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    Enfim, Sylvia Telles! Aguardada biografia é a primeira boa notícia de 2022

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Sylvia Telles tinha só 31 anos quando teve sua vida bruscamente encerrada por um acidente na Rodovia Amaral Peixoto, na altura de Maricá (RJ), na madrugada de 19 de dezembro de 1966. Silenciava-se uma das cantoras mais queridas de sua geração e também uma das mais importantes: seu canto moderno e personalíssimo foi decisivo para a consolidação da estética da bossa nova e para os compositores que surgiam na década de 1950 – só de Tom Jobim foram mais de 20 composições que lançou em primeira mão. Fora os dez LPs que gravou (recheados de sucessos), 25 fonogramas em discos de 78 rpm e a turnê europeia que tinha acabado de fazer com Edu Lobo e Rosinha de Valença.

    Mas, então: com tantos feitos, por que um esquecimento tão inquestionável? O tempo que se passou, os novos talentos que surgiram, a música que se transformou... 

    Seja como for, 2022 já tem pelo menos uma boa notícia a ser dada, que é o recomeço desta história. Está chegando às livrarias a primeiríssima biografia da cantora, escrita por Gabriel Gonzaga, músico e pesquisador de 33 anos – o último terço deles dedicado à obra, que sai pela editora Showtime com o nome de “Para ouvir Sylvia Telles”. “Fiz questão que o título apontasse para o que interessa no fim das contas, que é o canto dela. Quero muito que as pessoas tenham essa experiência que eu tive ao ouvi-la”, conta Gabriel, estreante como escritor, sob as bênçãos de Ruy Castro, que o avaliza assim na quarta capa: “É um show de informação, uma lição para muitos biógrafos por aí.”

    Paulista de Guarulhos, nascido em 1988, Gabriel cresceu tendo como referência musical a MPB e o que mais tocasse no rádio que sua mãe sintonizava na FM. Até que um dia um amigo de seu pai, sabendo que colecionava vinis, lhe presenteou com alguns LPs – entre os quais estava uma coletânea de Sylvia Telles. “Foi paixão à primeira audição: ouvi e fiquei chapado com aquele som”, recorda o músico e escritor, à época com seus 13 anos. “Já no começo percebi que teríamos uma trajetória juntos: eu e aquela voz.”

    O primeiro contato com aquele canto “muito pessoal e passional” (“Aquela densidade me capturou de imediato”) seria decisivo não só pra formação do gosto musical de Gabriel Gonzaga, como também – e principalmente – para o rumo profissional que tomaria dali a alguns anos: “Eu estava já com 20 anos, a fim de desbravar o mundo e ir atrás da minha história, quando fiz as malas e fui para o Rio de Janeiro, para estudar música e começar a minha pesquisa.”

    Não imaginava que passaria onze anos vivendo na cidade natal de Sylvia Telles. Logo tratou de se enfurnar na Biblioteca Nacional, que no início da pesquisa (2009) ainda não tinha inaugurado a Hemeroteca Digital, que desde 2012 possibilita a pesquisadores do mundo todo consultarem remotamente seu imenso acervo de impressos. “Nessa de passar os dias com a cara enfiada em jornais, revistas e microfilmes, acabei me inteirando do que acontecia no rádio, nas revistas, no ambiente cultural...”, relata. “Abri um caderno só para as notas colaterais: as informações que não eram exatamente sobre ela, mas que eram fundamentais para compor aquele universo.”

    Em paralelo às longas jornadas na BN, começou a entrevistar personagens diversos da história que estava disposto a contar. Do humorista Dedé Santana ao produtor fonográfico André Midani. Da performer Rogéria à Irmã Terezinha, do Colégio Santo Amaro. E ainda um verdadeiro escrete da música popular brasileira, no qual estão Tito Madi, Billy Blanco, Carlos Lyra, Edu Lobo, Maria Bethânia, Caetano Veloso e até João Gilberto. 

    “Eu estive várias vezes a um palmo do João, mas nunca dava certo. Chegava na hora e eu não conseguia”, conta o pesquisador. “Até que aos 45 do segundo tempo recorri a um colega meu que foi um dos últimos advogados do João: mandei as perguntas e ele o entrevistou para mim. Gravou, tomou notas e só então deu aquele alívio: puxa, consegui!”

    Outra figura decisiva nessa jornada foi a cantora Cláudia Telles (filha única de Sylvia e do violonista Candinho), a quem Gabriel foi apresentado pelo produtor Thiago Marques Luiz, seu amigo. A lembrança de Cláudia, falecida em fevereiro de 2020, ainda emociona o escritor: “Durante todo o tempo que dediquei a este trabalho, eu mesmo duvidei várias vezes se conseguiria chegar ao final, tamanhas as dificuldades no percurso. Ela nunca deixou de acreditar em mim.”

    Gabriel também é grato a Cláudia – e outros familiares de Sylvia Telles – pelo acesso que teve “a todos os baús, documentos, álbuns de fotografias e histórias (as boas e as más)” de sua biografada. “Tudo que chegou a mim, eu pude apurar e vi que fazia sentido na história dela, eu contei. Caso contrário seria fofoca”, diz Gabriel. “Até porque as histórias da vida pessoal dela estão diretamente relacionadas com o repertório que ela gravava, a maneira como cantava, tudo.”

    Como o primeiro LP dela, “Carícia” (Odeon, 1957), em cuja capa aparece vestida de bailarina. “Ali ela vivia seu sonho de princesa: tinha acabado de se casar com seu príncipe encantado, estava grávida da filha... Tudo isso transparece no disco”, explica o biógrafo, contando que deste repertório três gravações saíram também em 78 rotações: “Chove lá fora” (Tito Madi), “Por causa de você” (Tom Jobim e Dolores Duran) e “Foi a noite” (de Jobim com Newton Mendonça), esta última na versão completa, com a sessão instrumental final que acabou não sendo aproveitada no LP, bem como nas reedições ou coletâneas que vieram depois.

    Também no site Discografia Brasileira podem ser encontradas outras gravações emblemáticas de Sylvia Telles, a começar pelas duas de seu disco de estreia, feito em 1955 na Odeon: uma regravação do hit sensual “Amendoim torradinho” (Henrique Beltrão) e o lançamento do samba-canção “Desejo” (Garoto, Luiz Cláudio e José Vasconcelos).  E outras gravações iniciais, como as dos sambas-canção "Neném", do marido Candinho, e "Menino" (Carlos Lyra), com seus versos provocantes: "O que é que seu pai vai dizer? Menino, eu não presto pra você..." 

    O repertório da cantora em 78 rotações também tem registros inusitados, como a participação dela na gravação feita pelo estadunidense Nat King Cole – em português! – para o samba-canção “Ninguém me ama” (Antônio Maria e Fernando Lobo). E as versões caipiras que os clássicos “Eu sei que vou te amar” e “Eu não existo sem você” (ambos de Tom Jobim e Vinicius de Moraes) receberam nas vozes terçadas de Sylvia Telles e Stellinha Egg, ou melhor: da dupla Mara e Cota, como saiu no selo do disco que a Odeon lançou em novembro de 1959, com acompanhamento de violão, sanfona e viola caipira. Uma ousadia divertida do produtor Aloísio de Oliveira que acabou passando em brancas nuvens, ao contrário de parcerias dele com Tom Jobim que fizeram bonito na voz de Sylvia: a lépida “Eu preciso de você” e a romântica “Dindi”, maior sucesso do repertório dela.

    Tom também se faz presente na discografia dela como arranjador e diretor da orquestra que a acompanha em gravações como de “Luar e batucada” (dele com Newton Mendonça), “Geração da vitamina” (Haroldo Barbosa) e “Sem você pra quê”, esta última a única composição de Sylvia Telles (em parceria com Chico Anysio) lançada em 78 rotações.

    “Mesmo com tantas composições de Tom Jobim e do pessoal da bossa nova em seus discos, vale destacar que Sylvia era muito atenta e aberta às novidades que surgiam”, ressalta o biógrafo, relembrando o relato que ouviu de Caetano Veloso, que dirigiu a cantora no Teatro Vila Velha, em Salvador, em 1964 – ele iniciante, ela consagrada. No depoimento a Gabriel Gonzaga, o compositor destaca o entusiasmo com que ela acolheu suas sugestões, com “um espírito aberto e fascinante para com alguém tão jovem e inexperiente.”

    Para Caetano, Sylvia Telles era “pré-tropicalista”, assim como para Marcos Valle, também em depoimento para o livro, ela era “pré-bossa nova”. Outra seguidora-fã de sua arte é a cantora e compositora Joyce Moreno, autora do prefácio da obra, no qual lamenta não tê-la conhecido pessoalmente e a define como “a cantora de minha devoção”: “E tenho plena consciência do quanto aquele canto – muito cool, preciso, sem firulas desnecessárias – me influenciou como intérprete.”

    Pois é esta cantora tão especial – precursora de artistas e movimentos fundamentais da música popular brasileira – que enfim volta à luz neste início de 2022, pelas mãos de mais um fã inspirado por sua grande arte. “Assim como Sylvia Telles abraçou o Caetano quando ele não era nada, me sinto também abraçado por ela, afinal eu tinha só 20 anos quando comecei essa história”, rebobina Gabriel Gonzaga. “Tanto a história do meu livro quanto a minha própria história com ela.”

    Clique aqui para ouvir uma playlist com todas as gravações de Sylvia Telles em 78 rotações.  

    Foto: acervo pessoal de Gabriel Gonzaga

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