“Só o esquecimento se lembrou da Eufrozina Silva Santos, conhecida em todo país como integrante da dupla ‘Cascatinha e Inhana’. Um enfarte matou Inhana. Ela gravou sucessos como ‘Índia’, ‘Recuerdos de Ipacaraí’ e outras guarânias paraguaias”.
A lacônica nota do “Diário de Pernambuco” de 13/06/1981, publicada dois dias após o desaparecimento da cantora, há exatos 40 anos, dá a dimensão do quanto a dupla, contando então outros 40 anos de estrada e de casamento, estava, para certa parcela do público, ultrapassada. A nota faz crer que Ana Eufrosina da Silva (ou Anna Eufrozina da Silva, segundo sua certidão de casamento), que entrou para a história da MPB como Inhana, foi tão somente intérprete de guarânias, quando fez bem mais que isso. Foram 54 discos de 78 rotações – sete deles sozinha e 47 com Cascatinha – lançados entre 1951 e 1963; cerca de 13 compactos, entre 1960 e 1981; e mais de 30 LPs entre 1958 e 1980, entre álbuns originais e coletâneas. Discografia que poderia ter sido ampliada, não tivesse ela partido tão cedo, aos 58 anos.
Mais do que detentora de uma consistente carreira fonográfica, Inhana era também dona de uma das mais belas e afinadas vozes da nossa música popular. O talento para o canto surgiu cedo: aos 14 anos, a jovem empregada doméstica Ana Eufrosina, nascida em Araras (SP) em 28 de março de 1923, apresentou-se pela primeira vez na rádio local, no programa “A Voz de Araras”. Por essa época, já participava como solista, nas horas vagas, do Jazz Band Araras, no qual atuavam seus irmãos mais velhos e uma irmã.
Em 1941, com 17 anos, cantava no serviço de alto-falantes da cidade quando, em fevereiro, um circo passou por lá; da trupe fazia parte a dupla Chopp e Cascatinha (o cantor e instrumentista Francisco dos Santos, 1919–1996). Foi amor à primeira vista: Ana, então noiva, desfez o compromisso. Ela e Francisco namoraram e se casaram naquele mesmo ano, em 25 de setembro de 1941.
A dupla Chopp (que o parceiro chamava de “Chopes”) e Cascatinha, com a entrada da nova integrante, virou o Trio Esmeralda, que chegou a se apresentar nas rádios cariocas Mayrink Veiga e Nacional. A sinhá Ana – ou, como se diz em São Paulo, nhá Ana – acabou ganhando seu nome definitivo: “Naquele tempo era um tal de sinhá Maria, sinhá Joana. Começaram a me chamar de Inhana. Era mais fácil”, explicou em entrevista a Pinky Wainer na “Série Documento” da TV Bandeirantes – declaração publicada também no jornal “A Luta Democrática” de 17/03/1978.
Chopp (o paraibano Natalício Fermino dos Santos) deixou o grupo em 1942. Francisco dos Santos e Ana Silva, rodando as cidades do interior com os circos Estrela D’Alva e Imperial, e mais tarde contratados pelas emissoras paulistas Bauru Rádio Clube (sua estreia radiofônica, em 1947), América (1949) e Record (1950), começavam a consolidar a fama do duo Cascatinha e Inhana, primeira dupla sertaneja a ganhar o cobiçado troféu Roquette-Pinto – não uma, mas duas vezes: em 1951 e 1953. A pouco usual combinação do canto perfeito de Ana, de voz doce, aguda e afinadíssima, com o timbre rascante de Francisco, um craque das segundas vozes, tinha tudo para funcionar – e como funcionou!
“De fato, Cascatinha e Inhana revelam em suas interpretações, além de uma harmonia perfeita de vozes, uma suavidade, um tom nostálgico e evocativo e uma afinação que dificilmente se encontra em cantores brasileiros, mesmo de melhor nível”, escreveria no “Jornal do Brasil” de 15/04/1978 o crítico José Ramos Tinhorão, a respeito do lançamento do LP “Casinha pequenina”, arrematando: “casal pra cantar bonito está aí”.
Inhana estreou em gravações antes do marido, em dois discos da dupla Raul Torres e Florêncio gravados em 1950 pela Todamerica e lançados em 1951, participando do coro da toada “Pomba do mato” – talvez seja dela também a voz feminina que aparece no lado B, “Dança do baião” – e dando voz à pombinha mensageira da moda “Rolinha correio”. Como Ana Silva, debutou em março de 1951 com o baião “Marinheiro” – sua primeira gravação solo –, num disco dividido com o cantor Alfredo Simoney, ambos acompanhados pela sanfona (e pelo conjunto) de Mário Zan. Em julho saiu o primeiro disco cem por cento dela, com o baião “Pé de alecrim” e a toada “Meu rincão”.
O mesmo mês marcou a estreia da dupla Cascatinha e Inhana na indústria fonográfica, com “La paloma (Rolinha)”, famosa canção do espanhol basco Sebastián Yradier que recebeu letra em português de Pedro de Almeida, e o tango brejeiro “Fronteiriça”, de José Fortuna. A cabocla de voz bonita lançou seu segundo solo ainda em 1951, com o baião “O segredo está no molho” e a toada “Chora maninho”. Já o segundo disco da dupla, de 1952, trazia “Brasil”, primeira das muitas guarânias que iriam gravar – anos mais tarde, a música seria o pivô de um processo de plágio movido por um de seus autores, Anacleto Rosas Júnior, contra Paulo Borges, compositor de “Cabecinha no ombro”. O terceiro disco, que chegou ao mercado em julho daquele ano, foi um verdadeiro divisor de águas na carreira do casal, para se dizer o mínimo.
“Índia, seus cabelos nos ombros caídos / Negros como a noite que não tem luar / Seus lábios de rosa para mim sorrindo / E a doce meiguice desse seu olhar / Índia da pele morena, sua boca pequena eu quero beijar...”. E do outro lado: “Meu primeiro amor / Tão cedo acabou, só a dor deixou nesse peito meu / Meu primeiro amor / Foi como uma flor que desabrochou e logo morreu...”. Dois petardos sertanejos, uma guarânia e uma canção paraguaia, que tomaram de assalto rádios e corações do Brasil de Norte a Sul.
Foi um sucesso estrondoso. O disco com “Índia” e “Meu primeiro amor” tornou-se um dos mais vendidos da história dos 78 rotações no país: “Naquela época, foram 500 mil cópias prensadas a pedido dos lojistas. (...) Foi uma comoção no país. (...) onde quer que existisse um aparelho de rádio, Cascatinha e Inhana ocupavam as faixas, em todos os horários, sem ficarem restritos aos programas sertanejos”, escreve Rosa Nepomuceno em “Música caipira: da roça ao rodeio” (São Paulo: Editora 34, 1999), revelando ainda que “‘Índia’ foi o primeiro lugar nas paradas de sucesso durante três anos”.
Em 1953, ao comentar sobre o lançamento de um disco de Cascatinha e Inhana pela Todamerica, a revista “Carioca” nº 915 (de 18 de abril) salientava: “Aliás, é mister assinalar que a gravação (...) de ‘Índia’, na mesma etiqueta, continua sendo um dos maiores êxitos de vendagem do momento na capital da República” (Rio de Janeiro). Na lista dos artistas campeões de vendas da Todamerica em 1956, o nome deles aparecia em primeiro, terceiro e quarto lugares, este último mais uma vez graças a “Índia” e “Meu primeiro amor”, “disco que vem sendo vendido constantemente”, segundo matéria do “Correio Paulistano” de 05/02/1957.
A dupla teve a primazia de lançar no país “Meu primeiro amor”, título brasileiro para a “Lejanía” de Hermínio Gimenez. Mas “Índia”, do paraguaio José Asunción Flores – o criador do gênero guarânia –, não era exatamente uma novidade no Brasil: composta em 1928, chegara em disco por aqui em 1942, na voz de Amado Smendel. Três anos depois, ganhou letra em português do Capitão Furtado (Ariowaldo Pires), bastante fiel à original em espanhol feita por Manuel Ortiz Guerrero. Esta primeira versão, gravada por Arnaldo Pescuma, não tinha, contudo, a força e a singeleza da nova poesia de José Fortuna e da interpretação a duas vozes dos Sabiás do Sertão.
Após o sucesso estrondoso, Inhana gravou sozinha – em paralelo à carreira com Cascatinha – mais três 78 rotações: um em 1952, com os baiões “Amor perdido” e “Volta pro mar”; outro em 1953, contendo o samba-canção “Guarujá” e a valsa “Eu quero brincar”; e o quinto disco solo, em 1954, trazendo a valsa “Quinze anos” e o baião “A felicidade”. O repertório da cantora, bem brasileiro, contraria aquela nota do “Diário de Pernambuco” de 1981, que a mostrou como intérprete de “guarânias paraguaias”. A própria guarânia, tal como outros ritmos estrangeiros, ao chegar aqui se aclimatou e abrasileirou – no caso, se “acaipirou”, sentando praça em algumas regiões, como a pantaneira e o estado de São Paulo.
Cascatinha e Inhana ganharam o título de “Favoritos do Rádio Paulista” de 1954 (segundo informação da “Revista do Rádio” de 29/12/1956). No ano seguinte, ficaram orgulhosos ao receber a notícia de que a recém-lançada “Despertar do sertão” seria tocada na BBC de Londres. Ainda em 1955, apareceram no filme “Carnaval em Lá maior”, onde Inhana faz uma introdução executando o “pistão nasal”, técnica que aprendeu com o marido, como a própria contou em depoimento ao programa “MPB especial”, da TV2 Cultura, em 1973: “Desde que eu me casei, Cascatinha ensinou. Disse que era o instrumento que eu ia tocar... (risos)”. Seu “pistão nasal” também soa em dois números deste programa, “Meu primeiro amor” e “Vai com Deus”.
O sexto disco de Inhana chegou às lojas em 1956, com o baião “Saci” e a toada “Corre vento”. No ano seguinte, a cantora encerrou sua carreira solo com o sétimo e último: de um lado, o xote “Chimarrita cafuné”, e do outro um rasqueado, “Feitiço índio”. Na época dos 78 rpm, Cascatinha e Inhana foram verdadeiros colecionadores de sucessos, entre eles “Assumpción”, “Mulher rendeira”, “Solidão”, “Deixa o pinho soluçar”, “Recordações de Ipacaraí”, “Noites do Paraguai”, “Minha mágoa” – resposta a “Cabecinha no ombro” –, “Colcha de retalho”, “Rede de taboa” – que a imprensa grafava erroneamente como “Rede de tábua” – e “Fujo de ti”.
Voltaram às origens quando Cascatinha comprou um circo – experiência que durou somente dois anos e consumiu boa parte do dinheiro que haviam ganhado. Até o fim dos anos 60, já então gravando long-playings, tinham conquistado seis Discos de Ouro. Mas a década seguinte voltou a trazer dificuldades: o mercado fonográfico havia mudado muito. A dupla se voltou para seu público fiel do interior, contando o dinheiro suado que entrava.
De “Serra da Boa Esperança”, “Chuá chuá” e “Casinha pequenina”, faixas do seu primeiro LP (1958), a “Luz de esquina” (versão de “Farolito”), do último álbum (1980), foram outros tantos sucessos que agradavam em cheio aos fãs, como “Anahí”, “Vai com Deus” e “Vinte e cinco anos”. Provavelmente tentando se adaptar ao mercado e adquirir novos fãs, Cascatinha e Inhana também fizeram suas versões para músicas que a juventude de então escutava, como “Gosto de maçã”, de Wando, e “Eu quero apenas”, da dupla Roberto e Erasmo Carlos.
“De estrutura mignon, Inhana ganhou alguns quilos, problemas cardíacos e parecia cansada nos últimos tempos, embora mantivesse o humor e o jeito brejeiro”, conta Rosa Nepomuceno. Mesmo nos dias de maior sucesso e estabilidade financeira, o casal parecia não perder de vista suas origens. A discreta Inhana, de olhar e jeito humildes, que pouco falava nas entrevistas, mãe adotiva de Marcelo José – falecido em março, em decorrência da Covid-19 –, talvez nunca tenha tido a real dimensão do valor de sua arte. Talvez – sabiá que era – cantar fosse, para ela, algo tão natural quanto é para os pássaros.
No dia 20 de junho de 1981, estava marcada uma homenagem aos 30 anos de carreira da dupla – contados a partir da primeira gravação, em 1951, pois de estrada já tinham 40 – dentro do show “A grande noite da viola”, que reuniria no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, os maiores nomes do gênero sertanejo. A homenagem acabou sendo póstuma: Inhana sofreu uma parada cardíaca no dia 11, em São Paulo. Apesar de a imprensa ter dado algum destaque à notícia, àquela altura – como já foi dito – Cascatinha e Inhana estavam, para certa parcela do público, ultrapassados.
Mas a outra parcela, a que realmente conta – os fãs eternos –, compareceu no dia seguinte ao cemitério do Morumbi. E, durante o cortejo de Inhana, cantou a plenos pulmões, na maior homenagem que a artista poderia ter recebido: “Quando eu for embora para bem distante / E chegar a hora de dizer-lhe adeus (...) / Índia, levarei saudade da felicidade que você me deu...”.
Link para playlist: https://discografiabrasileira.com.br/playlists/244120/inhana
Foto: Cascatinha e Inhana por Kojima / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS