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    De Aracy de Almeida a Pedro Miranda: a Gávea no mapa carioca do samba

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    É o samba que nos ensina que nenhuma outra praia tem os encantos de Copacabana, a “Princesinha do Mar”. Que Madureira chorou duas vezes, pelas partidas precoces de Paulo da Portela e Zaquia Jorge, a vedete do subúrbio. Que a Lapa, outrora “o ponto maior do mapa do Distrito Federal”, já então acalentava os que vivem de madrugada. E que Ipanema, muito antes de ser conhecida mundialmente por uma garota, dava nome ao bonde em que viajavam um monte delas, “as mais lindas cabrochas do Rio”.

    Já a Gávea, que não costuma ser lembrada entre os bairros cariocas que deram samba, foi parar no Spotify, Deezer e outras plataformas de áudio como “um paraíso” que “quem quiser conhecer, pegue o bonde em Jockey Club, não paga nada pra ver”. Assim vem cantando Pedro Miranda em seu álbum mais recente, “Da Gávea para o mundo”, lançado em streaming no último mês de março (clique aqui para ouvir no Spotify) pela gravadora Biscoito Fino, com recursos do edital Retomada Cultural da Lei Aldir Blanc. Os versos estão na faixa 3, o “Samba da Gávea” (Osvaldo Lobo e João Batista de Oliveira), que teve sua gravação original em 1942, feita por Aracy de Almeida, e desde então foi regravado uma vez só, em 1958,  pela orquestra do trombonista Astor Silva.

    Pedro não conhecia esta música quando batizou como “Samba da Gávea” a roda semanal que passou a fazer, em junho de 2017, no restaurante Casa da Táta, ao lado de um time de músicos formado para tocar e cantar de maneira acústica: Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Luís Filipe de Lima, Paulino Dias, Bruno Barreto e Tiago da Serrinha. Até que, numa das noites de segunda-feira, tiveram na plateia a presença do escritor e pesquisador musical Carlos Monte, que pediu a palavra e desencavou:

    Falam tanto
    Do Estácio e do Salgueiro
    Dizem até que o pandeiro
    E a cuíca lá têm outro som
    Venham ver como o samba
    Aqui da Gávea é bom

    E assim o samba septuagenário lançado por Aracy voltou às bocas, através da memória do veterano pesquisador, às vezes identificado como “o pai da Marisa Monte” e ex-diretor do departamento cultural da Portela. Carlos também é autor da biografia – ainda inédita – do grande compositor Haroldo Lobo (clique aqui para ler o post), cujo irmão, o baterista Osvaldo Lobo (vulgo Badu), é um dos nomes que assinam a composição. Haroldo e Osvaldo foram criados na vila operária da extinta Companhia de Tecidos Carioca, onde trabalhava o pai deles, na Rua Pacheco Leão, que hoje faz parte do bairro do Jardim Botânico, mas nem sempre foi assim.

    “É importante ressaltar que o que hoje a gente identifica como Gávea é só uma parte do que era o bairro naquele tempo, como aliás está na segunda parte deste samba: a Gávea era todo o trecho que vai do Humaitá ao Leblon”, ensina Carlos Monte. Entre as antigas referências carnavalescas do bairro, ele destaca os bailes do Carioca Esporte Clube e o desaparecido Bloco da Bicharada, em cujos desfiles Haroldo Lobo testou muitas de suas composições antes de serem gravadas, como as marchinhas “Alá la ô” (com Antônio Nássara), “Serpentina” (com David Nasser) e “Índio quer apito” (com Milton de Oliveira).

    Bem anteriores são as menções à Gávea que podem ser encontradas no livro “O choro: reminiscências dos chorões antigos”, publicado em 1936 com os relatos do carteiro Alexandre Gonçalves Pinto – vulgo “Animal” – sobre suas andanças pelos ambientes de música do Rio de Janeiro entre o fim do século 19 e início do 20. Entre os locais visitados por ele está a Sociedade Flor da Gávea, famosa pelas reuniões dançantes lideradas pelo violonista José Francisco da Costa e Souza, o Zé da Gávea. “Em sua residência, em Marquês de São Vicente, boas farras se fizeram não se olhando se era dia ou se era noite”, descreve o Animal, com destaque para “as gostosas galinhas ao molho pardo ou ensopadas com batatas” que eram servidas pela companheira do músico. Outro ponto alto do bairro era o bloco carnavalesco Pândega e Miséria, com o qual Zé colaborava como compositor.

    De volta ao “Samba da Gávea”, o parceiro de Badu é outra boa história: João Batista de Oliveira assina a participação na autoria no lugar de seu filho, o compositor – e que compositor! – Wilson Batista. A troca por conveniência estava longe de ser uma prática incomum na época, como explica Rodrigo Alzuguir em seu livro “Wilson Batista: o samba foi sua glória” (Casa da Palavra, 2013): “Compositores costumavam assinar contratos de exclusividade com editoras em troca de adiantamentos – o que não queria dizer que deixassem de ‘atender’ a outras freguesias”, revela o escritor e pesquisador, antes de informar que seu biografado na época andava atrelado a um compromisso com a editora Vitale.

    Entre as composições de Wilson colocadas no nome do pai – que também assinava J. Batista – estão também “A morena que eu gosto” (com Marino Pinto), “E o juiz apitou” (com Antonio Almeida) e “Coitadinha de mim” (com Jorge Faraj). Outra que costumava assinar por ele era Marina Batista, sua companheira e “autora” de sambas como “Mulato calado” (com Benjamin Batista) e o já citado “Lá vem o Ipanema” (com Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr.). Este último é uma das muitas homenagens musicais dele – nascido em Campos (RJ) – a bairros cariocas, como “Samba do Meyer” (com Dunga), “Sereia de Copacabana” (com Nássara) e “Pertinho do céu” (com Roberto Martins), este último dedicado a Santa Teresa.

    Também não está totalmente descartada a possibilidade de, num esquema igual ao de Wilson com o pai, Haroldo Lobo ser o autor verdadeiro da outra parte, assinada por seu irmão Badu. A propósito, Carlos Monte conta que “Samba da Gávea” é um dos títulos que constam numa lista de composições de Haroldo feita pelo jornalista David Nasser num artigo publicado na revista A Cigarra, em setembro de 1965. Rodrigo Alzuguir contrapõe: “Ele poderia ser um compositor de fachada, sim, mas devo dizer que entre as centenas de entrevistas que li para fazer a biografia do Wilson não encontrei qualquer referência ao Badu como um desses compositores de conveniência.”

    Seja como for, a homenagem musical ao bairro é mais um bom samba que renasce, na voz sorridente de Pedro Miranda, que não à toa ganhou o apelido carinhoso de “prefeitinho” do bairro: depois de firmar ponto na Casa da Táta, ele participou ativamente da abertura de outras frentes musicais, em 2018: primeiro veio o Forró da Gávea (às quartas, no Dumont Art Bar) e, depois, o Choro na Rua, com rodas mensais na Praça Santos Dumont. Agitos que aguardam só o fim da pandemia de Covid-19 para voltarem a sacudir o pacato bairro e seus moradores.

    “O que criamos ali, com esses encontros informais, foi uma espécie de quilombo, quase um posto avançado da Lapa: uma resistência cultural dentro de um bairro que até ali talvez não tivesse um olhar pra esse tipo de manifestação, de cultura popular”, reflete Pedro Miranda, animado com a repercussão do álbum “Da Gávea para o mundo”. “Um amigo me escreveu dizendo que tinha adorado o disco: ‘E que legal essa história de você colocar a Gávea como um bairro de samba!’ Respondi que agora é! Ou seja: é aquela coisa que todo mundo estava querendo, estava só por um empurrãozinho. Só faltava fazer.”

    Foto: Pedro Miranda (Divulgação / Pepe Schettino)

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