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    ‘Ministério da Economia’: há 70 anos, o frustrado projeto de lei que acabou em samba...

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “Foi aprovado em tese, devendo ser melhor examinado posteriormente, o projeto que institui o Ministério da Economia. A proposição, que teve como relator o sr. Israel Pinheiro, irá a plenário para receber emendas, retornando à Comissão [de Finanças da Câmara dos Deputados]”.

     

    O “Correio da Manhã” de 17/01/1951 publicou a notícia exatos 14 dias antes de Getúlio Vargas assumir pela segunda vez a presidência – agora através do voto popular, e não de um golpe de estado, como ocorrera em 1930. O projeto de lei não era novidade: havia sido apresentado em 1947 ao então presidente Eurico Gaspar Dutra pelo próprio deputado Israel Pinheiro.

     

    “Pretende-se criar o Ministério da Economia possivelmente em 1950, de forma que em 1951, com o novo Governo, esteja em pleno funcionamento”, destacava “A Noite” de 08/11/1949. A edição de 25/01/1950 de “O Jornal” trazia, em suas primeira e quarta páginas, a íntegra do texto redigido por Israel Pinheiro, cogitado para ser o primeiro ocupante da nova cadeira. Nesta época, o órgão que cuidava da formulação e da execução da política econômica, da administração fazendária (relativa ao Tesouro Nacional) da União e das questões fiscais era o Ministério da Fazenda, surgido em 1808 com o nome de Erário Régio ou Real Erário.

     

    Segundo o pesquisador e colecionador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, no livro “A história cantada no Brasil em 78 rotações” (Fortaleza: Edições UFC, 2012), a criação do novo ministério “foi recebida de formas diferentes pela população. Enquanto uns achavam boa a medida, outros a criticavam”. Não se pode afirmar de qual lado exatamente estava Geraldo Pereira: na biografia “Um escurinho direitinho” (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995), os autores Luís Fernando Vieira, Luís Pimentel e Suetônio Valença declaram: “Geraldo fez o samba para ‘agradecer’ a criação do Ministério que poderia, de alguma maneira, amenizar o sofrimento da classe da qual viera e à qual estava ligado”.

     

    Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no primeiro volume de “A canção no tempo” (São Paulo: Editora 34, 1997), defendem que ele, através do seu samba, transmitia “sua aprovação à criação de um ministério para conter o custo de vida”. Já Franklin Martins, no volume I de “Quem foi que inventou o Brasil?” (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015), é taxativo: “Com bom humor, Geraldo Pereira ironizou a proposta da nova pasta”.

     

    O apoio – ou a zombaria – de Geraldo Pereira manifestou-se através de “Ministério da Economia”, samba lançado pela gravadora Sinter em agosto de 1951, há exatos 70 anos. O mineiro Geraldo dividiu a autoria com o carioca Arnaldo Passos, seu parceiro constante desde 1948. Em depoimento a Luís Fernando Vieira, reproduzido pela Rádio Batuta no capítulo 8 do documentário “Eu também tô aí – Os 100 anos de Geraldo Pereira” (2018), o cantor e radialista Waldir Machado recorda que Arnaldo Passos, figura querida por quem o conheceu, o “parceiro predileto de Geraldo”, era na verdade o responsável pela caitituagem, ou seja, por fazer a peregrinação pelas estações de rádio para garantir a execução das composições.


     


    A música foi recomendada por Abelardo “Chacrinha” Barbosa em sua seção “Chacrinha musical” da “Revista do Rádio” de 11/09/1951. Curiosidade: no lado A do 78 rotações, também com interpretação de Geraldo Pereira, estava “Domingo infeliz”, samba de autoria de Arnaldo Passos e... do próprio Chacrinha. Que não teve, segundo os autores de “Um escurinho direitinho”, nenhuma participação na sua criação, como o próprio comunicador confessaria anos mais tarde ao filho de Geraldo, Celso Salustiano. Seu verdadeiro autor seria mesmo Geraldo Pereira, que promoveu Chacrinha – sem o conhecimento deste – a parceiro de Arnaldo.

     

    “Ministério da Economia”, o lado B do disco, recebeu uma crítica positiva na coluna de música popular do “Correio da Manhã” de 07/10/1951: “(...) é um samba simples e sem pretensões. E talvez resida nesta simplicidade o fator do seu sucesso, apesar do [sic] ministério da economia não ter se tornado realidade. A interpretação, aliás muito boa, está a cargo de Geraldo Pereira, um novato que pode ter futuro. Enfim, um samba como tantos outros, mas que agrada”.

     

    Crítica positiva, mas vale a observação: com 60 composições gravadas desde 1939 até aquele momento, entre elas futuros clássicos da nossa música popular, como “Acertei no milhar”, “Lembras-te daquela zinha?”, “Você está sumindo”, “Falsa baiana”, “Sem compromisso”, “Bolinha de papel”, “Pisei num despacho”, “Chegou a bonitona”, “Que samba bom”, “Pedro do Pedregulho”, tendo ele mesmo atuado como cantor em 6 discos (12 fonogramas) entre 1945 e 1951 (colocaria sua ótima voz em mais 18 faixas – 9 discos – até seu falecimento em 1955, com apenas 37 anos), o sambista negro, malandro, motorista de caminhão de lixo, aos 33, era tratado pelo anônimo autor do texto como um “novato que pode ter futuro”...

     

    O jornal “A Noite” de 05/09/1951 publicou a letra do samba, “um dos grandes sucessos da Sinter”. Nas edições de 4, 11 e 18 de novembro e 9 de dezembro, o “Correio da Manhã” apresentava o disco como um dos dez mais executados e vendidos em cada uma daquelas semanas, contrariando algumas fontes que o consideram um fracasso comercial. No fascículo da série “História da Música Popular Brasileira” (Abril Cultural, 1982) dedicado a Geraldo Pereira, pode-se ler, sobre a gravação original: “Talvez por absoluta falta de divulgação, este registro sequer chegou a ser notado na época, acreditando-se que só tenha vendido uns duzentos exemplares, entre Rio e São Paulo”. Afirmação que contrasta com a da coluna do Chacrinha na “Revista do Rádio” de 09/10/1951, onde se lê que o próprio Geraldo Pereira estaria “satisfeito com a vendagem do seu último disco: ‘Ministério da Economia’ e ‘Domingo infeliz’”.

     

    Certo é que, mesmo não tendo passado tão despercebido no ano do seu lançamento, nas décadas subsequentes o samba praticamente caiu no esquecimento. Ou quase, como atesta a nota publicada por Tárik de Souza no “Caderno B” do “Jornal do Brasil” de 21/04/1975: “Leci Brandão terá que escolher outra faixa para seu LP de estreia. ‘Ministério da Economia’, composta por Geraldo Pereira na época de Getúlio Vargas, foi proibida pela Censura” – vivia-se então a ditadura do presidente Geisel. A reabilitação do samba se deu apenas em 1980, em LP da série “Evocação”, do Estúdio Eldorado, cujo volume 5, dedicado a Geraldo Pereira, trazia a música na possante voz do portelense Monarco (ouça aqui), sendo finalmente alçada ao status de clássico do repertório do compositor mangueirense.

     

    O governo Vargas não conseguiu emplacar o novo ministério, mas, como lembra Franklin Martins, “Getúlio deu algum tipo de satisfação ao clamor popular contra a carestia criando a Cofap (Comissão Federal de Abastecimento e Preços), vinculada ao Ministério do Trabalho. No papel, ela tinha poderes para combater a especulação. Na prática, porém, o problema não era tão simples que pudesse ser resolvido com questões administrativas”. A discussão sobre o surgimento da nova pasta continuou pautando o noticiário político por décadas. Em 1990, criou-se um Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, que voltou a ser só da Fazenda em 1992.

     

    Foi apenas em janeiro de 2019 que o Ministério da Economia saiu finalmente do papel e tornou-se realidade (pelas mãos de um governo que, em contrapartida, extinguiu pastas essenciais como Trabalho, Cultura, Esportes e Desenvolvimento Social). A julgar pela pífia atuação do titular do cargo, pode-se aferir que mestre Geraldo Pereira não tinha a mínima vocação para profeta, ou era de fato um gozador: até agora, mais de dois anos e meio após a criação do órgão, nada ficou barato – muito pelo contrário: palavras como “inflação” e “carestia” voltaram ao vocabulário cotidiano –, o pobre continua sem ter o que comer, a “nega bacana” ainda precisa “meter os peitos na cozinha da madame em Copacabana” pra não morrer de fome e os gatos (e também o povo brasileiro?) continuam sem motivos para dar gargalhadas de alegria lá no morro...

     

    Foto: Geraldo Pereira / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

     


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