Era uma vez a música popular brasileira. Não a de sempre, que surge no comecinho do século 20, com os primeiros discos, depois se populariza na era do rádio, embala boates no samba-canção, sobe para os apartamentos com a bossa nova e depois ganha as emissoras de TV com a Jovem Guarda e os festivais da canção – que por sua vez deságuam na tal MPB, nome vago que denomina tudo que veio depois da década de 1960.
Para o jornalista, pesquisador e produtor musical Rodrigo Faour, a história não é tão ligeira nem esquemática, como tem mostrado nos programas de seu canal no YouTube (“Rodrigo Faour Oficial”) e já contou no rádio e na TV. Agora, é a vez de esmiuçar essa trajetória em seu novo livro, “História da música popular brasileira: sem preconceitos (Vol. 1) - Dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970”, lançado pela Editora Record.
Com um total de 574 páginas (fora as 64 do encarte colorido de fotos), trata-se do título de maior fôlego de sua obra literária, inaugurada há duas décadas com “Bastidores: Cauby Peixoto – 50 anos da voz e do mito”, editado também pela Record, em 2001. De lá pra cá, escreveu outras biografias (Claudette Soares, Dolores Duran e Angela Maria), visitou os bastidores da era do rádio (“Revista do Rádio: cultura, fuxicos e moral nos anos dourados”) e enlaçou música e comportamento na “História sexual da MPB: a evolução do amor e do sexo na canção brasileira”, livrão de 2006.
Pois é na mesma contramão do preconceito que, quinze anos depois, Rodrigo Faour chega ao novo livro, juntando aos cânones da música brasileira nomes tradicionalmente deixados à sombra em outras obras de referência sobre o tema. Sejam divas rivais da consagrada Araci Cortes (como Pepa Delgado e Rosa Negra), maestros negros que fizeram história (como Erlon Chaves e Abigail Moura e sua Orquestra Afro-Brasileira), líderes de conjuntos de dança (como Zaccarias, Poly, Ed Lincoln e outros) e gêneros musicais geralmente jogados para escanteio (como a dance music de Mister Sam e o carimbó de Pinduca). Além, claro, de artistas da música brega-romântica, como Odair José, Waldick Soriano e Perla.
“Todos os personagens citados nesta obra tiveram alguma relevância a seu tempo e por isso merecem lugar na história”, argumenta Faour no texto de introdução ao livro, que terá o volume 2 – da década de 70 aos tempos atuais – lançado no ano que vem. “Se são músicas boas ou más, mais ou menos ‘originais’, ‘brasileiras’, ‘comerciais’, ‘artísticas’, ‘elaboradas’, ‘divertidas’ ou ‘emocionantes’, isso depende exclusivamente do gosto de cada um, independentemente da visão, muitas vezes até pertinente, da crítica.”
Pedimos a Rodrigo Faour que fizesse uma playlist no site da Discografia Brasileira inspirada neste primeiro volume de sua “História da música popular brasileira”. Em resposta, ele mandou não só a relação, como comentários que contextualizam cada uma de suas escolhas. “Tentei dar um painel representativo de ritmos, gêneros, autores e intérpretes – nem sempre os mais lembrados”, argumenta o escritor, que das 63.324 músicas de nosso acervo escolheu as 16 listadas a seguir.
1) Vai entrando (autor desconhecido), com Bahiano (1903, regravado em 1912) – Cançoneta de duplo sentido, típica das peças de teatro de revista da época, gravada por nosso cantor mais expressivo da época da Casa Edison e da gravação mecânica que foi de 1902 a 1927.
2) Passarinho do má (Duque), com Francisco Alves (1927) – Samba amaxixado, primeira gravação eletromagnética (com microfone), satirizando o presidente Arthur Bernardes, considerado de mau agouro, gravada por nosso cantor mais importante da primeira metade do século XX e composta pelo dentista dublê de compositor e dançarino Duque, que popularizou o maxixe na Europa.
3) Tem francesa no morro (Assis Valente), com Araci Côrtes (1932) – Samba afrancesado com nossa primeira cantora popular a gravar regularmente, Aracy Côrtes, oriunda do teatro de revista, sendo uma das lançadoras do compositor baiano Assis Valente, um dos preferidos de Carmen Miranda, que a sucedeu no pódio das melhores da Era de Ouro.
4) Filosofia (Noel Rosa e André Filho), com Mario Reis (1933) – Samba com letra de crítica social, sarcástica, típica da verve de Noel Rosa, numa parceria com o autor de “Cidade Maravilhosa”, gravado por nosso estilista do canto popular brasileiro, Mario Reis.
5) Meu destino (José Maria de Abreu e Carlos Rego Barros de Souza), com Januário de Oliveira (1935) – Valsa gravada por um personagem esquecido de nossa música popular, o cantor Januário de Oliveira, “A Voz de Veludo”, que gravou 68 discos, entre 1929 e 40. Versátil, cantava diversos estilos e foi também humorista e exímio imitador de vozes.
6) O divórcio vem aí (Alvarenga e Ranchinho), com Alvarenga e Ranchinho (1939) – Das pioneiras duplas de sucesso nacional, com ênfase no humor do caipira, sendo figuras carimbadas no Cassino da Urca, no Rio, gravaram modas de viola divertidas autorais como esta.
7) Cordão dos puxa-saco (Roberto Martins e Eratóstenes Frazão), com os Anjos do Inferno (1945) – Uma das grandes marchas carnavalescas de sua Era de Ouro, trazendo uma de suas características mais marcantes: a crítica de costumes. O intérprete é um dos grupos vocais mais importantes de nossa história.
8) Não tem solução (Dorival Caymmi e Carlos Guinle), com Dick Farney (1950) – Samba-canção do moderno e eterno Dorival Caymmi com Dick Farney, um cantor de canto cool à moda dos americanos, mas com sabor tropical, que influenciou os futuros bossanovistas.
9) Teco teco (Pereira Costa e Milton Vilela), com Ademilde Fonseca (1950) – Exímia intérprete e criadora do choro cantado (em 1942), a potiguar radicada no Rio Ademilde Fonseca apresenta este clássico do gênero com o conjunto do cavaquinista Waldir Azevedo, com direito a solo de Abel Ferreira.
10) Trem de Alagoas (Waldemar Henrique e Ascenso Ferreira), com Jorge Fernandes (1950) – Canção do grande maestro paraense Waldemar Henrique com letra do poeta pernambucano Ascenso Ferreira, de inspiração folclórica, gravada por um especialista no gênero, o cantor Jorge Fernandes.
11) Micróbio do frevo (Genival Macedo), com Jackson do Pandeiro (1954) – Frevo gravado com arranjo mais sacudido do maestro Getúlio Macedo que foi um divisor de águas no gênero, gravado pelo paraibano Jackson do Pandeiro que renovou a música nordestina ao gosto do país nos anos 1950.
12) Adeus querido (Eduardo Patané), com Angela Maria (1955) – Canção mais ouvida no país em 1955, ficando muitas semanas em primeiro lugar, este tango do maestro Eduardo Patané (da Rádio Nacional) coroava a fase de maior sucesso de Angela Maria, uma das mais importantes cantoras de todos os tempos do país.
13) Peba na pimenta (João do Vale, José Batista e Adelino Rivera), com Marinês e sua gente (1957) – Cantora nordestina pioneira a se consagrar no país com ritmos locais, gravando um dos primeiros xotes de duplo sentido, assinado pelo maranhense João do Vale, seu compadre.
14) Morena boca de ouro (Ary Barroso), com João Gilberto (1959) – O canto e a batida revolucionária de João Gilberto nos trouxeram a bossa nova, uma nova maneira intimista de interpretar e vestir canções, inclusive através de pérolas do passado, como este samba do velho e insuperável Ary Barroso.
15) Murmúrio (Djalma Ferreira e Luiz Antônio), com Miltinho (1961) – Sambalanço típico das boates cariocas da virada dos anos 50 para os 60 com um dos estilizadores do estilo, o ex-crooner Miltinho, cuja divisão rítmica se adiantando aos compassos se tornou célebre.
16) O ritmo da chuva (Rhythm of the rain) (John Gummol, versão: Demetrius), com Demetrius (1964) – Rock-balada típico da pré-Jovem Guarda, movimento roqueiro que revolucionaria a nascente música pop no país cantada por um de seus primeiros e efêmeros intérpretes, Demetrius.