Um dos maiores problemas enfrentados pelo povo nordestino, a seca costuma ser lembrada na música popular através de melodias e letras que evocam todo o lamento e a tristeza causados por esse flagelo, além da natural indignação e consequente revolta pela falta de ação e total omissão dos poderes constituídos. Fazem parte desse repertório tanto canções dolentes quanto de protesto: “Asa branca”, “Vozes da seca”, “Súplica cearense”, “Último pau de arara”, “Acauã”, “Aquarela nordestina”, “Fome no Nordeste” e outras tantas lançadas ainda em 78 rotações, e, claro, “A triste partida”, de Patativa do Assaré, cuja poesia crua/cruel, rascante e corajosa talvez seja a que melhor retrate essa realidade aviltante.
Surgiram também canções que trataram do assunto com mais leveza. A vibrante sanfona, com um pé no xaxado, que o paraibano Sivuca resfolega na introdução do seu baião “Adeus Maria Fulô” não faz crer que estamos diante de tema tão pesado, embora a letra, escrita com o cearense Humberto Teixeira, aponte as mazelas: “marmeleiro amarelou”, “ôio d’água estorricou”, “enxuga teu pranto de dor que a seca mal começou”. Mas ela traz também a esperança de dias melhores, esperança que nunca morre nos corações dos sertanejos: “Eu vortarei quarqué dia, é só chover no sertão / Lá longe as horas da vorta eu conto na minha mão”.
Não foi a primeira personagem a aparecer com este nome na música popular brasileira: “Maria Fulô” (corruptela de Maria Flor), de Leonel Azevedo e José de Sá Roris, conquistou, não obstante ser um samba-canção, o primeiro lugar no concurso de músicas de São João promovido pelo jornal “A Noite” em junho de 1937. No mesmo mês, Gastão Formenti, que estreava em nova gravadora, a Odeon, fez o registro em disco, lançado em agosto.
Na edição de “O Malho” de 10/08/1939, o escritor Armando Pacheco narrou a lenda da jovem Maria Fulô, que pendurava um candeeiro com querosene no gancho de sua porta para orientar os viajantes notívagos que passavam pela estrada “íngreme e traiçoeira” próxima à sua casa. A garota cantava a Ave-Maria ao anoitecer, tratava de pessoas doentes e muitas vezes prestava a extrema-unção quando da ausência de padres na localidade, passando a ser vista como santa milagreira, o que a irritava bastante. Atraía romarias de peregrinos, sempre expulsos por ela.
Chamada, segundo Pacheco, de “milagrosa, curandeira, médium, mãe de santo, cambono, predileta de Ogum e outras coisas mais, Maria nunca deixou de socorrer necessitados; Maria Fulô era a namorada do povo. Menina que dominava homens. Quando ela morreu todo o mundo chorou. E desde então popularizou-se a lenda de que ouviam sua voz e que os viajantes noturnos ainda viam a luz orientando-os na estrada tortuosa”. O conto parece remeter à origem da Comadre Fulozinha, personagem folclórica presente na escuridão das estradas de terra e dos matagais do interior nordestino (especialmente na Paraíba e em Pernambuco), que ainda hoje muitos juram ver e ouvir...
A Maria Fulô de Sivuca e Teixeira nada tem de sobrenatural. Surgida há exatos 70 anos, em disco 78 rpm da Continental lançado em julho de 1951, ela é a namorada/noiva/amada deixada para trás pelo retirante, uma personagem feminina recorrente no repertório da seca: “Entonce eu disse: adeus, Rosinha, guarda contigo meu coração”, entoavam Luiz Gonzaga e o próprio Teixeira em “Asa branca”. Ou ainda: “Deixei lá na porta da minha choupana / Com os óio vremêio, com um beijo na boca, minha pernambucana”, composição de Manezinho Araújo e Hervê Cordovil gravada no lado B de “Adeus Maria Fulô” com o nome “A saudade é de matar”, que Luiz Gonzaga regravaria no ano seguinte com outro título, “Adeus Pernambuco”.
A parceria Sivuca-Humberto Teixeira teve início com o “Baião do Salvador”, lançado por Helena de Lima em abril de 1951. Como muitos outros clássicos da música popular, “Adeus Maria Fulô” nasceu por acaso, fruto de uma brincadeira entre seus criadores. O episódio está narrado por Ricardo Cravo Albin no livro “Cancioneiro Humberto Teixeira: biografia” (Jobim Music, 2006), e, com pequenas variações, em “Sivuca e a música do Recife” (Publikimagem, 2010), escrito por Flavia Barreto, filha do compositor e sanfoneiro, em parceria com o jornalista, pesquisador e produtor Fernando Gasparini.
Os autores contam que, numa de suas vindas ao Rio de Janeiro, Sivuca foi assistir à apresentação da recém-nomeada Rainha do Baião, a carioca Carmélia Alves, e de seu marido, o cantor e produtor Jimmy Lester – pseudônimo de José Andrade Vilela Nascimento Ramos, paulista de Franca –, na boate Midnight, do Copacabana Palace.
Sivuca, Carmélia e Lester saíram dali no Jaguar conversível de Humberto Teixeira, que o dirigiu até o Arpoador. Lá, o dono do carro fez o desafio: “Ó, seu Sivuca, vamos lá, seu cabra. Me dê um mote pr’uma música”. O sanfoneiro, empunhando o instrumento, deu um acorde e mandou bala no canto: “Adeus, Maria Fulô!...”. Humberto gostou e provocou: “Boa, Sivuca, continua!”. O outro então foi em frente: “Marmeleiro amarelou...”. Teixeira emendou: “Adeus, Maria Fulô, olho d’água estorricou...”. No dia seguinte, às 10 da manhã, estavam no estúdio para registrar a obra-prima, com a habitual interpretação impecável de Carmélia, mais Jimmy Lester no complemento vocal e Sivuca na sanfona arrebatadora.
Foi, como registram Flavia Barreto e Fernando Gasparini, “a primeira composição de Sivuca a alcançar sucesso nacional”. Esta mesma gravação seria relançada em 1953 pela Continental, desta vez como lado B do baião “Ajuda teu irmão”, de Humberto Teixeira, onde Carmélia Alves e o Trio Melodia apelavam por um auxílio aos nordestinos, que enfrentaram neste ano uma de suas mais terríveis estiagens.
O Rei do Baião em pessoa, Luiz Gonzaga, na revista “Radiolândia” de 27/11/1954, apontou “Adeus Maria Fulô” como uma das suas cinco gravações preferidas. A composição ganhou o Brasil e o mundo, recebendo mais de 20 releituras em LPs e CDs, como a de Miriam Makeba – em português! – no disco “Pata pata”, de 1967, e a curiosíssima versão mostrada em 1968 pelos Mutantes num compacto simples e no seu álbum de estreia, “Os Mutantes”.
Os mestres Sivuca e Humberto Teixeira iriam juntar seus talentos numa terceira e última composição, lançada no LP “As vozes e o ritmo do Trio Irakitan” (1958): o triste baião “Fogo pagô”, novamente em cima do tema tão doloroso da seca.
Fotos: Sivuca (por autor desconhecido) e Carmélia Alves (por Henry Kegahl) / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS