Na incerteza
Em que eu vivo os meus dias
Ainda espero
O mais claro amanhã
São de amor os versos de “Incerteza”, mas caberiam perfeitamente na situação profissional que um de seus autores, Tom Jobim, vivia naquele início da década de 50. Casado desde 1949 (com Teresa, sua primeira companheira) e pai desde o ano seguinte (de Paulo, seu primogênito), desdobrava-se em dois turnos para fazer frente às responsabilidades financeiras: à noite como pianista nas boates de Copacabana, de dia como contratado – desde 1952 – da Continental, escrevendo arranjos e passando para a partitura as melodias que lhe eram cantadas por compositores diversos. “Eu vivia competindo com o aluguel, pra ver quem chegava antes no fim do mês”, disse Tom em tantas entrevistas.
No meio desse corre-corre, é possível que não tenha tido tempo de comemorar o lançamento fonográfico, em abril de 1953, de sua primeira composição gravada: “Incerteza”, feita com o também pianista Newton Mendonça, amigo próximo de Tom, com quem se revezava na labuta da madrugada. Não podiam imaginar que, em alguns anos, seriam autores de clássicos da bossa nova, como “Caminhos cruzados” (1958), “Desafinado” (1959), “Meditação” (1959) e “Samba de uma nota só”, este último lançado no mesmo ano (1960) da morte de Newton, aos 33 anos, fulminado pelo segundo infarto, no dia 22 de novembro.
“Conheci o Newton quando nós éramos garotos, andávamos de patins na calçada. Ele morava na Rua Nascimento Silva e eu morava na Rua Saddock de Sá”, contou Tom Jobim no programa Roda Viva, da TV Cultura (20-12-1993). Os dois eram vizinhos também de aniversário: Tom do dia 25 de janeiro, Newton de 14 de fevereiro, ambos de 1927. O primeiro, tijucano de nascimento, tinha já dez anos quando chegou com a família em Ipanema, vindo de Copacabana, e conheceu o amigo, que também dividia as horas vagas entre idas à praia e as primeiras aulas de piano – instrumento que, já na década de 1940, servirá de elo quando começarem a compor juntos.
“Eu tinha um piano velho alugado e ele tinha um piano velho alugado”, relembrou Tom no Roda Viva, respondendo ao crítico e produtor Zuza Homem de Mello, que lhe perguntara sobre o processo de criação da dupla. Após descrever o amigo como “aquele garoto de Ipanema, que andava com calção largo” e era “bom copo”, disse que não havia uma fronteira definida sobre quem criava a melodia e quem escrevia a letra. “Um ia para a casa do outro sempre e nós sentávamos juntos, né? Mas, normalmente, eu sentava no piano e ele sentava com o caderno e o lápis. Às vezes, podia trocar: ele ir para o piano e eu ir para o lápis.”
Pois foi assim que compuseram não só “Incerteza”, como outros sambas-canção sentimentais, como “Teu castigo” (gravado por Dalva de Oliveira em 1956), “Foi a noite” (por Sylvia Telles, no mesmo ano), “Só saudade” (por Cláudia Morena, também em 56) e “Brigas” (lançada em 1958, por Marisa Barroso), além do samba-exaltação “Luar e batucada”, mais um gravado por Sylvia Telles, em 1957. Já “Incerteza” saiu em 1953, em gravação de Mauricy Moura, que segundo a revista Carioca (28-03-1953) era “dono de uma voz quente e aveludada”, sendo “uma das maiores atrações da Rádio Nacional de São Paulo”.
Natural de São Vicente (SP), Mauricy começou a carreira como cantor e violonista em conjuntos musicais locais, até que entrou para o elenco da Rádio Atlântica, de Santos (SP). Foi aí que caiu nas graças do já consagrado Sílvio Caldas, que o levou para São Paulo. Só então assinou com a gravadora Sinter, onde fez os primeiros discos de 78 rotações: o de estreia, em maio de 1952, e o de “Incerteza”, que saiu em abril de 1953, com acompanhamento da Orquestra de Lírio Panicali – no lado B do disco gravou “O anel que lhe dei”, samba-canção de Gilberto Panicali, filho do maestro.
Quando fez estas primeiras gravações, Mauricy Moura já tinha seu cartaz na noite paulistana, com sua voz que era “uma mistura de Dick Farney, Lucio Alves e Edson Lopes”, como definiu a revista Carioca na edição de 18-10-1951. Pouco depois passou a circular também pelo Rio de Janeiro, geralmente escoltado pelo “padrinho” Silvio Caldas, que o levou até a casa noturna que era uma das sensações da noite carioca naquele início de 1953: o Clube da Chave. Foi nesta boate sem porteiro – frequentada por sócios que tinham a chave da porta – que o cantor conheceu Tom Jobim, Newton Mendonça e “Incerteza”.
A casa de endereço nobre – Av. Atlântica, nº 4.264, em plena Praia de Copacabana – era um dos locais onde os dois amigos ipanemenses se revezavam no piano-armário, como atrações da programação estrelada, que tinha Garoto, Johnny Alf, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, entre outros. Frequentado pelos principais “formadores de opinião” da época, como os cronistas Fernando Lobo, Antônio Maria e Sérgio Porto, o Clube acabou se tornando um local importante para a música popular brasileira da época e, em especial, para o próprio Tom Jobim.
“Também saiu do Clube da Chave o repertório do segundo disco com músicas de Tom”, conta o jornalista Sergio Cabral no livro “Antônio Carlos Jobim: uma biografia” (Editora Lumiar, 1997). “O cantor, dessa vez, foi Ernani Filho, que, no mesmo Clube da Chave, assumiria a condição de intérprete favorito de Ary Barroso.” Foi em junho de 1953 que saiu – pela mesma Sinter – o disco de Ernani trazendo a segunda e a terceira gravações de músicas de Tom Jobim: os sambas-canção “Pensando em você” (no lado A) e “Faz uma semana” (parceria de Tom com João Carlos Stockler), no B. Já em 1954, sairiam as primeiras gravações na Continental: “Solidão” (com Alcides Fernandes), por Nora Ney; “Outra vez”, por Dick Farney e “Tereza da praia” (com Billy Blanco), no famoso dueto de Dick com Lúcio Alves.
Por fim, o Clube da Chave merece destaque na trajetória de Tom Jobim graças a pelo menos mais um encontro. Foi lá, no mesmo 1953, que ele conheceu Vinicius de Moraes, alguns anos antes da “apresentação oficial” dos dois, em 1956, na Casa Villarino, onde o cronista Lúcio Rangel propôs a Tom que fizesse as músicas da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinicius.
Segundo Sérgio Cabral, seu biografado tocava “Tão só” (samba-canção de Dorival Caymmi e Carlos Guinle) quando foi ouvido pela primeira vez pelo poeta, que ficou com aquela impressão do jovem músico: “Percebi logo que se tratava de um pianista diferente. Tocava um som engraçado, novo.” Também foram boas as lembranças guardadas por Tom daquele sujeito “espantosamente simples para um diplomata”, como disse em depoimento para o livro “Gente de sucesso: A vida de Tom Jobim” (Editora Rio Cultura, 1982).
Após a noitada, o pianista e o poeta – entre outros notívagos – seguiram do Clube da Chave para o Bar dos Pescadores, para comer ovos com presunto e conversar até o sol raiar.
Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS