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    Uma alegria infernal: no mês do aniversário do Bola Preta, os 60 anos da primeira gravação de seu hino imortal

    Fernando Krieger

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    Patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio de Janeiro desde 2007 e decano dos blocos da folia carioca, o Cordão da Bola Preta, fundado oficialmente em 31 de dezembro de 1918, completa neste mês 103 anos bem vividos. Dentre as várias músicas feitas em sua homenagem, uma delas acabou se tornando não só o hino da agremiação, mas também um ícone do próprio Carnaval. Gravada em 16/10/1961 por Carmen Costa e lançada em dezembro do mesmo ano pela gravadora RCA Victor (disco 80-2407, lado A), a “Marcha do Cordão da Bola Preta (Segura a chupeta)” é bem anterior a esse registro: nasceu em 1935 de uma parceria entre Nelson Barbosa e Vicente Paiva... só que feita para outro bloco, como se verá mais adiante.

    A origem do Bola remete ao Só Se Bebe Água, fundado em 1917 por Álvaro Gomes de Oliveira (o Caveirinha, chamado de K. V. Rinha e K. Veirinha pela imprensa da época), Francisco Carlos Brício, os irmãos Joel e Jair de Oliveira Roxo e outros boêmios. Sobre a troca do nome para Cordão da Bola Preta, que acabou sendo o definitivo, há pelo menos quatro versões. A mais famosa, com algumas variações, fala da mulher de vestido branco com bolas pretas que passou de madrugada na calçada em frente ao Bar Nacional – na antiga Galeria Cruzeiro, no Centro do Rio, onde hoje encontra-se o Edifício Avenida Central –, atraindo a atenção daquela patota ali de cima, que lá se reunia. Convidada a se juntar ao grupo, acabou bebendo junto, trocando ideias e inspirando a nova denominação do bloco. (Diz-se também que ela teria bebido sozinha numa das mesas, sob os olhares apaixonados da moçada.)

    Este episódio da moça de bolas pretas foi negado por Álvaro Caveirinha – presidente de honra do Bola Preta desde 1942 – em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em junho de 1970, segundo André Diniz e Diogo Cunha no livro “Vem pro Bola, meu bem! Crônicas e histórias do Cordão da Bola Preta” (Numa Editora, 2019): “Isso foi uma coisa idealizada pelo Jamanta para justificar a fundação do Cordão”, referindo-se a José Luiz Cordeiro, um dos criadores do bloco.

    Outro dos seus fundadores e futuro presidente, Francisco Brício, em entrevista ao jornal A Pátria de 23/01/1930, fez um relato bem diferente: contou que, num Carnaval, o Caveirinha avistou, na Glória, uma colombina vestida de branco, com bolas pretas adornando sua fantasia. Os dois se enamoraram e sumiram na multidão. Mas os jovens amantes acabaram se perdendo de vista e Álvaro nunca mais a encontrou. As bolas pretas da vestimenta da foliona teriam servido de inspiração para o batismo. Ao Correio da Manhã de 02/09/1956, Brício repetiu a história com pequenas alterações, afirmando inclusive ter sido uma pierrete – versão feminina do Pierrô –, e não uma colombina, a paixão de Caveirinha.

    Em depoimento ao MIS-RJ em março de 1969, citado no livro “Vem pro Bola, meu bem!”, Chico Brício apresentou outra versão, segundo a qual o grupo se reunia num bar no Largo da Glória onde havia uma espécie de jogo de apostas envolvendo bolas brancas e pretas. “A gente só jogava na bola preta [pagava dobrado]”, segundo Brício. Então Jamanta “pegou um saco de aniagem e escreveu ‘Cordão da Bola Preta’ e fez uma bola avermelhada”.

    Diniz e Cunha transcrevem ainda um trecho de matéria publicada n’O Metropolitano de 28/02/1960: segundo a reportagem, a origem do nome teria sido inspirada no conhecido expediente – utilizado por clubes aristocráticos – de decidir, em votação secreta, sobre a entrada de novos sócios através da utilização de bolas pretas (simbolizando o veto) e bolas brancas (para a admissão). No caso, a admissão ao grupo se daria através da unanimidade de... bolas pretas. Uma só bola branca impediria a entrada do novo elemento.

    Denominado “cordão” em reverência a este tipo de organização carnavalesca bastante comum no Século XIX, que deixou de existir nas primeiras décadas do século passado, o bloco, ligado de início ao Clube dos Democráticos – onde as festas do grupo eram promovidas –, foi, a partir de 1926 (ano do seu estatuto), ganhando corpo e ocupando seu espaço nas ruas e nos salões. Crescendo em popularidade, começou a ser citado nas letras de composições da época, muitas infelizmente não gravadas. Murilo Brasil, no livro “A história do Cordão da Bola Preta” (Rio de Janeiro, 2005), elenca algumas onde o Bola era mencionado, como o samba “A mulher do meu vizinho” (A. Lopes, 1927) e “Bolinhas capitosas” (1930), além de uma parceria (o livro não indica o título) de Nelson Barbosa com Mário Lago para o Carnaval de 1936.

    O Diário da Noite de 28/01/1936 transcreveu a letra do “Samba das esteiras”, de Loretti Rocha: “Se você sair na Bola Preta / Beba mais cerveja, mas comigo não se meta”. Há também o célebre samba “Camisa listada” (Assis Valente, 1937), este sim registrado em disco: “Se fantasia de Antonieta / E vai dançar na Bola Preta até o Sol raiar”. Uma dessas criações, de autoria de Nelson Barbosa, acabou ganhando status de hino, “Só na Bola...”, cujos versos, publicados em quatro jornais diferentes no dia 25/02/1933 (A Nação, Diário Carioca, Jornal dos Sports e Correio da Manhã), diziam: “Vejam só... Vejam só... Todos por um, um por todos, é um só... / Meu coração não faz careta / Quem está passando é o Cordão da Bola Preta...”.

    [Breve interlúdio gramatical: como se pode notar, era costume falar “na Bola Preta” em vez de “no Bola Preta”, o correto, já que existe aqui uma silepse de gênero: o artigo masculino “o” concorda com o termo oculto “Cordão”. E muitos hoje em dia ainda falam erradamente “Cordão do Bola Preta”, esquecendo que, neste caso, o substantivo feminino “bola” deve ser precedido por artigo feminino: “da Bola Preta”.]

    A década de 1930 foi uma época de atritos e debandadas. Integrantes da agremiação, insatisfeitos com certas questões financeiras e administrativas, estavam criando dissidências – na prática, “filhos” do Bola: Cordão dos Escovas, Cordão das Laranjas... Em 1935, apadrinhado pelo próprio Bola Preta, surgiu o Bloco da Chupeta, idealizado por Nelson Barbosa, que para ele também fez uma marcha, desta vez em parceria com o compositor e maestro Vicente Paiva: “Segura a chupeta”.

    De acordo com o depoimento dado em 1978 por um de seus fundadores, Haroldo Pinto, e registrado no livro “A história do Cordão da Bola Preta”, o Bloco da Chupeta surgiu para “acabar com a ‘igrejinha’ [panelinha] que caracterizava o Cordão da Bola Preta” e “para unir mais o pessoal, mas também visando à incrementar a animação no Bola”. Seu hino, inclusive, fazia menção ao Bola Preta – e foi depois adotado por este em caráter oficial.

    A letra de “Segura a chupeta” diferia ligeiramente da cantada hoje em dia por milhares de foliões. Transcrita pelo Diário da Noite de 07/02/1935, era assim: “Quem não chora não mama / Segura, meu bem, a chupeta / Lugar quente é na cama / Ou então na Bola Preta / Reina em nosso cordão / Uma alegria infernal / Todos são de coração / Foliões do Carnaval”. Havia ainda uma outra segunda parte que dizia: “Tem na Bola, meu bem / Gente boa e frajola / Quero ver você também / Frequentar a nossa escola”.

    A marcha logo pegou nos bailes e nos desfiles bolapretenses. O Jornal dos Sports de 08/03/1935, ao comentar que as festas do bloco haviam “abafado a banca”, destacava: “E não foi só interno o sucesso. Todas as saídas dadas pelo Cordão arrastaram multidões, ao som do ‘Quem não chora não mama’”. A expressão não era nova na música brasileira: em 1927, Francisco Alves lançou um samba com este nome, de autoria de Gaudio Viotti. Até a gravação do hino do Bola por Carmen Costa em 1961, outras três composições intituladas “Quem não chora não mama”, dois sambas e uma marcha, seriam anexadas ao repertório popular. “Segura a chupeta” também ajudou a popularizar o dito “lugar quente é na cama”, com todos os duplos sentidos a que ele tem direito...

    Vicente Paiva, coautor do hino do Bola, entraria novamente para a história do Carnaval com um clássico dos clássicos, gravado em 1936 e lançado em janeiro de 1937: “Mamãe eu quero”, marcha feita em parceria com o cantor, compositor e humorista Jararaca (José Luiz Rodrigues Calazans, da dupla Jararaca e Ratinho). No livro “A história do Cordão da Bola Preta”, Murilo Brasil chama a atenção para uma curiosidade: “Chupeta... mamar... choro de bebê... cordão... formam conceitos que estão nos versos da música do Bola Preta (1935) e dois anos depois constituíram a base do grande sucesso de Jararaca. Será que Vicente Paiva, parceiro de Nelson Barbosa, influiu posteriormente na letra de ‘Mamãe eu quero’?”. Não se sabe a resposta, mas é perfeitamente possível que o Bloco da Chupeta e o sucesso de “Segura a chupeta” tenham inspirado Vicente Paiva e Jararaca na feitura dos versos de “Mamãe eu quero”: “Mamãe, eu quero mamar / Dá a chupeta pro bebê não chorar (...) / Pega a mamadeira e vem brincar no meu cordão...”.

    Por 26 anos, a marcha do Bola Preta foi “conhecida e cantada apenas pelos desabusados foliões do Cordão”, como relatou Edigar de Alencar no seu “O Carnaval carioca através da música” (Livraria Freitas Bastos, 1965) – até finalmente debutar em disco. Segue Alencar: “Modificado o seu poema, com a supressão da terceira estrofe e alteração da segunda, a marcha foi relançada em 1962 (sic), obtendo ruidoso sucesso. Foi das mais cantadas nos salões, numa espontânea e alegre promoção ao valoroso fortim da alegria”.

    Nesta primeira gravação, pode-se escutar a famosa introdução, executada ainda hoje por sua sempre ótima banda, tanto nos bailes – que ocorrem durante o ano todo – quanto nos desfiles do bloco pelo Centro do Rio, nas manhãs de sábado de Carnaval. Na voz de Carmen Costa, a marcha conheceu enfim os seus versos definitivos:

     

    Quem não chora não mama

    Segura, meu bem, a chupeta

    Lugar quente é na cama

    Ou então no Bola Preta

    Vem no Bola, meu bem

    Uma alegria infernal

    Todos são de coração

    Foliões do Carnaval

    (Sen-sa-cio-nal!)


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