Com a morte de Elza Soares, nesta quinta-feira, cala-se não só uma das vozes mais originais e potentes da música popular brasileira. É também o desfecho de uma trajetória que desde o início, há 91 anos, no subúrbio carioca de Padre Miguel, foi marcada por lutas, reveses e reviravoltas. Da infância repleta de privações ao abuso infantil. Da gravidez adolescente ao casamento forçado. Do vaivém com a lata d’água na cabeça ao programa de calouros de Ary Barroso, que, ao vê-la vestida de maneira improvisada (a roupa presa com alfinetes), perguntou zombeteiro de que planeta vinha. “Eu venho do planeta fome”, respondeu certeira, antes de cantar e levar a nota máxima no auditório da Rádio Tupi.
O ano era 1953 e começava ali a carreira da intérprete que, entre palcos de teatro, boates, filmes e programas de rádio, logo ficaria conhecida pelo canto vibrante, suingado e com “novidades” como o efeito rouco/rosnado que usava pontualmente em suas interpretações – o “scat farpado”, na definição do jornalista Tárik de Souza.
Uma marca registrada presente na extensa e expressiva discografia que deixou, especialmente em LPs como os que fez na Odeon nas décadas de 1960 e 1970. Neste período, há tanto os discos solo, como “Se acaso você chegasse” e “A bossa negra” (ambos de 1960), quanto os duetos emblemáticos que fez. Como “Elza, Miltinho e samba” (1967, 1968 e 1969), “Elza Soares / Baterista Wilson das Neves” (1968) e “Sangue, suor e raça – Elza Soares e Roberto Ribeiro” (1972).
Aqui na Discografia Brasileira, seu canto potente pode ser ouvido em gravações marcantes como a primeira que fez, do samba “Se acaso você chegasse” (Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins), que no canto de Elza (1959) ressurgiu com grande sucesso mais de duas décadas após o lançamento original (1937), quando já tinha servido de cartão de visitas ao então iniciante Ciro Monteiro. No lado B desse 78 rotações da Odeon ela gravou “Assalto”, versão de Alberto Ribeiro para o clássico “Mack the knife”, da “Opera dos três vinténs”, de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
Teve mais sucesso com a versão que lançou em seguida, do boogie woogie “In the mood” (Joe Garland e Andy Razaf), que Aloisio de Oliveira transformou na crônica nonsense “Edmundo”, com Osvaldo Borba e Seu Conjunto fazendo as vezes de Glenn Miller no acompanhamento. Do outro lado do disco (lançado em 1960) está o telecoteco “Era bom” (Hianto de Almeida e Macedo Neto), com Elza fazendo a crooner de gafieira numa autêntica dor-de-cotovelo.
Mas imbatível no quesito “afaste os móveis da sala” é o 78 rotações que Elza lançou em janeiro de 1961, com arranjos e regência de Astor Silva. No lado A está o primeiro sucesso de João Roberto Kelly: o sambalanço “Boato”, que ele costuma dizer que fez no embalo da bossa nova, mas “mais quente”. No lado B do disco, a gafieira se esquenta ao som de “O samba está com tudo” (Denis Brean e Osvaldo Guilherme), com seus versos autorreferentes: “O samba tem cadência, tem poesia / Tem suave melodia, só o samba faz vibrar...”
Também com acompanhamento do conjunto de Astor Silva são as duas gravações que Elza Soares lançou num 78 rotações de abril de 1962, tendo de um lado o embalo romântico “Aconteceu um novo amor” (Célio Ferreira e Cícero Nunes) e do outro o samba maledicente “Avec no Leblon” (Luiz Mergulhão, Umberto Silva e Paulo Aguiar), que Elza se diverte enquanto canta: “Pensa que não vi você avec no Leblon / E fiz tudo para não sair do tom...”
Já no disco lançado em fevereiro de 1962, caso o ouvinte sinta falta de uma “história” no samba “Ziriguidum”, que se lambuze com a graça, o ritmo e a sensualidade que sobram no dueto de Elza com o autor da música, Monsueto Menezes. Já do outro lado do 78 rotações é Billy Blanco quem assina o samba-choro sobre uma pequena que melhorou de vida e virou estrela, trocando “a luz de velas pelo refletor”, como canta Elza Soares em “Maria, Mária, Mariá”.
Esta última seria relançada em 1963 como uma das faixas do LP “Sambossa”, de cujo repertório outras duas gravações saíram também num 78 rotações daquele ano. Uma do samba queixoso “Sim e não” (Venâncio, Carlos Magno e Edilton Lopes) e, no lado A, a versão apimentada de Elza para “Só danço samba” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), lançado no ano anterior em gravação comportada da xará Elza Laranjeira.
Já o último disco de 78 rotações de Elza Soares, lançado em abril de 1963, era como um retrato daquele momento turbulento de sua vida: o romance que vivia com o jogador Garrincha era tema recorrente na imprensa, que, no moralismo da época, a responsabilizava pelo fim do casamento do craque. Foi neste clima que regravou “Eu sou a outra” (Ricardo Galeno), lançado dez anos antes por Carmen Costa. Já o lado A trazia uma resposta em forma de samba para o julgamento implacável das revistas, “Amor impossível” (João Roberto Kelly e David Nasser), feito sob medida para Elza: “Chamem nosso amor até de desigual / Amor, que é o nosso bem, pro mundo é o mal...”
Também de 1963 é o registro pitoresco da participação de Elza Soares na campanha pró-presidencialismo no referendo de janeiro daquele ano, quando o povo brasileiro foi às urnas e votou pelo fim do sistema parlamentarista, que vigorava no país desde 1961. No disco, intitulado simplesmente, “Plebiscito”, é dela uma das vozes – além de Dircinha Batista e Luiz Veira – ouvidas no jingle de campanha, acompanhadas pelo conjunto de Altamiro Carrilho.
Entre os discos de 78 rotações gravados por Elza está ainda um raro lançamento mirando o carnaval – no caso, o de 1960. Disco que saiu com duas músicas que não deram em nada – a marcha saliente “Brotinho de Copacabana” e o samba equivocado “Pra que é que pobre quer dinheiro” – mas que pelo menos tem por trás uma boa história. As duas músicas têm autoria assinada pelo mesmo trio, formado por Aidran Carvalho (o compositor Carvalhinho), o coronel Getúlio Martin e Moreira da Silva. Mas a marcha era só do coronel e o samba de Carvalhinho, enquanto o terceiro – amigo dos dois – foi o “intermediador” das gravações, como conta o escritor Alexandre Augusto na biografia “Moreira da Silva, o último dos malandros” (Editora Sonora, 2013).
Terminada a era dos discos de 78 rotações, o canto de Elza Soares seguiu ecoando nos LPs que lançou nas décadas de 1970, 80 e 90, pela Odeon, pela Tapecar e pela CBS, entre outras gravadoras. Depois de eleita "a voz do milênio" pela Rádio BBC de Londres, em 1999, entrou no século 21 fazendo de sua voz uma bandeira de lutas inadiáveis e, com isso, renovando seu público. São desta época CDs marcantes como “Do cóccix até o pescoço” (Maianga/2002), “A mulher do fim do mundo” (Circus/2015) e “Deus é mulher” (Deckdisc/2018).
Entre os sucessos desta última leva está “A carne” (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti), com seus versos que, mesmo após a partida de Elza, seguirão ecoando em seu "scat farpado", como hino das mazelas que lamentavelmente persistem no planeta fome:
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
Foto de Armando: Coleção José Ramos Tinhorão / IMS