Acertou o redator do Jornal do Commercio do Amazonas em 28/05/1949 quando escreveu que Déo era “um dos grandes cartazes cariocas, (...) indiscutivelmente um nome conhecido, possuidor de uma voz personalíssima que o iguala entre os grandes nomes do rádio, como sejam Francisco Alves, Carlos Galhardo, Nilo Sérgio, Orlando Silva e muitos outros”. Nenhum exagero: o cantor, cujo desaparecimento completa 50 anos neste 23 de setembro, estava realmente no mesmo nível de seus colegas. Artista dos mais queridos pelos fãs, sempre vestido com muito estilo, era também um gozador, desses que não perdiam a piada. Lançador de sucessos, campeão de popularidade e protagonista de histórias que entraram para o anedotário da nossa MPB, é injustificável que hoje esteja quase esquecido.
O vozeirão que ecoou pelas ondas das Tupis paulista e carioca, da Record de São Paulo, da Mayrink Veiga e da lendária Nacional, ambas do Rio, começou a ser lapidado ainda jovem, quando interpretava hinos sacros no colégio de padres onde estudava na terra da garoa. Em 1931, aos 17 anos, cantava sambas e tangos argentinos. Com 18, já se apresentava ao microfone da Rádio Cruzeiro do Sul, transferindo-se um ano depois para a Record, onde também atuou como discotecário e programador. Ali, em concurso popular promovido pelo apresentador Celso Guimarães, ele virou simplesmente Déo, pois seu nome de batismo, Ferjalla Rizkalla – que remetia à sua ascendência libanesa –, não combinava com o de um artista da música popular.
Embora tenha começado a carreira em São Paulo, Déo nasceu mesmo no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no bairro do Catete, em 1914 (algumas fontes cravam dia 10 de janeiro, embora o próprio cantor, em diversas entrevistas, sempre apontasse 26 de janeiro como a data correta). Morou na cidade natal até se transferir, ainda pequeno, para São Paulo com a família. Em 1940, por intermédio de Ary Barroso, voltou para a Cidade Maravilhosa como contratado da Tupi. Nos anos 1950, tornou-se diretor artístico do selo Rádio.
Estreou na indústria fonográfica em março de 1936, aos 22 anos, com o samba-choro “Cantando”, de João Pacífico, e o samba-canção “Vendedora de flores”, de Ari Machado, ambos no disco 8185 da gravadora Columbia – passaria também pelos selos Victor, Odeon, Sinter, Continental e Todamérica, deixando registradas, entre 1936 e 1956, mais de 250 canções em 78 rotações, além de um LP de 10 polegadas, “Mudou pra melhor”, de 1957, com quatro releituras e quatro inéditas.
Mesmo com 30 músicas gravadas entre 1936 e 1938, dezoito delas tendo Francisco Malfitano como um dos autores – dele e de Aloísio Silva Pinto é o ótimo samba “Sinto lágrimas” –, Déo declarou em diversas oportunidades que havia debutado em disco somente com “A casta Suzana” – clássica marcha de Ary Barroso e Alcyr Pires Vermelho, apresentada ao público em janeiro de 1939 –, um dos primeiros êxitos de sua carreira, que lhe valeram a denominação de O Ditador de Sucessos.
E foram muitos os que ele teve a primazia de lançar em nossa música popular: “Brasil, usina do mundo” (de Alcyr e João de Barro), “Bandeira de minha terra” (de João de Barro e Alberto Ribeiro), “Não é economia (Alô padeiro)” e “...E o 56 não veio” (ambos de Wilson Batista e Haroldo Lobo), “Pra machucar meu coração” (imortal criação de Ary Barroso), “Cochichando” (choro de Pixinguinha, com letra de João de Barro e Alberto Ribeiro), “Frevo número um” (o famosíssimo hino do Clube Vassourinhas, do Recife, em adaptação feita por Almirante, gravado em duo com Castro Barbosa), “Nervos de aço” (samba imortal de Lupicínio Rodrigues, considerado pelo próprio Déo como o seu maior sucesso como intérprete), entre muitos outros, sem esquecer o imbatível “Piano alemão” – versão de Júlio Nagib para “Wir, wir, wir haben ein Klavier”, fox de Jupp Schmitz –, cuja vendagem teria rendido bons lucros ao cantor.
Sua vida financeira, aliás, era motivo de muita especulação. Sempre vestido com ternos elegantes, passava a imagem de alguém bem-sucedido em termos monetários. Rumores o consideravam milionário e dono de vários imóveis em São Paulo e no Rio. Falava-se numa herança que ele havia recebido – Déo não negava a informação, mas dizia não ter recebido tanto dinheiro assim, que tudo o que possuía era fruto de seu trabalho. Tinha fama de ser bem comedido com os gastos – um avarento, diriam as más línguas. Segundo o Diário Carioca de 24/12/1960, ele possuía um caderninho “para controlar as próprias despesas e não fazer gastos extraordinários”.
A turma da imprensa da época não perdoava – sempre em tom de brincadeira, claro – o suposto apego do cantor pelo “vil metal”. Ricardo Galeno, no Diário Carioca de 02/02/1955, soltou uma notinha: “Déo, o ‘ditador de sucessos’, pagou ontem uma rodada de café. Salve!”. Seguindo o mote, A. Cerino, em A Noite de 07/12/1957, fez blague: “O cantor Déo é um rubro-negro cem por cento. E uma prova de seu fanatismo é esta: se o Mengo vencer vai pagar uma rodada de cafezinhos para os seus colegas da Rádio Nacional”. A Candinha também não deixava por menos: na Revista do Rádio de 05/10/1963, comentou que um certo artista com fama de “mão fechada” seria “pior do que o cantor Déo: não paga nem cafezinho. (O Déo pelo menos paga cafezinho)”, arrematava.
Na mesma linha de humor, o cronista I. Picilone, em A Noite de 22/06/1957, comentando sobre um convite que recebera da cantora Mara Silva, fez graça: “Pici ficou todo contente! Parecia até o cantor Déo quando é dia de pagamento!”. Ainda I. Picilone, na coluna do dia 06/07/1958, afirmava que Déo era “mais econômico do que a Caixa Econômica”. Questionado por Edel Ney, na Radiolândia de 12/05/1956, sobre o conceito “largamente divulgado” de que “ele não paga nem visita”, Déo soltou “uma de suas gostosas, sonoras e conhecidas gargalhadas” e se defendeu: “Só têm essa opinião aqueles que não me conhecem de perto. Assim sendo, aceitam-na. Tenho certeza que, quem se der ao trabalho de sondar com meus amigos íntimos, tirará uma conclusão diferente. É puro ‘piche’!”.
Déo certamente não se chateava com nada disso, sendo ele mesmo um dos grandes “pichadores” do rádio – um dos traços mais marcantes de sua personalidade divertida e expansiva. Quem explica o sentido da gíria, bastante popular naqueles dias, é Nestor de Holanda, na sua coluna “Telhado de vidro” do jornal A Noite de 16/09/1955: “Pichar, que, em bom português, é brasileirismo, e quer dizer ‘aplicar piche em; untar com piche’, na linguagem radiofônica significa ‘falar mal dos outros, ocupar-se da vida alheia com maneiras e expressões como as que Déo emprega (...). Déo é, assim, o mais venenoso dos pichadores radiofônicos”. Mesma opinião de Alberto Rego, que no Diário Carioca de 19/10/1952 já havia afirmado que Déo era “considerado como o homem mais venenoso do rádio”, autor de piadas que “encabulam qualquer mortal”.
É impossível distinguir as verdades das lendas no incrível anedotário publicado sobre Déo na mídia impressa da época. Até porque algumas histórias eram escritas por gozadores notórios, como Stanislaw Ponte Preta (alter ego de Sergio Porto). Na Manchete de 03/03/1956, comentando sobre o sucesso do “disco dos cachorros” – explicando que os animais, “através de latidos combinados, cantam melodias como ‘Oh Suzanna’, ‘Jingle bells’ e outras” –, o cronista jurava que “Déo chegou a ventilar a hipótese de, caso Haroldo Barbosa faça a versão do disco, vir o mesmo a ser gravado pelo Jorge Veiga”. Segundo Stanislaw, o Caricaturista do Samba, “longe de se incomodar com a brincadeira, passou a chamar o Déo de Perón, ou seja, ‘ex-ditador de sucessos’”. Era assim o ambiente radiofônico da época: muito profissionalismo, mas também muita descontração.
O compositor René Bittencourt, na sua seção “Feira de amostras” da Revista do Rádio, adorava pegar no pé do cantor, brincando especialmente com sua fama de pão-duro: “Você sabia... que o nome do cantor Déo foi tirado do seu próprio nome? D, de Ferjala [sic]; E, de Riscala [sic] e O, de ordenado que ele pedia sempre para ser aumentado...”. Em outra ocasião, Bittencourt contou que, após uma refeição no restaurante da Nacional, Déo virou-se para Pinguim, o garçom, e disse ter perdido uma nota de 5 cruzeiros, recomendando que a mesma fosse devolvida a ele se encontrada. Pinguim, meio chateado, respondera: “Tá bem, seu Déo... E se eu não achar?”. Resposta do cantor: “Bem, nesse caso, pode guardá-la para você...”. Mais uma: para evitar aglomeração de artistas em seu guichê nos dias de pagamento, a Tupi anunciou que passaria a fazê-lo “por letra”. Ao que Déo teria retrucado: “Não! Por letra, neca! Se o pagamento for feito por letra, eu e o Ary [Barroso], que só temos três letras no nome, vamos ganhar menos que o Onéssimo [Gomes]!”. Então a Tupi teria substituído o termo “por letra” por “ordem alfabética”...
O Déo “pichador” podia mesmo ser ferino. Um dia ele escutou, na Tupi, dois empresários – que, segundo René Bittencourt, costumavam “trazer ao Brasil ‘abacaxis’ de toda espécie” – marcando uma mesa-redonda para tratar de assuntos de interesse da classe; puxando o colega pelo braço, não perdoou: “Olha só, René, como é que pode?”. “O que é, Déo?”. Resposta: “Como é que pode: ‘bestas quadradas’ numa ‘mesa-redonda’...”. De René Bittencourt, Déo gravou “Se razão fosse água” e “Um amigo e uma mulher”, esta feita em parceria com Francisco Alves – uma das derradeiras composições de Chico, lançada em setembro de 1952, no mesmo mês em que um acidente automobilístico calou para sempre o Rei da Voz.
A história mais inacreditável talvez seja a que foi publicada na Revista do Rádio de 13/06/1950: Déo saindo correndo atrás de um avião! Foi no Paraná, durante uma Brigada da Alegria, caravana de artistas que, partindo das capitais carioca e paulista, percorria cidades de outros estados para aproximar os ídolos do rádio de seus fãs. Certa feita, após a refeição, o comandante do avião disse a Edgard de Carvalho, locutor que fazia a apresentação dos astros e estrelas após os almoços ou jantares, que precisavam partir logo, pois o tempo estava virando. Mas Déo, contando com o discurso do locutor e desconhecendo o pedido do piloto, assim que terminou de comer foi dar uma volta. Ao longe, escutou os motores do aeroplano, pensando que estivessem apenas aquecendo o óleo. Quando enfim dirigiu-se ao embarque, o veículo já corria pela pista. Déo não teve dúvidas: foi atrás, desesperado! Em vão, pois a aeronave decolou. Só voltou para buscá-lo, um tempo depois, porque seu companheiro de poltrona, Jorge Veiga, percebeu a sua ausência no voo!
Anedotas – verídicas ou não – à parte, Déo foi um dos mais populares e disputados cantores de sua época. Um grande vendedor de discos, como atesta a reportagem publicada na Carioca de 22/08/1942 com o editor Vicente Mangione, distribuidor da Columbia no Rio de Janeiro. Mangione contou que, dos artistas então ligados à gravadora, os que mais vendiam naquele momento eram os Anjos do Inferno e, na segunda colocação, Déo, que neste mesmo ano participou de um dos primeiros filmes da Atlântida, o média-metragem “Astros em revista”, dirigido por José Carlos Burle.
Uma das suas maiores consagrações populares deu-se em outubro de 1954, quando lançou o samba “Viva a Penha”, de Assis Valente e Josvaldo Dantas, no espetáculo homônimo comandado por Assis na famosa Festa da Penha, no Rio. Jornais da época (como A Noite de 1º/11/1954 e A Cigarra de dezembro de 1954) destacaram o sucesso absoluto da interpretação do cantor, acompanhado pelas vozes da multidão incalculável que participava do evento (folhetos com a letra da música haviam sido distribuídos aos presentes). Curiosamente, o registro do samba em disco não foi feito por Déo, e sim por Luiz Vieira, lançado em outubro de 1955.
Entusiasta do long-playing – “Sou contra o 78, que é um disco do passado. Prefiro o 45 rpm e o LP”, declarou à Revista do Disco de outubro de 1957 –, Déo possui em sua discografia apenas um de longa duração, o já citado 10 polegadas “Mudou pra melhor”, gravado em 1956 e lançado no ano seguinte. Nesse período, começava a se afastar dos microfones para se dedicar à atividade de diretor artístico. No final dos anos 1960, voltou a trabalhar na Tupi. Roberto Reis, no jornal A Luta Democrática de 03 e 04/10/1971, escreveu sobre o encontro que teve com Déo no dia 22 de setembro deste ano nas dependências da emissora e do entusiasmo dele com o “trabalho que estava sendo realizado ali”, o “ressurgimento de uma verdadeira estação de rádio”.
No mesmo dia 22 de setembro, O Jornal informava que, após Déo gravar músicas de Haroldo Lobo num “disco especial” – as releituras de “Alô padeiro” e “...E o 56 não veio”, que acabariam sendo seus dois últimos registros como intérprete, feitos no dia 11 daquele mês para o fascículo 42 da série "História da Música Popular Brasileira", da Abril Cultural –, a RCA tinha planos de fazer com ele um long-playing “com sucessos de ontem e de hoje”, finalizando: “Não é preciso dizer que Déo está feliz da vida!”. Mas não deu tempo: ele partiu no dia seguinte, em sua residência na Tijuca, aos 57 anos, vitimado por um infarto e um edema pulmonar. No dia 25/09/1971, Paulo Barboza, em curtíssima nota no Segundo Caderno de O Jornal, fez uma singela e certeira homenagem: “Desapareceu o ‘Ditador de Sucessos’ – Déo! Era alegre, gozador e querido por todos... Ontem foi sucesso... Hoje é saudade! Adeus amigo!”.
Das centenas de músicas deixadas por Déo, selecionamos 22 registros que mostram por que o cantor foi – e sempre deve ser lembrado como – um dos grandes intérpretes de nossa música popular. Entre os fonogramas estão, juntamente com as composições já mencionadas, “Luar de Paquetá” – em dupla com Dircinha Batista –, “Terra seca” (que ele dizia ser sua melodia favorita), “Sinfonia do café” (apontada por ele como a sua gravação preferida), “Tambaú” (exaltação à famosa praia paraibana), “Vida da minha vida” (clássico de Ataulfo Alves) e “Meu sublime torrão” (considerado o hino não oficial de João Pessoa, capital da Paraíba), além de “Súplica”, sua única investida como autor musical – conhecida como “a valsa que não tem rima” –, lançada em 1940 por Orlando Silva.
Foto autografada por Déo com dedicatória para Vassourinha, “o falado do samba” (São Paulo, 04/06/1936) / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS