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    'Bate-bate com doce': há 60 anos estreava em disco um clássico do Carnaval pernambucano

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    “Nós somos da Pitombeira, não brincamos muito mal / Se a turma não saísse, não havia Carnaval...”. A música de Alex Caldas, tão imortal quanto a própria folia pernambucana, nasceu entre 1947 e 1950. Quando lançado pela fábrica recifense Rozenblit em novembro de 1961, o “Hino da Pitombeira” – lado A do disco de 78 rotações 15391 do selo Mocambo –, interpretado pelo Coro da Troça Pitombeira dos Quatro Cantos, já era, portanto, um velho conhecido dos foliões de Olinda.

     

    Troça? Não seria bloco? Há uma diferença: as troças, menores e mais informais do que os blocos e os clubes de frevo, caracterizam-se musicalmente pela sonoridade de fanfarras de metais e por um repertório focado nos frevos de rua. Geralmente trazem, em sua origem, histórias pitorescas e brincadeiras surgidas entre amigos – “troçar” significa “zombar de”, “escarnecer”, “caçoar”. Exatamente o ponto de partida da nossa história...

     

    “A turma da Pitombeira na cachaça é a maior / O doce é sem igual, como ponche é o ideal...”. Os versos da última estrofe remetem à fundação da troça. A turma em questão era realmente biriteira e, como informa Valdi Coutinho no Diário de Pernambuco de 19/01/1969, gostava de se encontrar no bar do Osvaldo, nos Quatro Cantos de Olinda – o famoso cruzamento da Rua Prudente de Morais com a Rua Bernardo Vieira de Melo e a Ladeira da Misericórdia. Todos eles, garotos de classe média, costumavam se juntar para animadas conversas regadas a batida com pedaços de doce (para cortar o efeito do álcool), ao som do violão de Faneca, integrante da patota.

     

    Na segunda-feira do Carnaval de 1947, dia 17 de fevereiro, entre um gole e outro de bate-bate – o tal “ponche” da letra, uma mistura de polpa de maracujá com melaço de cana – e mordiscadas no doce de goiaba, os rapazes resolveram sair às ruas sem camisa, batendo em latas e pandeiros, cantando bem alto e carregando um galho de pitombeira como estandarte – Polinice Xavier, com seus dois metros de altura, foi o primeiro “porta-bandeira”. Da turma fazia parte o jovem olindense (19 anos quase completos) Alex Caldas Ferreira da Silva (1928 – 1995).

     

    Nos pontos de encontro da moçada – o  bar do Osvaldo e a barbearia do Nestor, também nos Quatro Cantos –, Alex Caldas burilou a canção que seria o futuro hino da troça – muito provavelmente ajudado por Faneca, parceiro não creditado, que teria colaborado com a melodia para os versos de Alex, segundo depoimento de Edimilson Aroucha, o Milsinho, folião da Pitombeira desde 1952, para a série “Memória Amarela e Preta”.

     

    Em 1950, a ainda iniciante confraria já desfilava com seu hino completo, originalmente intitulado “Bate-bate com doce”. De acordo com Milsinho, o famoso estribilho era um pouco diferente: “Bate-bate com doce eu também quero, eu também quero, eu também quero / Mas se é cana com doce eu também quero, eu também quero, eu também quero...”. Por causa do cacófato – “se é cana com doce” remetia à palavra “sacana”, de impensável utilização pelos foliões da época –, suprimiu-se este verso e passou-se a cantar duas vezes o primeiro (diferentemente do refrão da gravação de 1961, onde a frase é dita somente uma vez). Curiosidade: o bate-bate de maracujá não era exatamente uma novidade na MPB, tendo aparecido em 1943 num samba do paraense Carlos Barroso gravado pelos Quatro Ases e Um Curinga e muito apropriadamente intitulado... “Bate-bate”.

     

    Valdi Coutinho, na reportagem anteriormente mencionada, conta que, entre 1948 e 1950, a turma continuou saindo às ruas, com cada vez mais gente chegando – naquele momento, só os moços: as mulheres passariam a ser admitidas apenas a partir de 1960. Uma tentativa de organização foi feita em 1951, com o pessoal desfilando fantasiado de palhaço. Somente em 1953, quando os componentes saíram de presidiários, a troça foi oficializada, já com o estandarte confeccionado por duas fãs do grupo, Nair Sales e Lindalva de Oliveira.

     

     

    Milsinho, em seu depoimento, lembra que o afamado compositor Clídio Nigro, bastante chegado a Alex Caldas e coautor – com Clóvis Vieira – dos frevos “Olinda nº 1” e “Olinda nº 2”, ofereceu ambos para a diretoria da agremiação, que incluiu o primeiro em seu repertório e recusou o segundo. Anos depois, após uma pequena modificação na letra deste último, Clídio o levou ao Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda, que o adotou como sua música oficial – hoje um dos mais famosos hits do Carnaval pernambucano: “Olinda, quero cantar a ti esta canção...”. Os foliões do Elefante – criado por dissidentes da Pitombeira depois de uma briga feia e inaugurado oficialmente em 1952 – já brincavam informalmente nas ruas desde 1950, e o que acontecia no encontro entre os integrantes dos dois grupos ficou registrado nos versos de Alex Caldas.

     

    “A turma da Pitombeira tem seis dedos em cada mão / E o ‘P’ que tem na testa faz parte da confusão...”. Desde o início, Pitombeira e Elefante se estranharam. Nasceu de fato uma inimizade, com direito a muita pancada. Os foliões costumavam se identificar pintando nas fachadas das suas casas e também em suas testas as iniciais do grupo ao qual pertenciam: “P” para os de amarelo e preto, “E” para os vestidos de vermelho e branco. Quando se esbarravam, o confronto era inevitável. Eliomar C. Teixeira, no Diário de Pernambuco de 22/01/1978, recorda: “Em 1967 Pitombeira e Elefante entraram nos Quatro Cantos ao mesmo tempo e o ‘pau cantou’. No fim da briga restaram apenas sapatos de mulher na rua. Mas entre feridos e mortos salvaram-se todos”.

     

    Diz Valdi Coutinho, na supracitada reportagem de 19/01/1969 – quando a animosidade ainda existia entre os dois grupos: “Durante o ano inteiro, os membros das duas agremiações vivem amigavelmente. Quando chega perto do Carnaval, a coisa engrossa. Há pessoas até que se intrigam com as outras. Depois do Carnaval, a raiva passa. Já se criou uma tradição em Olinda: Pitombeira não pode se encontrar nas ruas com Elefante, porque pode o ‘pau cantar’. Aconteceu algumas vezes sem graves consequências. Mas quem briga não é a diretoria, e sim os foliões e fãs das duas troças, no calor de sua torcida, no entusiasmo de suas emoções”.

     

    A paz foi somente selada por volta de 1975, época em que as ladeiras de Olinda já recebiam turistas de todo o canto e não havia mais espaço para manifestações tão violentas e sem sentido. Embora a rivalidade tenha continuado, os confrontos se mantiveram apenas na esfera musical, na base do “abafa”, com as respectivas orquestras, em caso de encontro das duas congregações, puxando frevos bastante conhecidos do público e tocando o mais forte possível, no intuito de uma abafar o som da outra – numa disputa bem mais civilizada e animada, condizente com o próprio espírito do Carnaval pernambucano.

     

    “Pitombeira só tem dez letras e uma significação: pitomba é fruta besta, se compra com qualquer tostão...”. Como grande parte das entidades carnavalescas no Brasil, a Pitombeira manteve-se à custa de suor e lágrimas, tendo inclusive chegado a fechar as portas. Valdi Coutinho, no Diário de Pernambuco de 18/01/1970, fala da notícia que encheu de alegria os foliões da cidade: “Pitombeira dos Quatro Cantos vai sair no Carnaval. (...) Acontece que as esperanças de ver seu clube nas ruas este ano eram as mínimas. Senão vejamos: a sede estava fechada há vários meses, o refrigerador quebrado, dinheiro em caixa nenhum, a associação ainda tinha dívidas do Carnaval passado. Tudo estava parado”. A menos de 20 dias do início da folia, um mutirão se revezava todas as noites para aprontar as fantasias e colocar de pé o desfile da veterana instituição.

     

    O autor do “Hino da Pitombeira” chegou a ter dificuldade com relação ao recebimento de seus direitos. Quase cinco anos após a gravação, uma matéria publicada no Diário de Pernambuco de 15/07/1966 denunciava: “Em Olinda, temos um compositor de escol, chamado Alex Caldas, autor do Hino da Pitombeira, música tão consagrada como Vassourinhas e que, impreterivelmente, todos os anos, é incluída no ‘cardápio’ musical dos melhores clubes pernambucanos. A composição foi gravada pela Mocambo, sua vendagem bateu todos os recordes. Mas, caros leitores, há um porém deveras interessante. O Alex, autor da música, nunca recebeu um tostão por conta dos direitos autorais a que faz jus”.

     

    O batizado de novos integrantes começou no início da década de 1950. Como recorda Eliomar C. Teixeira no Diário de Pernambuco de 22/01/1978, a pessoa precisava “habilitar-se a passar pelo teste: tomar cachaça com doce em quantidade duas vezes superior aos efetivos. Como resultado, o novo componente ficava de porre e era levado pra casa nos braços, sendo seus familiares avisados de que fora aprovado no teste e agora seria mais um na troça”.

     

    Hoje em dia a tradição do bate-bate com doce é revivida no dia do aniversário: em frente à sede atual, na Rua 27 de Janeiro – para onde a agremiação se mudou no início da década de 1980, depois de anos instalada num casarão da Rua Bernardo Vieira de Melo –, os organizadores servem aos novos membros o famoso licor com a goiabada de tira-gosto. A troça, desde o ano 2000, abre as prévias da folia em Olinda todo 7 de setembro, e faz diversas apresentações até desfilar oficialmente pelas ladeiras da velha Marim dos Caetés, sempre às segundas e terças-feiras de Carnaval.

     

    Alex Caldas, compositor consagrado e cofundador da Pitombeira, também foi, em Olinda, diretor da orquestra das Virgens do Bairro Novo e autor, junto com o jornalista Osório Romero, de um hino para o bloco Bacalhau do Batata, além de dezenas de outras músicas. Mas sua criação mais famosa é mesmo o hino da troça, para a qual ele também compôs “Regresso da Pitombeira”, cujos versos, como bom frevo de bloco que é, falam da tristeza pelo fim do desfile e pelo término da própria folia, lembrando que dali a um ano tudo começa novamente: “Regressar / Pitomba vai voltar / Não vá chorar, oh meu rapaz, que para o ano ainda tem mais / Das suas ruas, Olinda / Eu vou sair, minha hora está finda / Mas, afinal, eu vou voltar no outro Carnaval...”.

     

     

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