Em 1902, quando a revolucionária indústria do disco ainda engatinhava no Brasil, a fábrica Zon-O-Phone lançou, na voz do cantor Bahiano, o lundu “Isto é bom”, de Xisto Bahia, gravado pela Casa Edison do Rio de Janeiro e consagrado como o disco pioneiro em nosso país. Mas esta não foi a primeira música nacional captada pela nova (por aqui) tecnologia. No ano anterior, mais precisamente em março de 1901, fez-se em terra estrangeira o registro inaugural de uma música brasileira em disco. Nada mais apropriado do que lembrar desta efeméride às vésperas do Sete de Setembro – data outrora festiva e solene, hoje utilizada para fins político-eleitoreiros –, já que a referida gravação tem como protagonista um dos símbolos oficiais da pátria, ao lado da bandeira, dos brasões e do selo: o “Hino nacional brasileiro”, lançado num raríssimo exemplar do selo E. Berliner’s Gramophone descoberto pelo pesquisador, colecionador e escritor José Ramos Tinhorão, que nos deixou há exatamente um mês, em 3 de agosto passado, aos 93 anos.
Para se entender a importância desta preciosidade, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 1877, Thomas Edison inventou o fonógrafo, primeiro aparelho capaz de gravar sons – armazenados em um cilindro giratório – e também reproduzi-los. O cilindro, espécie de antepassado do disco, foi a primeira mídia sonora do mundo. Mas o concebido por Edison era fixo no aparelho. Em 1885, Chichester Bell e Charles Tainter passaram a fabricar o cilindro removível, dando um passo à frente na indústria fonográfica. Que foi novamente revolucionada com a invenção, pelo alemão radicado nos Estados Unidos Emil Berliner, do gramofone e dos discos de goma-laca, em 1887. As criações de Berliner, comercializadas nos EUA a partir de 1895, acabariam por tomar conta do mercado completamente.
O Brasil não fazia parte deste mercado, pois em 1897 ainda se iniciavam as gravações comerciais de cilindros em nossa terra, com os cantores Cadete e Bahiano e a Banda do Corpo de Bombeiros dirigida por Anacleto de Medeiros. Os catálogos publicados aqui entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX registram um número estratosférico deste tipo de mídia comercializado no país, tanto de gravações nacionais quanto de estrangeiras. “O cilindro permaneceu presente, com produção significativa, por toda a primeira década do Século XX e boa parte da segunda”, afirma Humberto Franceschi em “A Casa Edison e seu tempo” (Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002).
O gramofone, a já mencionada invenção de Emil Berliner, chegou ao Brasil em 1900. Segundo Franceschi, no livro acima citado, Frederico Figner – fundador, no mesmo ano, da Casa Edison – “já percebera que ele tocava mais alto que os cilindros, daí passou a importar os aparelhos e discos gravados na Europa e nos Estados Unidos. Vendia tudo que chegava, especialmente as gravações de bandas militares e de árias de ópera”. Dois anos depois, através da Casa Edison, o Brasil começaria a produzir os seus próprios discos, de 76 e 78 rotações por minuto (76 e 78 rpm).
Foi exatamente uma banda militar que teve a primazia de registrar pela primeira vez em disco uma música brasileira, antes mesmo de a indústria das bolachinhas se estabelecer por aqui. Como informa Tinhorão em “Os sons que vêm da rua” (São Paulo: Editora 34, 2013, 3ª ed.), Emil Berliner “inaugurou em inícios de 1900 a era da música de consumo internacional, encarregando algumas das melhores bandas europeias (...) de gravarem desde hinos nacionais, valsas vienenses e trechos de ópera, até gêneros populares de seus e de outros países”. O “Hino nacional brasileiro” havia sido composto por Francisco Manuel da Silva em 1831 e, apesar de algumas tentativas, ainda não tinha recebido sua letra definitiva, que só viria em 1909, através da pena de Joaquim Osório Duque-Estrada.
Assim sendo, no dia 4 de março de 1901 (a data encontra-se grafada no selo), a Municipal Military Band, de Londres, executou para a gravadora de Emil Berliner a versão instrumental de nosso hino pátrio. Por que a opção por esta música? De acordo com Tinhorão, no livro anteriormente citado: “O mais provável, num tempo em que não existia produção musical organizada para o consumo, é que todas as bandas europeias tenham procurado enriquecer seus repertórios com a importação de partituras estrangeiras, a fim de enfrentar as exigências novas de um número cada vez maior de gêneros de dança, reclamados para atender ao gosto de emergentes camadas da classe média urbana deslumbradas com as possibilidades de lazer”.
Outras duas músicas nacionais tiveram o mesmo destino neste período, informa Tinhorão: “(...) após gravar com a Banda Militar Municipal de Londres, em 4 de março de 1901, o Hino Nacional brasileiro (disco 145-X), a E. Berliner’s Gramophone lançou, quase certamente em 1902 (pois a partir da série 40.000 deixou de registrar as datas no selo), pelo menos duas músicas brasileiras com a Banda do 3º Regimento de Guardas de Berlim: o maxixe ‘Fandanguaçu’ e o tango ‘O bico do papagaio’”. Segundo o pesquisador, estes são “seguramente os mais raros da discografia envolvendo gravação de música brasileira no exterior”: três discos pequenos, com 18 centímetros de diâmetro, cerca de 7 polegadas, que hoje pertencem ao acervo do próprio José Ramos Tinhorão, preservado pelo Instituto Moreira Salles.
Como se vê nos rótulos, as grafias das músicas, prensadas em alto relevo, saíram bem diferentes dos seus nomes originais: “Fandanguaçu” (cuja autoria é atribuída tanto a Leopoldo Silva quanto a Salvador Fábregas) se tornou “Fandanguassa A. Demoraticos [sic]” – alusão ao lendário Clube dos Democráticos carioca, onde a composição fazia bastante sucesso – e “O bico do papagaio”, de Abdon Milanez, virou “O rico do papagaio”. Erros naturalmente explicáveis, segundo Tinhorão, “pelo fato de o operário alemão encarregado de montar as letras tipográficas com os nomes a serem impressos não saber português, compondo as palavras a partir do original manuscrito por alguém que provavelmente também não conhecia a língua”.
Grande escavador e “fuçador” de tesouros que são testemunhas do nascimento da nossa música popular, o pesquisador afirma em seu livro desconhecer a existência de outros exemplares destas três raridades no Brasil, adquiridas por ele quando... Bom, melhor do que ler sobre a história é ouvi-la na própria voz do nosso eterno Tinhorão, que deixou para a posteridade uma série de depoimentos filmados na sede carioca do Instituto Moreira Salles em 26 e 27 de março de 2013 e disponibilizados no YouTube (sua narrativa começa aqui e termina aqui).
Foto: José Ramos Tinhorão na exposição que comemorou a vinda de seu acervo para o IMS-RJ, em abril/2010 (por Fernando Krieger)
POST SCRIPTUM
Após a publicação do artigo acima, recebemos uma valiosa contribuição da professora e pesquisadora Martha Tupinambá de Ulhôa, da Uni-Rio. Por e-mail, ela nos informou que o criador da melodia de “Fandanguaçu” seria Leopoldo Silva (também identificado como Tavares da Silva por algumas fontes e presente em nosso acervo com “O verdadeiro Fandanguassu”, de melodia idêntica à composição em questão), e não Salvador Fábregas, como aparece em quatro registros de nosso banco de dados. O filho deste, Augusto Fábregas, que também utilizava o pseudônimo César Falmouthier e era ligado ao Clube dos Democráticos, seria o autor da letra do maxixe.
Em três dos rótulos das gravações de “Fandanguaçu” não há indicação de autoria. Segundo nos contou Nirez, talvez a informação esteja no único exemplar que não temos em nossas coleções, o disco Victor R 98712, de face única, gravado por Olímpio Nogueira e lançado em 1907. Nirez, co-autor dos cinco volumes da “Discografia brasileira 78 rpm” (Edição Funarte, 1982), disse que não teve acesso a esse disco e que a anotação sobre a autoria provavelmente foi feita por Grácio Barbalho ou Alcino Santos, também autores do trabalho e já falecidos.
Fica o importante registro feito pela professora Martha Ulhôa (que traz como referências “O Tempo” nº 509, 19/10/1892, pág. 2 [ver nota “Recreio dramático”], e o livro “Cantares brasileiros: cancioneiro fluminense”, de Mello Moraes Filho – São Paulo: Instituto Estadual do Livro, 1982, pág. 331) e a nossa esperança de encontrarmos um exemplar do referido disco Victor, para podermos chegar a uma conclusão sobre o nome do verdadeiro autor de “Fandanguaçu”.