira (1895-1965) e o compositor, arranjador e regente Nelson Ferreira (1902-1976). O autor também passeia pelas ruas de diversos bairros da capital: Rua da Harmonia, Rua da Amizade, Rua da Saudade e Rua da União – onde ele nasceu, no bairro da Boa Vista –, esta última também personagem do poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, publicado em 1930 no livro “Libertinagem”.
No mês do centenário de Antônio Maria – mês que Momo vez por outra pede emprestado para fazer sua festa –, fica a nossa homenagem ao compositor e cronista que, à sua maneira, amou a folia pernambucana, deixando um pequeno legado de frevos e textos, como o que foi publicado na “Manchete” de 21 de fevereiro de 1953, cujo final era categórico: “O Carnaval de minha terra é uma lindeza. Se alguém puder, que vá vê-lo”.
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Foto: Antônio Maria na redação da revista Manchete, início da década de 1960. (Acervo José Ramos Tinhorão / IMS)