O palhaço o que é...?
Na história da música brasileira, bem mais do que a figura mais divertida do picadeiro. Está nos vozeirões de Eduardo das Neves e Benjamin de Oliveira, palhaços de renome, nos discos das primeiras duas décadas do século passado, mesma época de Manoel Pedro dos Santos, o famoso Bahiano da Casa Edison, dono da voz marota que se ouve na primeira gravação de “Pelo telefone” (Donga e Mauro de Almeida) e outros “sambas” pioneiros. Sem contar Carequinha e Arrelia, sucessos também na TV.
Já em termos temáticos o site da Discografia Brasileira também é rico em palhaços, inclusive no sentido (lamentavelmente) pejorativo, como xingamento ou provocação a um desafeto – quase sempre um ex-amor. E há também o caso do sujeito que, depois de dispensado pela pequena, se viu com “cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço”, como muita gente cantou em 1961.
Composição de Luiz Reis e Haroldo Barbosa, o samba “Palhaçada” foi um dos grandes sucessos – quiçá o maior – da música brasileira naquele ano. Se contarmos só os discos de 78 rotações, foram dez gravações em 1961, sendo que em março, quando saiu do ineditismo, pôde ser ouvido em cinco discos diferentes. Teve Dóris Monteiro num lançamento da Philips, Ivon Curi na RCA Victor, Elizeth Cardoso na Copacabana e mais dois lançamentos pela Odeon: um com o conjunto de Valter Vanderley e outro com este mesmo grupo acompanhando Isaura Garcia.
A aposta de diversas gravadoras em “Palhaçada” foi tema do jornal Diário Carioca na edição de 7 de março de 1961. “Trata-se de um número que está caminhando rapidamente para a consagração popular”, escreveu o crítico Alberto Rego na coluna Discos. “Em todas as paradas ele figura com a gravação de Dóris Monteiro para a Philips, embora a de Elizeth Cardoso para a Copacabana tenha sido a primeira a ser lançada no mercado.”
O Jornal do Brasil também tratou do sucesso de “Palhaçada”, em sua edição de 20 de abril de 1961. Isso na coluna Samba Naquela Base, que, com texto do jornalista Sérgio Cabral, contou que a música foi feita “a pedido do cantor Ivon Curi, que desejava uma música de letra engraçada. Foi dele a primeira gravação”. Nenhum desses cinco discos, no entanto, teve o sucesso do que saiu em abril, pela RGE, com o samba de Luiz Reis e Haroldo Barbosa interpretado no canto sincopado de Miltinho.
Segundo Cabral, “a dupla de compositores de maior sucesso no momento” havia estreado em disco em junho de 1960, quando Elizeth Cardoso lançou o samba “Projeção”, sem grande repercussão. O texto conta que Haroldo Barbosa, que não compunha havia oito anos, estava retomando a atividade por motivos financeiros. E destaca, de sua primeira fase, composições como “Adeus América” (com Geraldo Jacques) e “Barnabé” (com Antônio Almeida), além de “cerca de 400 versões” de músicas estrangeiras, traduzindo “para o português os maiores sucessos da época”.
Na volta à composição, Haroldo Barbosa chegou a ser procurado por outros veteranos propondo parceria, mas preferiu aliar-se a “um compositor inédito, livre dos vícios dos compositores antigos”. Tratava-se do maranhense Luiz Reis, que era cronista de turfe (como o próprio Haroldo), além de músico amador. “Apesar de ser um excelente pianista, nunca se dedicou profissionalmente à atividade musical, embora fizesse os seus sambas sem pretensão e tocasse, sem compromisso, em algumas boates do Rio.”
Até que vieram os primeiros sucessos da dupla, ambos em março de 1961: o samba-canção “Nossos momentos”, clássico instantâneo de Elizeth Cardoso, e as cinco gravações de “Palhaçada”. Sobre este último, a escritora de novelas e roteirista Maria Carmem Barbosa compartilhou suas memórias no documentário sobre o pai, “Haroldo Barbosa tim tim por tim tim”, escrito e apresentado por João Máximo na Rádio Batuta (ouça aqui).
“Papai um dia chegou pra mim e disse assim: ‘Vem cá, vem ver o que eu estou fazendo!’, relembrou, dizendo em seguida que o pai cantarolou os primeiros versos na cozinha de casa, batucando na geladeira. “Eu falei assim: ‘Ih, papai! Tô achando isso maravilhoso! Tô achando que isso vai dar certo...’”
“A história que corria no Cangaceiro, no Drink e outras boates da época, mas não cheguei a confirmar, é que ‘Palhaçada’ era uma brincadeira do Haroldo com o Sérgio Porto”, recorda João Roberto Kelly, 82 anos, parceiro do grande redator e compositor em músicas feitas para o programa “Times Square”, que ia ao ar pela TV Excelsior do Rio de Janeiro. “Haroldo Barbosa era um humorista nato, um piadista imenso, um dos grandes nomes do rádio e da TV no Brasil.”
Já Luiz Reis, se por um lado não fez música com Kelly, por outro tornou-se um de seus melhores amigos. “Meu primeiro sucesso, ‘Boato’, estourou na voz da Elza Soares pela mesma época de ‘Palhaçada’. Foi aí que fiquei muito amigo desse sujeito doce, carinhoso e talentosíssimo”, afirma o músico, que em 1964 dividiu com Luiz Reis o LP “Samba a 4 mãos”, lançado pela RCA Victor. “Nossa amizade foi amor ao primeiro acorde – escreve aí essa frase, que ela é boa, hein?”
Passadas as dez gravações em 78 rotações só em 1961, o samba “Palhaçada” seguiu sua trajetória de sucesso, muitas vezes relançado em LPs, compactos simples e duplos, fitas cassetes e CDs, entre outros suportes. Também ganhou uma versão em inglês do estadunidense Oscar Brown Jr. para um musical off-Broadway (“Joy”, de 1966), com o título de “Nothing but a fool” (ouça aqui), e virou tema de um comercial de TV do filtro solar Dermil, numa campanha publicitária de 1985 (veja aqui).
Nascido há 95 anos, em 31 de março de 1926, Luiz Reis era natural de São Luís (MA), mas viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, para onde se mudou com a família aos seis anos de idade. Considerado um dos inventores do ‘sambalanço’, é lembrado por sua batida de samba no piano, tendo falecido aos 54 anos incompletos, em 09-02-1980. Cinco meses antes, morria Haroldo Barbosa (06-09-1979), que era carioca de 21-03-1915 e fez história também como um dos maiores redatores de humor do rádio e da TV, sendo parceiro de Chico Anysio na criação da ‘Escolinha do Professor Raimundo’.
Foto: o cantor Miltinho clicado por Lafe (IMS / Coleção José Ramos Tinhorão)